Um passeio com Sonic Youth pela arte contemporânea

Como uma das bandas mais influentes do noise rock transformou seu legado musical em manifesto visual

Um passeio com Sonic Youth pela arte contemporânea
Lung Leg por Richard Kern, das telas do cinema underground para a capa do Evol

Na semana passada, minha amiga Ana Dienstmann compartilhou um texto publicado no Medium há exatamente uma década, falando sobre como seu interesse por arte contemporânea foi instigado, e até amplificado, pelas capas dos discos do Sonic Youth. Achei esse ensaio um ótimo ponto de partida para ampliar a pesquisa e revisitar aqui na ISMO a trajetória visual da banda — não fazendo uma retrospectiva de todas as suas capas e discos, mas destacando aqui os projetos mais marcantes e que mais dialogam com a arte contemporânea, dissolvendo fronteiras entre música, artes visuais e cultura.

Poucas bandas na história do rock conseguiram se relacionar com a arte contemporânea de maneira tão orgânica e coerente quanto o Sonic Youth. Formado no início dos anos 1980, em meio à efervescência da cena No Wave nova-iorquina, o grupo nasceu de um caldo cultural em que música, performance e artes visuais se entrelaçavam sem fronteiras. Desde o começo, o Sonic Youth entendeu que o gesto artístico não terminava nas guitarras afinadas em microtons nem nas experimentações de estúdio: a própria identidade visual da banda era parte de um projeto estético mais amplo, em diálogo com museus, galerias, fotógrafos conceituais e artistas do circuito underground.

Sonic Youth em 1986 por Frans Schellekens/Redferns

Em uma cena marcada por colagens xerocadas e capas improvisadas, o Sonic Youth assumiu outro caminho: transformar cada disco em um objeto artístico completo. Suas capas não eram meros suportes para a música, mas extensões de sua linguagem, escolhidas a dedo entre nomes emergentes da arte contemporânea ou concebidas pelos próprios integrantes. De Gerhard Richter a Raymond Pettibon, de Mike Kelley a Christopher Wool, a banda criou um acervo visual que hoje poderia facilmente ser exibido lado a lado em qualquer museu de arte moderna.

Ahh… Youth! (1991) por Mike Kelley

Essa aproximação não foi oportunismo nem estratégia de marketing. Era consequência natural da própria formação cultural do grupo. Kim Gordon, antes de ser baixista, já circulava como artista plástica e crítica de arte; Lee Ranaldo se dedicava a colagens e instalações; e o cenário nova-iorquino no qual a banda se formou era o mesmo que fervilhava com performances no Mudd Club, exposições de Jean-Michel Basquiat e intervenções de Keith Haring nas ruas. O Sonic Youth nasceu desse caldo em que a cena de rock, artes plásticas e cultura urbana não tinham fronteiras pré-estabelecidas.

O resultado é que, ao olhar hoje para a extensa discografia da banda, podemos enxergá-la como uma espécie de museu paralelo. Cada capa é uma obra em si, cada escolha reflete um diálogo com seu tempo, cada disco é um capítulo da história recente da arte. O Sonic Youth não apenas consumiu cultura visual: ele ajudou a escrevê-la.

O primeiro álbum, Confusion Is Sex (1983), já anunciava essa vocação. A capa, desenhada por Kim Gordon, não era apenas ilustração: era um gesto expressionista, cru, de linhas irregulares, que espelhava o caráter abrasivo e ruidoso do disco.

Em Bad Moon Rising (1985), a escolha do fotógrafo conceitual James Welling, conhecido por explorar cor, abstração e arquitetura em suas imagens, trouxe um clima espectral ao disco. A foto, de um espantalho com uma cabeça de abóbora de halloween em chamas com o skyline de Nova York ao fundo, entrega um tom enigmático na capa, em sintonia com a aura sombria e quase ritualística da música. Era a primeira vez que o grupo se conectava a um artista conceitual, posicionando seu som dentro de um diálogo mais amplo da arte contemporânea americana.

No ano seguinte, EVOL (1986) trouxe uma capa freak e perturbadora: a fotografia da modelo e atriz Lung Leg, retirada de um still de um filme do cineasta Richard Kern, expoente do Cinema of Transgression. Esse movimento underground nova-iorquino fazia filmes radicais, de baixo orçamento, explorando violência, sexo e marginalidade. A imagem de Lung Leg, ao mesmo tempo erótica e ameaçadora, situava o Sonic Youth ao lado de um circuito artístico marginal e provocativo, que refletia perfeitamente o clima de tensão e mutação do álbum.

Sister (1987) ampliou esse gesto de apropriação crítica ao usar fotografias de Richard Avedon, um dos mais celebrados fotógrafos de retratos do século XX, e imagens da Disney. O contraste entre o prestígio de Avedon e o imaginário pop corporativo da Disney era propositalmente incômodo, tanto que acabou resultando em notificação judicial de todos os lados e na necessidade de alterar a capa para novas edições do disco. A capa traduzia o espírito do álbum: uma sonoridade expansiva e emotiva que ainda carregava a rebeldia do underground.

Em Daydream Nation (1988), o Sonic Youth alcançou o ápice dessa relação. A capa minimalista destaca a obra Kerze, uma pintura de Gerhard Richter, um dos artistas mais importantes do pós-guerra. Richter transitava entre o foto-realismo e a abstração, questionando a própria natureza da imagem. Ao usar sua vela solitária em fundo escuro, o Sonic Youth não apenas emprestou densidade conceitual ao álbum, mas também o consagrou como um monumento musical e visual.

