Rogério Duarte, o arquiteto da Tropicália

O homem responsável por imagens que dificilmente sairão do imaginário brasileiro

Rogério Duarte, o arquiteto da Tropicália
Foto: Rodrigo Sombra

Rogério Duarte Guimarães, figura central do movimento tropicalista, foi o verdadeiro arquiteto visual por trás de uma das mais importantes transformações culturais do Brasil. Sabe aquelas criações que são tão ligadas ao imaginário nacional que, por vezes, esquecemos o responsável por trás delas? Então, Rogério é esse tipo de artista. Do icônico pôster do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” à clássica capa do disco homônimo de Caetano Veloso (1968), Rogério Duarte foi um mestre do design e da arte, capaz de combinar rigor técnico e a racionalidade formal com a anarquia e o caos lisérgico que definiam aquele período efervescente. Sua obra não foi apenas um reflexo, mas um motor estético do tropicalismo, imprimindo uma identidade visual que uniu o popular e o erudito, o nacional e o universal.

A trajetória de Rogério Duarte começou no interior da Bahia, em Urandi, mas foi na capital Salvador que sua vida artística decolou. Ali, ainda na infância, ele conheceu Glauber Rocha, que se tornaria um de seus amigos e colaboradores mais próximos. No lugar certo e na hora certa, o futuro ainda reservou encontros tão influentes quanto. Durante sua formação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Duarte trabalhou no Museu de Arte Moderna da Bahia, que era dirigido pela arquiteta Lina Bo Bardi, que também foi responsável pelo projeto arquitetônico da instituição. A influência de Lina foi fundamental, expondo Rogério a uma visão de mundo onde a arte se integrava à vida cotidiana e à cultura popular.

Buscando ampliar horizontes, em 1960 se muda para o Rio de Janeiro. Na então capital federal, seu perfil multidisciplinar escoou para a formação acadêmica. Duarte frequentou a Escola de Belas Artes, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e a Escolinha de Arte do Brasil. Ainda no Rio, pode trabalhar com Aloísio Magalhães, referências do design moderno brasileiro, a quem depois abandonou por achar muito similar, quase uma cópia das estéticas alemãs. Curiosamente, pouco depois foi estudar com o esteta alemão Max Bense. As teorias de Bense sobre a semiótica e a estética da informação ajudaram a construir a base teórica do pensamento de Duarte, criando uma linguagem visual racional, mas que não abria mão da criatividade e da expressão genuína.

Gilberto Gil e Rogério Duarte em 1969 Reprodução: internet

Essa formação plural, que uniu o modernismo de Lina Bo Bardi, o racionalismo de Max Bense e a diversidade da cultura popular brasileira, moldou um artista que anos mais tarde, ao retornar à Bahia, seria convidado a lecionar na UFBA, recebendo o título de notório saber.

A obra de Rogério Duarte é inseparável dos dois principais braços do movimento tropicalista: o cinema e a música. Sua contribuição para o Cinema Novo, por meio dos cartazes de Glauber Rocha, por exemplo, produziu imagens marcantes e icônicas. Duarte era muito influenciado pelo diretor soviético Sergei Eisenstein, e utilizava a fotomontagem como uma ferramenta para construir significado e sintetizar a essência dos filmes.

Os cartazes eram como manifestos visuais. Para "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), ele criou uma imagem que transmitia a aridez, a violência e a religiosidade do sertão representados no filme. Já em "Terra em Transe" (1967), a arte refletia o caos político entrecortado pelo delírio e obsessão pelo poder. Sua estética era uma mistura de tipografia sem serifa, cores vibrantes e elementos gráficos desconstruídos que representavam uma ruptura com a publicidade da época, abraçando uma linguagem de vanguarda que, em paradoxo, se comunicava diretamente com o público.

Na música, Duarte foi o responsável por capas que entraram para a história. No segundo disco de Caetano Veloso (1968), aparece o retrato do artista rodeado pela ilustração psicodélica entre dragões e bananas. Parece surreal por escrito, mas também é à vista. Ele também criou capas para Gilberto Gil, Gal Costa e Jorge Ben, o que rendia um nível de exposição altíssimo para seus trabalhos. Rogério, no entanto, sempre fez questão de ressaltar que a música era apenas uma das faces do tropicalismo. Sua visão era a de um movimento total, que incluía o design, o cinema, o teatro e as artes plásticas, todos em busca de uma identidade brasileira moderna e crítica.

Rogério Duarte não apenas criou, mas também teorizou sobre arte. Seu texto "Notas sobre o Desenho Industrial" é considerado um manifesto da estética tropicalista. Nele, Duarte propõe um design que fosse ao mesmo tempo decolonial e universal, capaz de dialogar com o que havia de mais avançado no mundo sem cair na armadilha do nacionalismo barato, um conceito que ele via como inútil e populista.

Para Duarte, a estética era o campo de batalha ideal para se opor à ditadura militar. O regime, em sua visão, impunha uma lógica racionalista e autoritária, e a única forma de resistir era através de uma estética que subvertesse essa ordem, que abraçasse a desordem, o caos e a liberdade. Sua arte, era um ato político, uma forma de expressão que desafiava as convenções e provocava o pensamento em tempos de repressão.

A efervescência criativa de Rogério Duarte foi interrompida ao ser preso e torturado pelo regime, e o trauma destruiu seu psicológico fazendo com que se afastasse dos holofotes. No entanto, o artista não parou de criar. Ele se reinventou, explorando outras formas de expressão como a poesia, a música e até a tradução.

Foi nessa fase de reclusão que ele mergulhou no movimento Hare Krishna e no estudo do sânscrito. Essa busca espiritual resultou em trabalhos de grande profundidade, como a tradução do "Bhagavad Gita" (1998) publicada pela Companhia das Letras, e o livro "Gita Govinda – A Cantiga do Amor Negro" (2011). Sua arte, que antes era uma crítica social, agora se voltava para uma busca interior, mostrando a resiliência de um espírito criativo que se recusava a ser silenciado.

Apesar de ativo nos anos 1990, o retorno de Duarte foi gradual. Em 2003, ele lançou o livro "Tropicaos", uma obra de memórias onde revisitou sua visão sobre o movimento tropicalista. No mesmo ano, foi convidado pelos Titãs para criar a capa do disco Como Estão Vocês?, provando que sua estética ainda era relevante e atual. Sua amizade com os tropicalistas continuou até o fim da vida, e prova disso é a faixa "Gayana", composta para o álbum Abraçaço (2014), de Caetano Veloso.

Após sua morte, em 2016, a importância de Rogério Duarte foi reavaliada e celebrada. A mostra "Marginália 1", no Museo Jumex, na Cidade do México, em 2018, e o documentário "Rogério Duarte, o Tropikaoslista", dirigido por Walter Lima, são exemplos de como sua obra, que foi criada para um tempo específico, se tornou atemporal. Rogério Duarte não foi apenas um designer, mas um intelectual que utilizou a imagem como terreno fértil, deixando um legado de resistência e inteligência que continua a inspirar e a ecoar na cultura brasileira.


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