Springblade: das pistas para as quebradas
Como um tênis de corrida ganhou as periferias de São Paulo?

Quando se planeja o lançamento de um produto, para além do item em si, há todo um trabalho de estudo, pesquisa, estratégia, definição de público alvo, e afins. Mas a real é que por vezes entender o comportamento do consumidor não é suficiente para antecipar com precisão qualquer resultado. São inúmeros os casos de insucesso nas mais diferentes áreas e indústrias, sejam celulares que não venderam bem, carros que saíram de linha antes do previsto e coleções de roupa que ficaram acumuladas em estoque causando prejuízo. Por outro lado, a história nem sempre termina de forma negativa, já que, por mais que marcas queiram definir a cultura, são as comunidades quem realmente ditam as histórias a serem contadas.
O primeiro artigo publicado aqui na ISMO falou um pouco sobre subculturas que fizeram do Air Max um marco do universo sneakerhead e agora, impulsionado por uma recente entrevista de Caio Amato, presidente Global da Oakley e responsável pela criação de outros ícones do Estilo, quero lembrar como um erro se tornou um enorme sucesso. No episódio #916 do Podpah, Caio falou em duas horas sobre sua trajetória e como muito novo ocupou posições relevantes em marcas internacionais como a japonesa Mizuno e a alemã adidas. Na primeira, teve participação ativa no desenvolvimento do Prophecy, e na segunda, criou o Springblade, que pelo título do texto você já sabe que é o tema deste artigo.

Pensado para as pistas
Em 2013, o mundo da corrida era bem nichado, muito distante do que é possível observar hoje em dia, onde 1 a cada 7 stories é o print de tela do Strava com o “treino do dia” de algum amigo que embarcou no esporte semana passada. Apesar disso, produtos de corrida, principalmente os tênis, tem um histórico antigo de relevância para marcas de calçados: primeiro por puxarem o desenvolvimento de novas tecnologias, que depois poderiam ser aplicadas em outros esportes e segundo pela versatilidade, fazendo com que usuários casuais alavanquem os números de vendas. Dito isso, o perfil dos tênis era mais “conservador” e hoje todo mundo pira num daddy shoe, mas na época os mais jovens achavam que era coisa de tiozão mesmo.


Tecnologias com o Lunarlon e o Flywire surgiram nos ténis de corrida e pouco tempo depois adaptadas para outras áreas, como o skate
Nesse mesmo ano a adidas decidiu lançar uma tecnologia que prometia revolucionar a corrida e colocou nas prateleiras o Springblade, um tênis com visual duvidoso, futurista, com 16 lâminas de plástico no solado. O objetivo era promover retorno de energia a cada passada, tipo o que os tênis de placa fazem hoje em dia, te empurrando pra frente e aumentando a velocidade. O produto mirava no futuro, não só pela proposta de nova tecnologia mas também pela estética que era bem diferente do que outras marcas e até a própria adidas apresentavam nas coleções.

Apesar dos esforços, o tênis não performou bem e foi muito criticado por não entregar os resultados prometidos, ser pesado demais para a prática esportiva, ser caro demais comparado aos demais concorrentes - o tênis foi lançado por U$180,00 na gringa, sendo que a média girava entre U$100,00 e U$130,00 - e por quebrar com facilidade. Sim, parece estranho ouvir que um tênis quebra, mas vamos combinar, botar umas lâminas de plástico na sola não é lá a melhor das ideias. É tipo nos desenhos quando um personagem colocava mola na sola de um tênis para pular mais alto. Enfim, a situação ficou tão complicada que a adidas tomou um processo coletivo por propaganda enganosa.
A virada no sul global
Um ícone da dança contemporânea periférica surgiu com um Springblade nos pés
Talvez tudo de negativo que falei até aqui não tenha chegado aos seus ouvidos na época que o tênis desembarcou no Brasil, e falar que ele foi um fracasso pode soar estranho também. Isso acontece porque no nosso país, principalmente em São Paulo, o Springblade foi um baita sucesso, não necessariamente de números, porque esse é um dado que eu não tenho, mas de reconhecimento, e isso aconteceu bem longe da cena de corrida.
Por aqui o Springblade chegou por modestos R$1.000,00 reais, preço que assusta e afasta boa parte do público consumidor, mas o valor foi uma das coisas que promoveu o tênis. O apelido “adidas de mil” pegou rápido e em um momento que o funk ostentação, como era conhecido subgênero, explodia na capital paulista, o tênis virou símbolo de status e objeto de desejo de boa parte da juventude periférica. Portar um desses era sinal de prestígio e do nada todo mundo, ou melhor, toda a São Paulo queria estar com um adidas de mil nos pés.
Como tudo o que faz sucesso no Brasil, logo o tênis era encontrado nos camelôs da cidade em falsificações e quem se interessava pelo assunto já começava a identificar as diferenças para saber qual era original e qual o falso. A real é que pouco importava, porque ser visto com um desses na quebrada já significava que você tinha bom gosto, movimento similar que aconteceu com os óculos da Oakley, bermudas da Cyclone e camisetas da Onbongo com a estampa “STAFF” nas costas.
O que para alguns era visto como esquisito, chamativo, sem apreço estético, para toda uma comunidade era uma forma de expressar autenticidade, de mostrar sua picadilha, de se sentir pertencente à um movimento. O Springblade foi um dos vários itens da expressão cultural e moda periférica que trazia consigo a representação da superação das adversidades, da resiliência e da criatividade desse público que se desenrola para atingir seus objetivos numa realidade de escassez.

Ainda hoje, a lembrança do Springblade está presente no imaginário de quem viveu a época. Na entrevista ao Podpah, Igão brinca que Caio Amato deveria ter um busto em todas as quebradas da cidade, por ser responsável pelo tênis, tamanho o impacto que o mesmo gerou. É indiscutível que, independente do resultado que o produto trouxe para a adidas, uma geração sempre se lembrará do tênis e, certeza que se voltasse para as lojas hoje em dia, uma não ia durar muito tempo os estoques.