risotropical e o design como ferramenta de luta

Cearense radicado em São Paulo, Renan Costa Lima usa o design gráfico e a risografia como ferramentas de expressão e resistência cultural

risotropical e o design como ferramenta de luta

Em um tempo em que o design gráfico muitas vezes se limita à estética a serviço do mercado, Renan Costa Lima faz o caminho inverso: usa a criação visual como dispositivo de resistência, memória e mobilização. Cearense radicado em São Paulo, ele fundou a risotropical — projeto que mistura gráfica independente, loja, galeria e espaço de experimentação — e transformou a impressão em risografia num meio potente de expressão política e construção coletiva.

Com passagens por coletivos de arte urbana, projetos culturais e uma trajetória marcada pelo cruzamento entre arte, ativismo e comunicação, Renan vem criando artes, cartazes e produtos que viralizam ideias anticapitalistas, anticoloniais e que propagam o orgulho latino.

Trocamos uma ideia com ele sobre sua trajetória, influências do design e da arte conceitual, a importância de se posicionar politicamente — mesmo em meio às contradições do mercado — e os desafios de manter espaços culturais autônomos em uma cidade cada vez mais hostil à cultura independente.


Para começar, se apresente. Quem é você, e o que você faz?

Eu sou o Renan Costa Lima, cearense. Vim pra São Paulo para continuar meus estudos, minha pesquisa visual e gráfica. Quando cheguei, já tinha feito um ano de faculdade no Canadá, indo para o caminho do design gráfico, com um trabalho paralelo nas artes visuais.

Atuava dentro do circuito das artes, participando de exposições, com um trabalho individual e outro em conjunto com o Vítor César e o Rodrigo Costa Lima, meu irmão. A gente tinha um coletivo chamado Transição Listrada, muito ligado ao pensamento urbano e a intervenções urbanas. Sempre tive essa coisa com a criação de imagem — gostava disso — e as ferramentas do design gráfico foram se apresentando para mim. Nas artes visuais, eu atuava muito nesse caminho da imagem: vídeo, foto, desenho, cartazes. Sempre vi a imagem como veículo de mensagem.

Desde criança, tinha essa relação: meus tios tinham uma gráfica no Ceará. Achava muito legal o universo gráfico, ver a tinta no papel, a coisa da reprodução. Meu primeiro emprego foi numa gráfica rápida, no fim dos anos 90. Trabalhei como micreiro, fazendo panfleto no Corel.

Curiosamente, naquela gráfica tinha uma Riso — eu nem sabia que era esse o nome da máquina. Anos depois, já fora desse trabalho, a gente ainda com o coletivo Transição Listrada e um espaço chamado Base — uma mistura de ateliê e galeria —, eu falava para os outros: “Tem uma máquina lá na gráfica onde trabalhei que é tipo uma xerox, mas troca o toner. Imprime monocromático, azul, vermelho…” depois fui me tocar que aquilo era uma Riso, os primórdios dela. No Ceará, eram máquinas sem interface com computador — a gente usava o scanner direto, como até hoje em alguns casos. O legal é que eu já percebia que essa máquina dava outro valor para o layout, deixava mais interessante, tinha uma qualidade ali de materialização do produto que chamava atenção assim do olhar, né? Mas é isso, eu vim para São Paulo estudar, continuar meus estudos, fiz design gráfico aqui no Senac, minha ideia sempre era voltar para o Ceará, mas a cidade me absorveu e quando eu vi, não dava mais para eu voltar.

Para quem ainda não conhece, explique para um leigo como funciona uma Riso? 

A Riso funciona como uma fotocopiadora preto e branco, mas em vez de imprimir direto no papel, grava uma matriz. Você tem um cilindro para cada cor que quer usar, como se fosse uma tela de serigrafia cilíndrica. É um híbrido de serigrafia, Xerox, fotocopiadora e offset. Você coloca o cilindro da cor, grava a matriz, e a máquina começa a duplicar o layout.

