A força cultural do Vasco da Gama

Quando a Nike escolhe o clube, ela não está comprando só espaço de mercado.

A força cultural do Vasco da Gama

Se alguém tentasse explicar a parceria entre Vasco e Nike apenas pelos números do time em campo, a conta não fecharia. Há um componente mais profundo operando ali, construído em ritmos que atravessam décadas e ganham novas formas a cada geração.

O clube passou por instabilidades recentes, mas, ainda assim, manteve sua relevância. É o tipo de circulação que não depende do placar, aparecendo em vídeos que viralizam sem esforço, em cantos que se espalham para além da arquibancada, em conteúdos criados por uma torcida que aprendeu a se narrar e, com isso, manteve vivo um pertencimento difícil de quantificar. Quando a Nike finalmente se aproximou, encontrou um cenário que já estava pulsando e a reação pública ao anúncio apenas confirmou um movimento que vinha sendo construído muito antes do contrato.

Sem clubismo, aqui, tá? Apenas alguns fatos sobre o GIGANTESCO DA COLINA, o clube com a história mais linda do mundo, o Vasco da Gama que herdei do meu pai.

Um contrato maior que a planilha

Depois de cinco anos com a Kappa, período em que o vascaíno vestiu camisas lindíssimas e sempre fez questão de esgotá-las nas lojas, o Vasco entra em um novo ciclo. O contrato anterior, que girava em torno de 600 mil reais anuais, chega ao fim ao mesmo tempo em que a diretoria conduz uma negociação longa para reposicionar o clube no mercado global de material esportivo. É nesse contexto que surge a Nike, que tinha apenas o Corinthians como parceiro no Brasil e prepara, para 2026, um portfólio ampliado com Vasco e Atlético-MG. A mudança de escala é evidente: o clube sai de um acordo modesto para um contrato de sete anos que deve render aproximadamente 250 milhões de reais, somando royalties, fornecimento e projeções de venda. Esse salto financeiro ajuda a explicar por que a chegada da Nike foi tão comentada, mas não dá conta do fenômeno que se seguiu.

No último dia 09, a página do Instagram da Nike Football (página global, diga-se de passagem), fez o anúncio oficial da parceria. E aí o vascaíno foi à loucura. Em quarenta minutos, o post já tinha passado de 1 milhão de visualizações; duas horas depois, o alcance já batia a marca dos 2 milhões; ao fim de dois dias, o vídeo somava cerca de 12 milhões de views, mais de 300 mil curtidas e mais de 100 mil compartilhamentos: virou o post mais visto da história do perfil. Não há campanha de mídia que simule esse tipo de reação; é torcida em estado bruto, multiplicando a mensagem porque se reconhece nela. É o Vasco e a força da sua comunidade. 

Para o vídeo de anúncio, a Nike fez uma projeção na fachada de São Januário

Esse movimento ganha outra camada quando se coloca lado a lado o anúncio feito para o Atlético-MG. Os dois clubes entram na mesma leva de expansão da Nike no futebol brasileiro, dividindo o holofote num primeiro momento, mas a curva de engajamento é completamente diferente: o que o Galo levou vários dias para alcançar, o Vasco atinge em cerca de uma hora. Fica evidente que, por trás de um contrato de centenas de milhões de reais ao longo de sete anos, existe uma leitura de contexto. A Nike não está projetando quantas camisas pretende vender, ela está se aproximando de um clube que aprendeu a transformar história e amor em presença contínua. Porque o vascaíno sabe muito bem que o sentimento não pode parar. A diferença de engajamento não é acidental, ela nasce de uma cultura que já estava em ebulição muito antes do anúncio.

A carta de 100 anos que ainda organiza o presente

Para entender por que essa escolha faz sentido, é preciso voltar a 1924. O futebol carioca vivia sob o controle de clubes de elite, que tratavam o esporte como extensão de seus salões sociais. Quando o Vasco começou a incomodar, vencendo com um elenco formado por negros, operários, imigrantes pobres, a liga impôs uma condição para aceitar o clube: excluir esses jogadores do time principal. A resposta veio em forma de carta, com o clube recusando a exigência e abrindo mão do “lugar certo” para permanecer com quem jogava por ele.

Essa é a Resposta Histórica, que costuma ser citada como um dos episódios mais bonitos da história do clube, mas o que ela faz, de fato, é inaugurar uma maneira específica de existir. O Vasco se coloca, ali, ao lado de quem estava fora, e isso marca o clube de um jeito que atravessa o século. É isso que respalda o lema “Respeito, Igualdade e Inclusão”. Quando nós o carregamos, não estamos assinando embaixo de um discurso contemporâneo mas, sim, atualizando o gesto de 1924 e dando sequência à história do Vasco da Gama. 

