Sneakers, estética e geopolítica: quem cria, quem lucra, quem inspira
O centro do jogo cultural está mudando, mas será que o Brasil está sentado à mesa?
A Nike lançou uma coleção na Costa do Marfim antes de Nova York. A adidas comemorou 20 anos de seu centro criativo em Xangai com coleção exclusiva para o público chinês. A Bosideng, marca local chinesa, tem se expandido globalmente e colaborado com designers internacionais, invertendo a lógica tradicional.
O eixo do poder criativo está mudando. E o Brasil? Continua esperando aplauso de fora?
Nike e a estratégia "region-first"
Não é exagero dizer que o lançamento do Nike RK61 com o coletivo Air Afrique, direto da Costa do Marfim, foi um marco. Pela primeira vez, a gigante do sportswear estreou um tênis no continente africano antes de qualquer outro lugar do mundo.
Mais do que simbólico, o gesto foi estratégico: o modelo homenageia a extinta companhia aérea Air Afrique, evoca a estética panafricana e teve campanha local com Didier Drogba. E o mais importante: foi pensado para circular ali, com meios de pagamento regionais e distribuição adaptada à realidade africana.


Nike x Air Afrique
Esse tipo de movimento tem nome: "region-first strategy" e não é tendência passageira, é o sinal de um novo mapa geopolítico da cultura sneaker e da moda.
adidas: Oriente como centro criativo
Historicamente, tudo orbitava EUA, Europa e Japão, mas a lógica mudou: não basta vender para outras regiões, agora é preciso criar a partir delas.
A adidas entendeu isso há duas décadas, com a criação do Shanghai Creation Centre. Em outubro de 2025, comemorou os 20 anos do espaço com uma coleção exclusiva para o público chinês, uma forma de reconhecer o potencial criativo e simbólico do país.
Além disso, a marca instalou recentemente seu novo Global Capability Centre em Chennai, na Índia. Embora o foco atual do centro seja a gestão de processos globais de negócios (como finanças e cadeia de suprimentos), o plano é que esse polo também avance para áreas de inovação e desenvolvimento de produto.
A New Balance segue linha semelhante: ativações culturais em Abu Dhabi, loja conceito 1906 em Singapura e expansão no Sudeste Asiático. E até a Ralph Lauren anunciou que pretende abrir entre 20 e 30 novas lojas por ano na China, consolidando sua presença onde a demanda e o crescimento são reais.
Quando o poder muda de lado
Outro sinal do giro geopolítico é a crescente valorização de criadores e marcas asiáticas no mercado global, não só como fornecedores ou mão de obra barata, mas como potências criativas e culturais. Um exemplo emblemático é a Bosideng, tradicional marca chinesa de vestuário que por anos foi vista como local, mas que acaba de fechar com Kim Jones, que já passou por Dior e Louis Vuitton, para assinar sua nova submarca de luxo, a Areal.

Essa mudança não é só comercial, é simbólica. Se antes marcas asiáticas buscavam validação no Ocidente, agora são elas que disputam o centro do jogo, ditando tendências e contratando nomes globais para ampliar sua linguagem. A lógica se inverte: quem antes imitava, agora lidera e quem antes era moldado, agora molda.
E o Brasil, onde fica nisso?
Temos tudo: uma base enorme de consumo, uma estética singular, vocabulário próprio, criatividade de sobra. Mas seguimos no banco de reservas.
Sim, o Brasil já teve colaborações que romperam fronteiras. Em 2009, o SneakersBR assinou com a Nike o Air Max 1 “Lanceiro”, uma homenagem ao maracatu rural da Zona da Mata de Pernambuco. Em 2022, a Guadalupe Store se uniu à ASICS para lançar o Gel-Lyte III “Tropicália”, celebrando o movimento cultural brasileiro com lançamento internacional. E em 2018, a FILA também escolheu a Guadalupe para assinar sua versão do Mindbreaker 2.0 em um projeto global.



SneakersBR e Guadalupe Store já assinaram colaborações globais.
Mas o fato é que quase nenhuma grande marca de sneakers escolheu o Brasil como polo criativo principal. Na maioria dos casos, somos incluídos, mas não lideramos. Criadores brasileiros ainda enfrentam barreiras para exportar narrativas com autonomia real. A estética brasileira vale ouro - e o mundo já percebeu isso.
O ponto não é que nunca estivemos no jogo, mas que ainda não jogamos como mandantes.
Um exemplo é o coletivo Je M'appelle Brasil, formado pelas marcas Carnan, Class, Mad Enlatados, Pace, Sufgang e Quadro Creations. O grupo organizou showrooms em Paris durante as semanas de moda de 2023 e 2024, levando a cultura urbana brasileira para o centro das discussões globais de moda. Em 2025, o projeto terá edição local em São Paulo, com talk show e estreia de um documentário que narra essa trajetória. O movimento mostra que, mesmo com reconhecimento lá fora, ainda é aqui que essas narrativas precisam ser ancoradas.

Por enquanto, o Brasil ainda é visto como vitrine exótica. Um moodboard com sotaque, mas sem legenda própria.
O país que serve de referência, mas não de prioridade
O "Brazilcore" explodiu mundo afora, aparecendo em coleções de marcas como Corteiz e Palace. Estrangeiras, elas reinterpretaram símbolos brasileiros como a camisa da Seleção e diversos outros signos das nossas estéticas (especialmente periféricas).


Mas quem lucra com isso? Não é a quebrada, não é o designer local, não é o artista brasileiro. O capital simbólico circula, mas o capital financeiro não. A estética brasileira vale ouro, e o mundo já entendeu isso, mas o retorno simbólico, criativo e econômico continua ficando do lado de lá.
Os números não mentem (mas enganam)
A América Latina deve movimentar US$ 6,5 bilhões em sneakers até 2030, com crescimento de 3,5% ao ano. Parece robusto, mas na prática, o investimento criativo não acompanha esse potencial.
Enquanto isso, a África, com previsão de US$ 3,49 bilhões, já atrai lançamentos “region-first” e atenção estratégica. A China é tratada como centro criativo consolidado, com hubs como Xangai influenciando diretamente produtos e campanhas.
Enquanto a Ralph Lauren expande sua presença na China com planos ambiciosos de crescimento (prevendo até 250 lojas no país e mirando alta de dois dígitos), a América Latina segue sendo tratada nos relatórios como mercado promissor de vendas, mas ainda distante das decisões criativas e estratégicas centrais.
As perguntas que ficam
O mapa do poder cultural está sendo redesenhado. A indústria entendeu que precisa criar com (e não apenas para) os mercados fora do eixo.
O Brasil vai continuar como referência visual ou se torna protagonista criativo? O que falta pras marcas pararem de olhar pra cá como cenário e começarem a ver como estúdio?
Talvez não seja só sobre o que as marcas decidem. Talvez a gente também precise parar de esperar o carimbo do gringo pra valorizar o que é nosso.