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crédito video: cinema físico

No fim, é uma engenhoca japonesa baseada na técnica de serigrafia. A patente dela é de serigrafia rotativa: ela cria um estêncil, envolve o cilindro, e vai girando — o papel passa rápido por baixo e vai sendo estampado.

Riso, em japonês, aparentemente significa “ideal”. Era uma empresa de tintas desde os anos 70 que desenvolveu essa forma de impressão de baixo custo. É uma máquina institucional: muito usada por partidos políticos, igrejas — especialmente nos EUA — para imprimir materiais sem precisar de operador especializado.

Nos anos 80 para 90, ela foi meio que hackeada por um grupo de artistas na Holanda e levada para o campo da arte.

E quando que reacendeu esse seu interesse pela Riso?

Sempre trabalhei com projetos culturais — música, cinema, dança, teatro. Fazia identidade visual, cartazes de turnê, filmes, espetáculos de dança. Mas, muitas vezes, a gente não conseguia materializar. E aí veio esse universo das redes sociais, onde tudo virou divulgação digital. Tudo virava JPG, PNG. Já cheguei na música fazendo capa de CD, que já não tinha o mesmo impacto de um vinil. Hoje em dia, até voltamos a fazer só vinil, mas na época rolava essa frustração de não ver o trabalho impresso, tinta no papel mesmo. E aí, por volta de 2013, comecei a frequentar a Feira Plana. Achava tudo muito legal e, do meu lado, como estúdio prestador de serviço, sentia que meu potencial criativo estava sempre a serviço de outras marcas. Mesmo com liberdade maior em projetos de música e cinema, ainda sentia falta de criar algo meu.

Quando vi tanta gente apresentando trabalho próprio, pensei: “Queria estar do outro lado da mesa.” No ano seguinte, comecei a participar de feiras com amigos — Tijuana, Feira Plana — e imprimi algumas coisas em Riso. Peguei dois cartazes que tinha feito para a banda Cidadão Instigado, do disco Método Túfo de Experiências, que nunca tinham sido impressos. Acho que também imprimi algo da Céu, uma ilustração com o lettering do Caravana Sereia Bloom que tinha ido para o DVD.

Fui adaptando esses materiais para Riso, juntei umas coisinhas e levei para a feira. Aos poucos fui aumentando a produção, percebi que aquilo podia funcionar como uma fonte de renda mesmo — vendia uma peça por R$ 50, R$ 100, e aquilo começou a virar uma parte importante do rendimento do estúdio.

Como nasceu a risotropical? Ela é um braço do Estúdio Tropical, certo? 

Em 2013, depois de um boom de trabalho, o ritmo diminuiu, e pensei: vou investir mais tempo na minha criação.

Sempre tive essa coisa de explorar novas frentes no meu trabalho. Fui liberando isso aos poucos. Comecei a vender nas feiras, tive contato com uma pessoa da Tok&Stok e falei: “Cara, tenho vendido em feira, acho que tem a ver com vocês. As pessoas usam em casa.” Pensando num circuito de sustentação para o negócio.

Eu achava muito legal o que via lá fora — banda com merchandise, banquinha em festival, designer com um monte de pôster para vender. Essa cultura do pôster/cartaz, que aqui no Brasil não tem com a mesma força. Na época, eu imprimia muito material que tinha feito para as bandas, mas pensei: “Vou inventar umas coisas pra vender também.” Depois de um ano de conversa, vendi uma linha de quatro pôsteres na Tok&Stok. Isso coincidiu com um momento em que eu queria dar oficina de risografia no Ceará.

Banquinha em feira nos primórdios da Riso Tropical

Queria comprar uma Riso para levar essa experiência: mostrar que, se você é ilustrador e sua revista fecha, ainda pode inventar suas próprias coisas e transformar em produto. Na faculdade de design gráfico, diferente do design de produto, isso não era falado — a gente era muito treinado para ser prestador de serviço. E para mim essa chave virou. Queria levar isso para os outros também.