Para uma marca que há anos se associa a pautas de igualdade racial, diversidade e justiça social em campanhas globais, encontrar um parceiro cuja história institucional sustenta esse tipo de narrativa é algo que pesa. A Nike se liga a um clube que já viveu, na prática, o conflito entre pertencimento popular e aceitação da elite, em vez de "adotar uma causa". Isso tem valor simbólico e estratégico no mercado atual. 

São Januário, a casa levantada no braço

A relação entre o clube e as pessoas que o formam não se explica apenas pelo que acontece dentro do campo. Ela tem um marco físico muito concreto: a construção de São Januário. Em vez de depender da boa vontade da elite que controlava o futebol, o Vasco mobilizou sua própria gente para erguer o estádio. A obra, inaugurada em 1927, foi financiada com contribuições de torcedores e sócios, num esforço coletivo que virou parte importante da memória vascaína.

Não à toa, São Januário é lembrado como o estádio que o povo construiu. Isso aparece em relatos, em materiais oficiais e em conteúdos independentes, reforçando a ideia de que o clube, quando esteve encurralado, contou com quem estava embaixo, não com quem estava no topo. Ao longo do tempo, esse gesto foi se sedimentando como prova de que a torcida é parte ativa do destino do Vasco.

O grito “Casaca!”, nascido entre os anos 1920 e 1930 no departamento de escoteiros do clube, acompanhou essa construção de identidade sonora. Ele imita, numa sequência de sílabas, a batida de bumbo e os metais das bandas da época, e passou a ser usado para celebrar conquistas no futebol e no remo, atravessando gerações. Hoje, o termo dá nome também a um dos movimentos políticos mais tradicionais ligados ao Vasco, o que mostra como símbolos criados no início do século passado continuam organizando a vida institucional do clube.

Os "casacas".

A torcida que nunca parou de contar essa história

Se essa fundação histórica segue fazendo efeito, é porque a torcida aprendeu a manter a narrativa em circulação. Ao longo dos últimos anos, mesmo em períodos esportivos confusos, para dizer o mínimo, o Vasco se destacou no ambiente digital. Em 2023, o clube registrou cerca de 8 milhões de interações no Twitter/X até maio, o que já representava mais da metade de tudo o que tinha acumulado em 2022 inteiro. No Instagram, a situação era parecida: mais de 80 milhões de interações nos primeiros meses do ano, equivalentes a aproximadamente 85% do volume do ano anterior.

No YouTube, a VascoTV consolidou uma audiência que não depende de momentos isolados de euforia. Em 2024, o canal liderou a audiência entre os clubes do Brasileirão. No ano anterior, fechou como uma das maiores audiências do país, com dezenas de milhões de visualizações em transmissões, bastidores e entrevistas (ou seja, em conteúdos longos, e não apenas em vídeos curtos de fácil viralização). Há um público disposto a acompanhar o clube de perto, em detalhes, mesmo quando não há título à vista - e meu clube que me perdoe, mas faz tempo que não há.

Essa disposição aparece também na cultura de memes. Páginas se dedicam exclusivamente a manter o Vasco em circulação constante no humor brasileiro. Não é exagero dizer que, em muitos momentos, o clube esteve mais presente na timeline como personagem de meme do que como dono de placar. No TikTok, a estética vascaína ganha outro tipo de tratamento, com o perfil oficial acumulando milhões de curtidas e conteúdos que revisitam momentos históricos e criam narrativas em cima de jogos recentes.

Para além do “engajamento alto”, o fato é que essa produção nasce da base. A torcida escreve, edita, canta, brinca, se irrita e recomeça. Ao fazer isso, mantém vivo um imaginário e um sentimento, mesmo quando a realidade em campo tenta puxar tudo para baixo.

Música, território e pertencimento

Dentro dessa produção, a música ocupa um lugar central. Ela funciona como comentário, profecia, piada interna e celebração. “A Barreira Vai Virar Baile”, por exemplo, extrapolou a arquibancada (e foi, inclusive, "roubada" por outros times). Popularizada por MC Darlan e pelo Blogueirinho da Colina, a faixa cita a Barreira do Vasco, comunidade vizinha ao estádio, e mistura o vocabulário do funk com a volta de Philippe Coutinho e a expectativa (pouco concretizada) em cima do cria.

Algo parecido acontece com “Oi, boa noite! Será que vai ter gol do Rayan hoje?”. Também puxada por MC Darlan, a música acompanha a boa fase da estrela da nossa base, transformando uma pergunta simples em refrão de estádio e bordão de rede social. Essas criações mostram uma cultura que reage rápido: um atleta desponta, e a torcida logo o transforma em personagem musical.

