Seu uniforme de trabalho pode ser item de moda

Como na história da moda roupas de trabalho foram e são referência para o high-fashion

Seu uniforme de trabalho pode ser item de moda

Durante o último MET Gala, festa anual em que os famosos da gringa se reúnem para angariar fundos e desfilar looks no tapete vermelho, Bad Bunny apareceu com um chapéu de palha, no maior estilo Chico Bento. O que pouca gente percebeu é que o acessório na verdade é uma pava, chapéu tradicional dos trabalhadores rurais de Porto Rico, terra natal do músico e que tem sido o tema central do seu mais recente álbum, Debí Tirar Más Fotos. O item, carregado de significado cultural e histórico, não só acrescentou novas camadas ao visual do artista como mostra a forte relação entre moda e o mundo do trabalho.

Dia Dipasupil/Getty Images via AFP

A moda, como conceito e cultura, pode ser confundida como algo efêmero, momentâneo e, principalmente, algo distante das camadas mais populares da sociedade, mas não é incomum encontrar fortes inspirações em universos que caminham muito longe das passarelas e ateliês de criação das grandes marcas. Se as roupas são concebidas essencialmente para serem úteis, o uso diário, no trampo mesmo, exige resistência ao desgaste e funcionalidade. Essas características hoje ultrapassam os limites dos campos, fábricas e oficinas e roubam a cena no cenário fashion global e brasileiro, ressignificando não só tendências mas também trazendo reflexões sobre produção e consumo.

Do campo para as cidades

As calças são um baita exemplo de como o trabalho influenciou a história da moda em modelos criados para funções específicas e hoje fazem parte do cotidiano de boa parte da população. A Levi’s e seu jeans, criado no século XIX para atender as necessidades dos mineiros norte americanos, exigia um tecido robusto, amplo e reforçado, e ainda incluíram os rebites de cobre em áreas de maior desgaste, características que conquistaram os trabalhadores e anos depois se tornaram um item básico e atemporal no guarda roupa de geral.

Quando durabilidade era uma característica positiva

Já do outro lado do planeta, os japoneses e suas calças tobi, utilizadas por trabalhadores da construção civil, possuem modelagem que chegou ao ocidente por meio de marcas de criadores com raízes nipônicas, mas que hoje são “copiadas” a torto e a direito. E isso não é necessariamente um problema, já que perceber características de caimento e escolhas de tecido impactam diretamente no conforto e usabilidade de um item só impulsionam a qualidade geral do mercado. O streetwear contemporâneo aprendeu rápido com as técnicas japonesas e hoje é difícil encontrar uma marca que não os referencie para criar alguma peça ou as vezes coleções inteiras. 

As chino também, que originalmente eram parte do uniforme militar francês e britânico do século XIX, se tornaram vestimentas civis tão populares que é usada de skatistas a frequentadores do Villa Country. 

E apesar de parecer algo pouco pensado de forma objetiva, quase como uma consequência do desenvolvimento técnico da industria têxtil e aplicação disso no desenvolvimento, essa relação entre utilitarismo e estética já foi algo muito discutido e aplicado há mais de um século.

É comum pensarmos na Bauhaus, escola vanguardista de arte alemã, pra falar sobre essa troca entre função e "estilo", mas um pouco antes, na Russia a também escola vanguardista Vkhutemas, já trazia propostas que hoje ainda são tabu, ou pelo o menos parecem novidade. Nomes como Alexander Rodchenko e Varvara Stepanova propunham modelagens sem distinção de gênero, tecidos, estampas e cores que se relacionassem com o seu trabalho, seja manual ou criativo, o que na época também tinha pouca distinção.

Roupas agênero não são novidade pro Rodchenko

Uniformes de luxo

Ok que atualmente qualquer tendência já recebe um nome rapidinho, como gorpcore, mob wife, e outros core da vida, mas a Workwear, ou “roupa de trabalho” como se traduz ao pé da letra, já é uma realidade há algum tempo, e não estamos falando de uniforme. Ou melhor, estamos sim. É que marcas como Carhartt e Dickies, centenárias, viram suas peças que originalmente eram desenvolvidas para uniformes de carteiros, trabalhadores fabris e cozinheiros, serem adotadas por artistas, skatistas e fãs de streetwear no geral. A parada ficou tão séria que lançaram linhas específicas para esses públicos.