Apareceu uma Riso à venda, mas era muito mais cara do que eu imaginava. Achei que ia gastar um tanto, gastei seis vezes mais. Aí pensei: “Isso aqui tem que virar um negócio.” Eu não tinha grana, mas estava fazendo três trabalhos com clientes. Falei: “Cara, será que ao invés de imprimir no offset, a gente imprime na Riso?” E fui pagando a máquina com esses trabalhos. A Riso virou um laboratório dentro do meu estúdio — que se chama Estúdio Tropical — e aí surgiu o nome risotropical.

Ali ganhei uma liberdade: pensava uma coisa, testava logo. Mesmo já tendo como imprimir A3 em gráfica rápida ou jato de tinta, a qualidade visual não é a mesma. A serigrafia tem aquele impacto, aquela satisfação de ver o layout impresso com força. A Riso é diferente, mas dá essa mesma satisfação. Ela tem muito pigmento, tem textura, tem verdade. Não tenta imitar a perfeição da tela do computador, tem características próprias.

E aí comecei a me perguntar: “O que eu vou criar? O que eu quero dizer?” No começo saíam coisas bonitas, mas que não diziam nada. Com o tempo, comecei a trazer temas mais do cotidiano, políticos, para trocar ideia com as pessoas. Um dos trabalhos que marcou esse momento foi a série de cartazes: Soy Latino, Soy Americano, Soy Tropical.

O já clássico tríptico Soy latino/a, Soy Americano/a, Soy Tropical

Esse trabalho partiu da ideia de o Brasil ser o único país de língua portuguesa na América do Sul. A gente cresceu olhando para a América do Norte, não para o lado. Na infância a gente nem percebe, mas na adolescência começa a questionar. Quando você vai para fora e ouve que é latino, e não “brasileiro”, começa a se entender assim. “Sou latino, sou americano” — um termo que os EUA usurparam, que nem é de origem dos povos daqui, Abya Yala seria o nome original dessas terras. E com o tempo entendi que o futuro era feminino e precisava ter um Soy Latina, Soy Americana e Soy Tropical e desfazer um pouco desse patriarcado.

Muitos dos posters que você desenha e lança pela risotropical carregam mensagens de teor político, progressistas, anticapitalistas, comunistas, antiguerra, sobre orgulho latino, orgulho nordestino…qual é a importância desse ativismo político em sua vida?

Eu cresci nos anos 80, minha infância foi nesse período. Minha família virou crente — e ser crente naquela época era sofrer bullying. Era visto como quem “não aproveita a vida”, porque não bebe, não faz isso ou aquilo. Mas, ao mesmo tempo, era alguém visto como ético, sério, respeitado. Tipo: “Posso contar com aquela pessoa.” E hoje em dia é o contrário, né? Ou você é um otário, é enganado, ou é um enganador. O que a gente vê é terrível.

Estou comentando isso porque, desde que fui crescendo, sempre tive essa preocupação de me comunicar, de tentar dizer algo, de pensar no outro e dialogar. Lembro que numa eleição de prefeito, acho que em 96, eu e um amigo fizemos vários layouts. Eu já trabalhava com Corel — ganhei um do meu pai por volta de 94, com uns 15 anos, e comecei a fuçar. Já fazia folder para algumas coisas.

Nessa eleição, era aquele cenário de sempre: um social-democrata (ou nem tanto, tipo PMDB) e um candidato do PCdoB, que até tinha chance. Aí, eu e esse amigo começamos a escrever várias mensagenzinhas, fizemos os layouts, imprimi numa transparência — eu tinha um projetor de slide — e a gente saía pela cidade numa caminhonete do pai dele. Levava extensão, ligava em alguma borracharia e projetava nos viadutos, nos prédios.

A gente foi para um comício do candidato e ficou projetando na empena de um prédio, para todo mundo ver. Já tinha essa inquietação com o sistema — não tinha ainda o vocabulário, as leituras, mas dava para ver que o que estava posto era uma desgraça para gente.

Lá no Ceará, o anticomunismo era muito forte. Lembro de uma eleição, talvez 87 ou 89, em que o candidato do PCdoB ou PDT era acusado de “comer criancinha”, aquela velha história. Isso sempre existiu, só foi voltando.