Quando se olha de fora, parece “só” mais um elemento da festa. Quando se observa com cuidado, dá para perceber o tanto de coisa que está sendo organizada ali: a proximidade com o entorno de São Januário, a maneira como o funk carioca encontra o futebol, a rapidez com que uma frase vira coro e um coro vira signo de identidade.

Lojas, camisas e a tal economia do afeto

Acho que está fácil perceber que o impacto da parceria com a Nike não acontece no vácuo. Ele encontra uma base que já vinha se movimentando em direção contrária ao ciclo de desilusão esportiva: a economia do afeto, que sustenta o clube mesmo quando o calendário insiste em derrubar o humor do torcedor.

Os números ajudam a visualizar esse movimento. Nos últimos anos, mesmo com campanhas instáveis, o Vasco esteve entre os clubes que mais venderam camisas no país. Parte disso vem de um desenho estético que sempre valorizou os símbolos do clube (a cruz, a faixa diagonal, a cor preta como marca visual). Outra parte vem da experiência de compra, que passou a ser organizada em torno de momentos de pertencimento. As lojas oficiais são pensadas como extensão da arquibancada, pontos de encontro para quem quer celebrar o clube fora do estádio.

O Vasco da Gama é o segundo clube com mais lojas no Brasil e o consumo do torcedor vascaíno não depende de vitória no domingo. É um consumo de continuidade, que se apoia no orgulho e na memória. A Nike chega agora e encontra um ambiente preparado com uma torcida que compra porque ama, não porque o time está liderando a tabela. A gente não tem nem a mídia do nosso lado, é só amor.

Esse tipo de relação é valiosa porque sinaliza algo que as marcas procuram há anos: comunidades que não precisam ser fabricadas. Basta dar a elas ferramentas de expressão. O vascaíno veste a camisa como quem assume um papel no mundo e isso diz muito sobre o tipo de clube que o Vasco se tornou - um clube que se reconhece na própria história e a reproduz nos detalhes.

O que Pedrinho entendeu antes de todo mundo

Quando Pedrinho, ídolo do clube, assume a presidência, a primeira leitura que ele faz é a do clima. A torcida nunca saiu de cena, o clube é que tinha perdido a capacidade de se comunicar com ela de um jeito que parecesse verdadeiro. Nunca esqueço uma frase que ele disse em uma coletiva, em alguma fase muito ruim das últimas temporadas: "a torcida do Vasco é zero exigente. Ela só quer um time que lute".

A partir daí, a estratégia se reorganiza e traz mais construção de uma narrativa própria. Isso fica claro nas escolhas de comunicação. Pedrinho não tenta vender uma ideia de grandeza desvinculada da realidade. Ele escolhe valorizar os vínculos que o Vasco já tem: a história, os símbolos, o território, o estádio, os ídolos que voltam para casa, a base que revela um craque atrás do outro. Essa reorganização da narrativa cria algo que parecia distante alguns anos atrás, a confiança narrativa (porque a confiança no resultado está um pouco difícil pra nós). 

E, para uma marca como a Nike, confiança narrativa importa tanto quanto confiança esportiva. Afinal, ela permite projetar futuro. A Nike não aposta em clubes apenas pelo potencial de venda de camisas, mas pela força de suas histórias. O que Pedrinho faz, ao recolocar o Vasco no centro da conversa pública, é devolver ao clube a capacidade de ser contado e é esse movimento que sustenta o valor cultural que explodiu no anúncio dessa semana. Ao fazer isso, Pedrinho cria uma ponte rara no futebol brasileiro: gestão que reorganiza cultura e cultura que reorganiza o valor de mercado, num ciclo que marcas globais conseguem identificar de longe.

Imagem vazada da suposta primeira camisa da Nike para o Vasco, a ser usada pelo time sub-20 na Copa São Paulo

Força cultural é performance

O Vasco ainda não voltou ao topo da tabela, mas voltou à pauta. Voltou ao vocabulário do país. Voltou ao centro de conversas que atravessam futebol, cultura, internet e mercado. Quando uma marca global decide firmar um contrato de sete anos e centenas de milhões de reais com um clube que ainda busca estabilidade esportiva, ela está dizendo algo sobre o que entende como valor.

A força cultural também é um tipo de performance. Uma que não cabe em estatística de campeonato, mas aparece no volume de vozes, no alcance orgânico, na memória coletiva, na identidade que se fortalece mesmo em tempos difíceis. Repito: o sentimento não pode parar. 

Será que as marcas, finalmente, estão entendendo que comunidades não se compram, se respeitam? Será que perceberam que cultura não é artigo de luxo, mas infraestrutura?

Porque, se existe algo que a história do meu clube ensina, é isto: quando a cultura está viva, o resto encontra um caminho. VASCO!


ISMO
Cultura em movimento

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