A Carhartt WIP, divisão mais streetwear da marca, surge quando os representantes europeus da marca recebem autorização para criar a própria linha de produtos e entenderam que se comunicar com subculturas era mais interessante do que só importar as peças de workwear. O resultado é que hoje silhuetas clássicas como jaquetas de sarja e calças de ripstop são reapresentadas com estampas, patches, novos recortes e em collabs com marcas do peso de Comme des Garçons, Marni, Junya Watanabe, entre outros.

Já a Dickies não demorou muito para conquistar o coração dos skatistas californianos e o boom dos Trunk Boyz nos anos 2010 fez a subcultura, que na época já era influente no mundo da moda, popularizar as calças que antes eram usadas pelos carteiros da DHL. Hoje, com uma linha feita especialmente para gastar na lixa, as possibilidades são muito mais amplas.

É interessante também pensar como parte dessas subculturas que adotaram o workwear como parte do seu vestuário, tem no seu fazer profissional muito da estética. Costumam ser grupos que o trabalho manual se mescla com o criativo. E não é como se existisse uma separação clara entre roupa de trabalho, roupa de sair e roupa de ficar em casa - tema aliás que já falamos rapidinho aqui antes, vale ler também - mas que buscam essas características de conforto e funcionalidade, seja enquanto estão ralando, ou quando estão de boas.

Feito pra durar, mas até quando?

Agora, uma pergunta importante a se fazer é: o hype não cobra o preço? Geralmente essa alta demanda inflaciona valores e restringe acessos, o que sim, de certa forma aconteceu, mas junto trouxe ressignificação sobre o consumo de roupas. Quando falamos de peças de trabalho, consideramos roupas feitas para aguentarem condições acima do uso normal do dia a dia, com durabilidade que atravessa anos. Não é incomum abrir o ebay e encontrar peças vintages de 40 anos e inteiras, inclusive com modelagens que já não se encontram hoje.

O coletinho de obra também vai pra jogo

E esse é um ponto muito relevante sobre o impacto que esse tipo de roupa gera ao ser consumida, afinal dificilmente roupas hoje feitas nos moldes atuais possuem materiais, aviamentos e até mão de obra especializada para durarem tantos anos. Mesmo entre marcas de alto valor, roupas se tornam descartáveis, o que permite tendências durarem meses e uma mesma pessoa consiga participar de todas elas sem a preocupação de precisar atualizar o seu guarda-roupa a cada estação.

O consumo de peças em brechós - inclusive das poucas formas de se conseguir comprar algumas marcas no Brasil - toca em pontos como slow fashion, qualidade de produção da indústria e sustentabilidade. Se a Shein envia cerca de 1 milhão de remessas todos os dias, roupas feitas para durar geram interesse de um nicho de jovens que optam pela qualidade e não necessariamente pelo preço. Quando a meta é comprar menos e comprar melhor, atribuir as características de uma peça feita pra surrar parece um baita atrativo.

Alguns brechós, como o Neon Archive, se especializam em pecas de streetwear e workwear

Durabilidade, inclusive, é considerado um erro de negócio atualmente, afinal, uma peça durar o resto da vida significa que você não vai precisar comprar novas roupas todo semestre e aí a roda não gira. A qualidade de construção caiu propositalmente, mas não estamos aqui pra falar exatamente disso.

No fim, a moda é uma cultura viva que se alimenta de diversas fontes, e o mundo do trabalho é uma mina absurdamente rica. Das peças utilitárias, escolhas de modelagens pensadas para atividades específicas, tecidos que favorecem a durabilidade ou a respirabilidade e levam em consideração o contexto onde serão utilizadas, são elementos que aliados à uma estética bem definida, podem ser o segredo para marcas e looks atemporais.


ISMO
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