E aí, crescendo, fui entendendo: o capitalismo é uma desgraça para nós. É acúmulo. O comunismo é comum — é para todo mundo, para dividir. E aí vem aquele papo de classe média: “Ah, mas você vai querer não ter?” E eu pensava: “Cara, se for pra todo mundo ter igual, tô a fim.” Esse fantasma do comunismo era, na real, uma salvação.

Taca 🔥 no Capitalismo

Você sempre foi bem ativo politicamente, de se posicionar, colar em manifestações, desde 2013…

2013, para mim, foi uma vergonha. A direita cooptou rapidamente uma causa importante.

Quando comecei a ir para as manifestações, também tinha uma situação pessoal: a gente tinha tido nosso primeiro filho, era tudo muito novo. Não dava para sair de casa e deixar a Kaká (sua mulher) — não tinha sogro nem sogra por perto, éramos só nós dois cuidando do bebê. Mas ela disse: “Vai.” E fui.

Lembro que, na primeira manifestação, os discursos já estavam tomados pela extrema direita. Foi uma que saiu pela marginal e subiu a ponte. Eu estava mais no final da multidão, vi cartazes do PSTU, umas faixas… e começaram os gritos: “Sem partido!”

Pensei: “Vixe, começou.” “Sem partido” não é bom sinal. Me lembrei logo da época do Collor, com aquele papo de “nem direita, nem esquerda”. Sempre que vem esse discurso, é conversa de direita — ou de extrema direita.

Mas também foi um momento de olhar para o futuro. A gente vinha num crescimento desde 2002, com o Lula. Eu entrei na vida adulta com o Lula fazendo o país funcionar, aos poucos, mas funcionando. O Brasil virou um lugar relevante — quarto maior do mundo, população gigante — e, ainda assim, seguimos como colônia. É muito doido. Mas naquela época, parecia que estava dando certo. E eu pensava: “Que país é esse onde meus filhos vão crescer?”

Aí veio um baque gigante. Sempre lutei para que a esquerda assumisse o poder — municipal, estadual, federal. Quando o Lula venceu a primeira vez, foi muito bom. Mas aí nosso campo virou situação, e a gente passou uns 10 anos sem se preocupar tanto. Tinha lutas no Congresso, mas o projeto seguia.

Depois veio a tentativa de derrubar a Dilma. 2014 foi decisivo. A eleição foi apertada, e ali começou tudo. Foi o início do golpe do Temer. E a gente percebeu: passei minha entrada na vida adulta com o Brasil dando certo, mas agora… tudo virou instável de novo. E o futuro ficou incerto.

Fora, Temer!

E quando sai do campo de oposição e vai pro de situação, também não é um lugar fácil de se estar para fazer ativismo, né?

Sim, por ser fogo amigo mesmo, né? Tem um monte de coisa acontecendo. E, ao mesmo tempo, o Lula ganhou dessa vez muito mais difícil, ele chegou ao poder muito mais rendido do que lá atrás. Por mais que tenha tido a Carta aos Brasileiros, que já mostrava que não seria um governo tão à esquerda, é o que conseguimos — e é isso, né?

O Congresso, as projeções… pode descambar para algo muito pior. É só olhar o que aconteceu nos Estados Unidos agora: o Trump voltou, e voltou fazendo de fato o papel que queria ter feito da outra vez. E aqui, só o PL tem mais de 100 deputados na bancada.

Enfim, eu sou um adulto tentando lutar por nós, né? Viver a vida que a gente tem que viver, garantir a família, pagar as contas. Quando veio a eleição de 2022 e a gente finalmente ganhou, pensei: “Cara, preciso dar uma descansada.” Porque foram quatro anos de bolsonarismo que envelheceram muito a gente — era bomba atrás de bomba.

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A Riso em ação durante as eleições presidenciais de 2021

Agora, eu queria que quem assumiu os cargos fizesse o papel deles. Obviamente, isso é só um desejo, né?