Goo (1990) tornou-se uma das capas mais icônicas do rock alternativo. O desenho em preto e branco de Raymond Pettibon (tem um outro texto meu falando exclusivamente sobre o trabalho dele para o Black Flag aqui na ISMO) foi inspirado em uma foto de tablóide mostrando Maureen Hindley e David Smith, envolvidos no caso dos Moors Murders, assassinatos que chocaram a Inglaterra nos anos 1960. Pettibon traduziu a imagem em seu traço ácido e incluiu uma legenda fictícia e irônica sobre assassinato e fuga. A capa não era só provocativa: era um comentário sobre violência, cultura pop e espetacularização do crime, temas que dialogavam diretamente com o som cru e irônico do disco.

Dirty (1992) aprofundou essa linha ao trazer a arte de Mike Kelley, um dos nomes mais radicais da cena artística americana, cujo trabalho explorava infância, trauma e memória através de instalações e objetos. A fotografia de bonecos de pano distorcidos, ao mesmo tempo ingênuos e grotescos, ecoava o caráter infantilizado e brutalizado da cultura americana. A capa e encarte, assim como o disco, era um mergulho no desconforto.

Washing Machine (1995) marcou uma colaboração com Mike Mills, designer e artista que mais tarde se destacaria também como cineasta. A capa, no entanto, tem sua origem em uma fotografia feita por Kim Gordon, que registrou dois fãs nos bastidores de um show vestindo camisetas azuis da banda ilustradas com uma máquina de lavar. Para o design final, os rostos foram cortados porque os jovens não puderam ser localizados para assinar o termo de liberação de imagem. O resultado é uma arte ao mesmo tempo minimalista e conceitual, que transforma o gesto espontâneo dos fãs em ícone gráfico, alinhando o disco à tradição da arte pop e ao mesmo tempo preservando o caráter acidental e anônimo da cena.

Em A Thousand Leaves (1998), a banda recorreu a Marnie Weber, artista performática e visual que construiu sua trajetória a partir de colagens, instalações e performances que misturam surrealismo, simbolismo pop e fantasia sombria. A capa do álbum, com essa atmosfera ao mesmo tempo poética e grotesca, dialogava com a fase mais introspectiva e livre do Sonic Youth, marcada por canções extensas, improvisações e letras densamente imagéticas.

NYC Ghosts & Flowers (2000) trouxe na capa a obra X-Ray Man (1992), de William S. Burroughs, figura central da geração beat que, além de escritor, também produziu uma série de colagens e pinturas. A escolha não foi aleatória: o disco, gravado após o roubo dos instrumentos da banda, soa fragmentado, árido e profundamente experimental, características que dialogam diretamente com a obra visual e literária de Burroughs. Ao recorrer a ele, o Sonic Youth reafirmava sua filiação a uma tradição contracultural que atravessa literatura, artes visuais e música.

Nos anos 2000, as colaborações seguiram com grandes nomes da arte. Sonic Nurse (2004) trouxe obras de Richard Prince, famoso por suas apropriações de imagens de publicidade e cultura pop — cowboys, pin-ups, motociclistas — sempre carregadas de ironia crítica. Prince dava à capa o mesmo tom de apropriação desconfortável que o Sonic Youth aplicava ao rock.

Em Rather Ripped (2006), a capa foi assinada por Christopher Wool, pintor nova-iorquino celebrado por suas obras tipográficas e abstratas, que exploram repetições, borrões, sobreposições e fragmentos para tensionar o espaço entre palavra, imagem e pintura. Sua estética fragmentada, muitas vezes reduzida a gestos brutos ou frases interrompidas, ressoava com a busca do Sonic Youth por uma forma mais direta, minimalista e incisiva de expressão, com melodias mais acessíveis e estruturas quase pop, sem abrir mão do experimentalismo.

O ciclo se encerrou com The Eternal (2009), último álbum da banda, cuja capa foi criada por John Fahey. Mais conhecido como músico experimental que reinventou a guitarra folk americana, Fahey também produzia colagens e artes visuais. Ao escolher Fahey, o Sonic Youth fechava sua trajetória com uma figura que, assim como eles, viveu na fronteira entre música, arte e experimentação.

O impacto visual do Sonic Youth não se restringiu somente às capas. Sua obra audiovisual também é marcante e revela a mesma vocação para colaboração. A banda produziu videoclipes em parceria com cineastas como Tamra Davis, Claire Denis, Spike Jonze, Harmony Korine, Nick Egan, Dave Markey e Ray Agony — muitos deles ainda no início de carreira, antes de construírem trajetórias sólidas no cinema e na cultura pop. Essas obras, muitas vezes experimentais, fragmentados e cheios de estranhamento, expandiam a linguagem da banda para além do som, transformando o videoclipe em outro território de risco estético e diálogo com as artes visuais.

100%, dirigido por Spike Jonze em início de carreira

Mais de três décadas depois de sua estreia, o Sonic Youth permanece como um caso único: uma banda que fez de cada álbum não apenas um registro sonoro, mas também um comentário visual e conceitual sobre seu tempo. Ao abrir espaço para artistas tão distintos quanto Gerhard Richter, Raymond Pettibon, Mike Kelley ou Marnie Weber, o grupo dissolveu fronteiras entre underground e museu, entre contracultura e alta cultura. Suas capas, e também seus videoclipes, não funcionam como ilustrações, mas como ensaios visuais que expandem o significado da música. No fim, o legado do Sonic Youth é justamente esse: provar que a música pode ser mais que um manifesto sonoro — pode ser arte contemporânea em sua forma mais ruidosa, inquieta e radical.

Kerze por Gerhard Richter

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