Refilmagens do zeitgeist

Quando o tempo corre rápido demais e o processo criativo não consegue acompanhar

Refilmagens do zeitgeist

Você já deve ter lido sobre, ouvido, assistido e claro, sentido na pele os efeitos da velocidade em que estamos vivendo. A informação viaja o mundo e chega do nada por diferentes canais, as tendências sociais se modificam muito rapidamente, ciclos que antes eram vistos como realmente processos, agora estão cada vez mais curtos e a Cultura, que é sobre o que a gente fala por aqui, tem sentido o impacto desse dilema.

Se antes, artistas e realizadores(as) culturais se permitiam maturar ideias, refletir sobre o passado, utilizar da matéria do presente e até vislumbrar um futuro possível, tudo isso com calma e distanciamento, hoje a pressão bate e o ritmo é outro.

A máxima de que “cada homem é filho de seu tempo, e sua expressão é a expressão desse tempo” não tem feito mais tanto sentido. Hoje diferentes expressões confrontam uma realidade paradoxal: como capturar o espírito do tempo - ou zeitgeist - presente, que tá mudando toda hora, sem se tornar obsoleta antes mesmo de chegar ao mundo? E se não for possível, a solução está no constante retoque e revisão dessas produções? Não por necessidades técnicas ou criativas, mas pela natureza fluida da cultura atual. 

100m não são só 100m 

O conceito de aceleração do tempo na sociedade contemporânea dá pano para manga, e mesmo que eu fosse um especialista no tema, a ideia não é fazer deste texto um artigo científico. Mas a percepção a partir da cultura de massa é que a globalização saiu de mão e a tecnologia fez com que nossa percepção do tempo perdesse os contornos, fazendo com que temas importantes se tornem efêmeros e ideias fiquem ultrapassadas rápido demais. Pior, a cultura do hype, do consumo imediato e da necessidade de fazer parte da conversa na hora que ela chega na roda traz superficialidade e o rápido esquecimento de pautas relevantes.

Não é incomum achar que eventos de proporções monumentais como guerras, por exemplo, tem duração diferente da real. Seja pelo holofote que mídias dão sobre o acontecimento e semanas depois tiram do ar, ou pelas produções culturais que circulam a temática em si e não possuem mais tempo para compreender o fato, se debruçar sobre ele, e só então ganhar matéria. E quando fazem, chegam ao mundo datadas.

Hoje todo mundo é meio Coelho Branco da Alice

Processo criativo VS tempo

A princípio, arte não tem tempo. Um quadro, um filme, uma música podem levar anos ou minutos para serem feitos, e esse tempo não define sua qualidade final. Jay Z é conhecido por não escrever suas letras, e fazer tudo no freestyle, direto no estúdio. Já um filme pode ter seu roteiro engavetado por anos até entrar em produção e levar mais alguns anos até chegar às telas. Mas uma coisa que não muda é que todas essas manifestações artísticas são resultado de anos de experiência humana que atravessa indivíduos e que por isso costumam ser, em alguma medida, reflexo da natureza humana. 

O processo criativo não começa só quando um músico entra no estúdio, quando um cineasta aperta o rec na câmera ou quando um pintor molha o pincel. Pra quem cria, todo momento é de criação, e confesso que, como um “não-artista”, me dá ansiedade só de pensar em ter o cérebro trabalhando o tempo inteiro. Mas a real é que isso traz uma responsabilidade para quem cria, e a relação dessa pessoa com temas do presente, por vezes sensíveis, tem mudado muito rapidamente com a aceleração do tempo.

Existe uma pressão para que a arte e a cultura se comuniquem com o presente, com a realidade, seja como comentário, crítica ou posicionamento. Mas quando não há tempo para processar as várias camadas da realidade, ou pior, a realidade em si não tem tempo de se fixar, assentar e já é modificada, não tem artista no mundo que vá conseguir colocá-la em seu trabalho. Ninguém gosta de ter um chefe no cangote te acelerando pra entregar serviço, e o chefe do artista é ele mesmo, o mundo e o tempo, tudo junto. 

As Moiras, figuras mitológicas que tecem o tempo Ilustração de Giorgio Ghisi (1558-1559)

Refazer é o caminho?

Até aqui falamos num tom próximo ao de artistas independentes, de pessoas que tem mais mobilidade criativa e agência sobre seu fazer, mas e quando esse mesmo tema chega na indústria criativa? Hollywood não consegue mais cuspir filme toda semana, estúdios de desenvolvimento de games levam meia década para lançar um jogo e o intervalo entre temporadas de séries estão cada vez maiores. Quando isso acontece, como garantir que o conteúdo chegue fresco ao público?

Vou usar o exemplo de GTA, franquia mais bem sucedida da indústria de jogos, que funciona como uma sátira afiada da sociedade, está para lançar uma nova edição no ano que vem, mas os 13 anos que separam os dois últimos volumes e os 8 anos de desenvolvimento deixam dúvidas do quão assertiva será essa sátira. Não estamos mais em 2013 - ano de lançamento de GTA 5 - e a representação de certos grupos, a discussão sobre violência, a presença de ações políticas no jogo, tudo isso mudou e muda semanalmente, sendo um desafio e tanto pro time da Rockstar.

Em 2001, quando rolou o 11 de setembro, vários filmes tiveram que pausar a produção ou passar por regravações para evitar mostrar algo que fosse polêmico ou sensível. Mas hoje não precisamos de um evento dessa magnitude para ter o mesmo efeito, e qualquer protesto, decreto de um presidente, ou ataque hacker podem ser motivos para uma ação similar. É como se, tirando as mortes, toda semana caísse um World Trade Center.

O trailer original de Homem Aranha (2002) foi relançado porque tinha imagem das Torres Gêmeas

Correndo atrás da pausa pra respirar

Cada suporte vai ter o seu jeito de lidar com essa pressão, seja acelerando seu processo, modificando a visão original, adaptando ou mesmo deixando de existir. É difícil saber quantas criações nunca viram a luz do dia por “perderem o timing”, ou quantas ideias foram alteradas porque não estavam mais de acordo com os temas do momento. Isso pode ser evitado?

Talvez a resposta esteja não na busca desenfreada por capturar o espírito do tempo, ou ao menos não em sua forma mais imediata, presente, mas em reconhecer a existência de uma possível essência humana, que permanece imutável, independentemente do hype.

Pode ser que a arte não precise ser um reflexo exato da sociedade, mas gosto de pensar nela como um Waze, que nos ajuda a navegar por esse mar, ou melhor, esse autódromo. Ao invés de correr atrás da próxima grande onda, sempre há temas que, por sua própria natureza, independem da velocidade das redes sociais e da urgência do consumo.

Eu diria que a pressão do tempo já é um caminho sem volta, mas apesar disso, o trampo de artista pode estar em transformá-la em força criativa, desafiando e criando o próprio ritmo. Acredito que quem faz arte é construído de uma maneira diferente, tipo um super-herói que consegue criar refúgios, uns pit-stops em meio ao corre da vida.


ISMO
Cultura em movimento

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