Mas é difícil entender qual é o papel, né? Fiquei pensando nisso. Fiz uns produtos novos com a ideia de que eu precisava falar — ir mais fundo. Não é só lutar para o Lula ser eleito, é falar sobre ser anticapitalista. É fazer propaganda comunista mesmo, no sentido de discutir o que realmente importa. Tipo: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Porque no fim das contas, todo mundo é classe trabalhadora — até o médico que ganha dinheiro fazendo implante de cabelo. O cara pode ganhar R$ 100 mil, mas ainda é trabalhador. Nossa luta é contra outra camada.

Quis martelar isso. Fiz um cartaz que depois virou boné: “Leia Marx”. Era provocação mesmo. Em 2018, na eleição, imprimi panfletos com um amigo e saímos distribuindo. Lembro da história do Sesc, ainda lá em 2018, com a ameaça de tirarem recursos para redirecionar para o sistema S. A gente já sabia que Bolsonaro e Guedes iam fazer coisas que nos afetariam diretamente.

Fiz mais cartazes na Riso. Tinha facilidade para criar, pensar algo e imprimir. Mas me senti muito mal. Uma semana antes da eleição, eu, classe média, indo “colonizar” os populares — usando esse termo mesmo. Me senti invadindo. Coloquei um escudo em mim: um cartaz que dizia “Está na dúvida? Quer conversar?”, para mostrar que eu só queria diálogo com quem quisesse. Mas percebi que aquilo não era efetivo. Era quase como dar esmola — massagear o próprio ego. Não gosto desse papo de “virar voto”, pelo menos nesse contexto.

Durante os quatro anos de Bolsonaro, vi uma comunicação massiva, mentirosa, viralizando pelas redes sociais. A comunicação foi completamente democratizada — não depende mais da grande mídia. Fiquei pensando: a gente precisa se posicionar. O que eu sei fazer é produto, é design — então vou usar isso para me comunicar, tentar levantar o astral.

Pensei: a sociedade civil precisa fazer sua parte. Vamos nos posicionar agora, dizer o que queremos e tentar inverter esse jogo de autoestima que o bolsonarismo trouxe. Porque a imbecilidade ficou cheia de autoestima, né?

Foi aí que criei um boné parodiando o MAGA. Depois me alertaram que não rolava, e eu cancelei a produção. Mas a ideia era usar símbolos, se identificar, fazer festa. Não dava mais para só levar porrada. Lula já estava solto, mas ainda vivíamos numa defensiva. Precisávamos de algo para nos orgulhar.

Nesse momento também fiz uma exposição, tentando discutir essa coisa esquisita do Bolsonaro se vender como cristão. Justo ele, que é tudo o que vai contra aquele universo crente que eu vivi nos anos 80. Um cara ignorante, preconceituoso, obsceno, que só falava palavrão…

Você está falando da exposição NUNCA ANTES, né? Ali, além do claro posicionamento político e apoio ao Lula, você trouxe a religião para a mesa. 

É, queria provocar mesmo, porque eu via aquele povo todo que dizia “amar o próximo” tratando o Bolsonaro como se fosse o grande libertador da nação — um cara péssimo, que só fala bobagem. Aquilo me deu um estalo. Voltei a escrever textos provocativos, como fazia lá atrás. Não era uma nota neutra, eu tinha lugar de fala. E vendo essa mistura de comunicação política com chavões religiosos sendo cooptada, senti vontade de reagir.

Uma imagem muito simbólica para mim foi o Bolsonaro naquela mesa de bodyboard, o púlpito improvisado, citando um versículo: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” O cara é notoriamente mentiroso, e as pessoas caindo nisso… me perguntava: como podem ser tão ludibriadas?

Aí caiu como uma luva. Fiz um cartaz jogando com isso: “Conhecereis a verdade, e a verdade libertou o Lula.” Comecei a trocar elementos desses chavões: “Leia a Bíblia, vote 13”, “Deus é fiel, vote 13”, “Lula é fiel”. Na exposição tinha uma montagem assim, com essa estética de comunicação religiosa de rua, tipo “Jesus está voltando”. Só que aí fiz umas faixas dizendo: “Jesus está voltando — e trouxe Lula junto.”
Queria provocar essas questões que tomaram o Brasil inteiro — não era só um setor. Tanto que, no pós-eleição, a gente viu os golpistas orando, misturando tudo de um jeito completamente equivocado. Para mim, o que eu tinha a dizer era isso, e resolvi colocar ali para provocar discussão, para fazer as pessoas refletirem.

Exposição NUNCA ANTES no Publica (2021)

Foi muito bom poder usar meu espaço, que já recebia exposições antes da pandemia. Quando veio aquele abre-e-fecha, pensei: esse espaço é meu, vou fazer o que quiser. Montei a exposição e comecei a construir uma linguagem.

A ideia era simples: tudo vermelho. O fantasma do comunismo, né? Vermelho e branco para provocar até nisso. Porque até nisso tem mentira — essa ideia de que o comunismo vai acabar com as igrejas, por exemplo. Então quis me posicionar, abrir espaço para troca.

Até Jesus colou no Publica (e trouxe o Lula junto)

O mais curioso foi ver a repercussão. Muita gente indo lá tirar foto, superfeliz. Virou quase um ponto instagramável, o que é meio esquisito — mas ao mesmo tempo virou uma forma de comunicação. As pessoas queriam dizer aquilo, e encontraram ali uma maneira de falar sem precisar escrever um textão.

Especificamente sobre a série de posters e outros produtos da Riso Tropical que questionam o capitalismo, não soa um tanto contraditório questionar o consumo criando e comercializando produtos de consumo?

Comecei a fazer uma série de cartazes mais textuais, que chamei de metacartazes —meio brincando com essa lógica toda. Era tipo: sem título, numerado e assinado, pegando informações e montando um cartaz só com isso. Outro era Uma frase bem fofa, em rosa, tirando onda com essa coisa de autoajuda ou poesia que não me entrosa, mas jogando com isso.

Acho que tem a ver com meu trabalho desde lá de trás — essa pesquisa de deslocar o sentido da imagem, embaralhar signos, provocar um estranhamento mesmo.

Tem o cartaz “Vendo”, né? Tenho esses cartazes que vêm muito das inspirações do dia a dia — olhar para algo e ver beleza naquele monte de letra junto, da forma que aparece.

Vendo . Risografia A3

Geralmente quando faço as coisas na Riso, penso sempre como edições abertas, ilimitadas. Nessa edição dos metacartazes, resolvi fazer alguns cartazes numerados. Aí pensei: “cara, agora vou fazer uma série que esteja escrito edição ilimitada nela”. Em vez de numerar, vem com essa legenda e uma assinatura, impressa na própria Riso.

O nome da série: Leia Marx. Acho que o primeiro foi “O capitalismo não te ama, ele só quer teu dinheiro”. Depois fiz outro: “Nem tudo está à venda”.

O capitalismo não te ama ele só quer teu dinheiro . Risografia A3

Mas a ideia também, sei lá, pensando no que o Cildo (Meireles) já trouxe — Inserções em circuitos ideológicos — é isso de fazer uma propaganda comunista, do que eu acredito, com objetos cotidianos, que possam estar presentes nas casas e na vida das pessoas. Pensar não só em mim, mas em uma luta que é coletiva, que traz benefícios coletivos.

No final, um produto acaba sendo também uma forma de se propagar uma mensagem. A pessoa vai usar uma camiseta, pendurar um poster na parede e com isso impactar outras pessoas…

Esse era o meu desejo. O que eu penso nesse sentido é isso: estou junto com a pessoa, dialogando sobre aquilo, e ela leva isso para o dia a dia dela. E o que eu sei fazer é um produto — bem acabado. E aí tem a contradição: não é um produto barato, eu vivo disso. Mas são coisas que eu mesmo gostaria de ter, porque são bem feitas, com qualidade, e têm vários aspectos que me atraem.

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

Não sei se estou explicando bem, mas tem também essa de atrair o tal “comunista de iPhone”, né? E aí penso: os socialistas foram para o espaço antes dos capitalistas. Existia avanço tecnológico. As pessoas tiram onda, acham que ser de esquerda é voto franciscano. Mas não é sobre acúmulo, é sobre progresso — se for sustentável e para o bem de todos, é bem-vindo dentro desse campo ideológico.

E é isso. Eu curto desenvolver produto, curto fazer bem feito. E o que eu tenho a dizer, por enquanto, é isso.

É evidente a influência de artistas como Jenny Holzer e Barbara Kruger em seus trabalhos, pelo uso da tipografia como componente principal, temas e uso do espaço público para espalhar mensagens. Fale um pouco sobre isso.

É bem óbvia e bem forte a influência desses artistas na minha percepção do mundo, dos caminhos que eu penso, do que eu vou atrás, do que eu faço.

Jenny . Risografia A3

Desde quando eu estava estudando, eu já olhava a tipografia como uma das ferramentas mais importantes. É o desenho, a foto e a tipografia — são as três ferramentas para montar um layout. E aí tem questões, né? Porque tem muito trabalho que é de outros, o desenho tipográfico já está pronto. Às vezes você pega uma Helvetica, escreve, e já é um layout bonito.

Para quem trabalha com design gráfico, tem isso: às vezes a gente abusa de uma tipografia, às vezes se apaixona, vai e volta. A Futura, por exemplo, teve uma época, principalmente quando eu era estudante, que eu não gostava de jeito nenhum. Mas ela é muito usada comercialmente, tem umas características interessantes de preenchimento, principalmente na versão bold.

E aí comecei a ver outros designers usando em obras autorais, tipo o Eike König, que era um dos diretores do Hort Design. Eu me lembro de um detalhe na minha trajetória de desenho: me dava nos nervos ver uma tipografia esticada, fora das proporções originais. Mas com o tempo, a gente vai e volta nas coisas que gosta e desgosta. Você amadurece e começa a perceber as intenções — está errado, mas com intenção, e no final tá tudo certo. David Carson foi uma grande referência para mim, antes mesmo da faculdade.

Cartazes do Renan para eventos na Publica

Acho muito legal pensar que já tem um monte de coisa ali para usar, principalmente tipografia. Aí fico: o que eu posso fazer com isso para sentir que tem algo meu no resultado final? E aí comecei a mudar proporções, distorcer, esticar… virou uma forma de ocupar aquele espaço.

Fala um pouco sobre os seus espaços culturais da Publica, tanto o da Sebastião Pereira quanto o recém inaugurado na Galeria Metrópole. Qual a proposta desses espaços e qual a relação deles com a Riso Tropical.

Quando começou a Riso Tropical, eu comecei dentro da gráfica da editora Hedra. O Jorge Salum, amigo de anos e cliente de design, foi virando amigo mesmo. Quando eu estava comprando a Riso, comentei com ele, e ele falou: “Caramba, bota aqui na Vila Madalena, na nossa gráfica. Já tem guilhotina, outras coisas, vai ser bom.” Foi superlegal. Fiquei um tempo no subsolo da editora e, um ano depois, reformei um espaço no térreo, onde tinha uma loja da AMP. Fiquei nos fundos, reformei um pedaço e botei o estúdio e a gráfica lá. Com o tempo ali, tive meu segundo filho e moro no centro. Faço muita coisa a pé, e ir até a Vila Madalena era sempre aquela questão: vou de carro, vou de metrô… Mas eu queria algo aqui, perto. Já vinha fazendo feira, e comecei a querer ter um ponto na rua — uma loja mesmo, para vender os produtos direto, não só em feira. Aí comecei a procurar um espaço aqui no centro.

Em 2017 para 2018, olhei um espaço na Galeria Metrópole, mas no meio do processo apareceu uma loja no térreo do prédio onde moro. Comecei a imaginar um monte de coisa — era bem maior do que eu precisava para a gráfica, até para a loja. Aluguei. No fundo ficava a gráfica, na frente a loja e um espaço para bar. No meio, uma sala grande multiuso: pensei em oficina, exposição, show, fala… A ideia era ser um espaço cultural, para emanar cultura, acolher projetos. Começamos a reforma em 2018. No fim do ano, Bolsonaro ganhou.

Uma das primeiras feiras gráficas da Publica na Sebastião Pereira

Fiquei morrendo de medo de ter o lugar. A gente começou fazendo algumas feiras lá dentro. O espaço era pequeno, não comportava feira grande, mas foi muito legal porque rolou interação com amigos de outras linguagens — música, dança. Minha companheira, que é da dança, fez espetáculos, ensaiava lá. Teve também a exposição que comentamos no começo. Quando nasceu o espaço, não queria chamar de risotropical. Eu já tinha uma questão com esse nome — “tropical” já é meio engraçadinho, do meu estúdio, e “riso” apesar de vir do nome da máquina japonesa significa sorriso em português. Era uma briga de sentidos. Daí cheguei no nome “Publica” porque era um lugar de publicar coisas. E a confusão entre público e publicar era bem-vinda também.

Então, é um espaço onde eu publico, onde trago coisas para publicar. Apesar da gráfica e da loja serem muito fortes, nasceu essa outra frente de trazer pessoas, um espaço para botar projetos para fora, publicar suas coisas. Por enquanto, essa parte está hibernando. Quando concentrei forças reformando o lugar novo na Metrópole, a ideia era manter aqui também, e logo mais volto. Duas semanas atrás teve um evento da Intro — conheci os meninos na galeria, e eles fizeram um lançamento aqui com a marca DSTRB. Logo retorno com as exposições. No final da obra lá, fiquei sem grana para o mobiliário da loja nova, então levei o que tinha aqui, desmobilizei a loja e abri lá. Aqui continua a gráfica, mas esperando as coisas acontecerem para voltar com energia. A ideia não era fechar, mas que o espaço aqui tivesse mais autonomia, sustentabilidade, que os eventos rolassem com menos dependência de mim, enquanto eu cuido de lá.

Lá é uma galeria para outro público, né? Um público que não está andando na rua. É um pouco mais sofisticado, vamos dizer assim. Aqui (na Sebastião Pereira) é mais experimental ainda. Lá tem mais compromisso com o giro, por estar dentro de um centro comercial; aqui, menos compromisso comercial. A ideia lá é ter uma parte da frente como galeria e, no fundo, a loja com produtos mais baratos. Agora abriu uma exposição do Marcelo Cidade, uma colaboração minha com ele — um trabalho dele que eu produzi graficamente, transformando uma série de monotipias em múltiplos. Do mesmo jeito que, na inauguração, teve um trabalho da Natalie Salazar, que me chamou para desenhar um projeto que ela tinha só em texto, e eu ajudei a materializar graficamente.

Novo espaço da Publica + Riso Tropical na Galeria Metrópole

O que mantém esses espaços são os produtos e as obras ali, né?



Sim. E eu tenho dado oficinas também. Acho até mais legal do que aqui — lá é mais acessível, tem café do lado, é um centro comercial. Aqui já é a rua direto. Mas quero voltar a ter programação aqui. Não quero capitalizar desgraça, mas invadiram várias vezes o espaço. Em algumas dessas vezes, comentei nas redes, falei que não ia mais ter evento… e aí vendeu muita coisa.

Aí fico pensando: não quero usar isso para gerar comoção. Não gosto desse lugar de vitimizado. Mas a última vez levaram parte do som, e paramos com os eventos. Era simples: chegava, tocava, montava. Agora teria que gastar uns dois, três mil para repor. Em maio do ano passado invadiram de novo. No total, foram cinco invasões em dois anos. Levaram estoque de camiseta, caixa de som, cortaram todos os cabos.

Por isso o espaço foi meio desmobilizado — a cidade em volta também começou a pesar, muito assalto na frente. Mas isso já diminuiu. E agora eu estou nessa: preciso fazer uma festa para arrecadar e bancar os custos, voltar a fazer acontecer. Só não quero ocupar esse lugar de vítima que engaja — porque engaja — mas não é isso que eu quero.


ISMO
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