Por trás dos processos do clipe de Cartier Santos Dumont

Uma conversa com Marcela Ilha Bordin, diretora do último clipe do Febre90s, lançado na semana passada

Por trás dos processos do clipe de Cartier Santos Dumont

Quando a Cartier Santos Dumont saiu como single, há alguns meses, fiquei bastante intrigado. O som apresentava uma nova cara da dupla, e parecia marcar um novo momento na sonoridade deles. Gostei do som, mas algumas coisas ficaram incompreendidas e abstratas.

Na sexta-feira passada, o clipe foi ao ar, e então eu pude entender melhor o que a música queria dizer. Produzido pela Stink Films São Paulo, ele se diferencia de tudo que vem sendo feito na cena do rap, e mostra que as coisas podem ser feitas de um jeito diferente.

A Marcela já trabalha há alguns anos no audiovisual e na publicidade e agora assina a direção do seu primeiro clipe. Trocamos uma ideia sobre os processos e as ideias por trás desse clipe.


Você já trabalha no audiovisual há um tempo, mas esse é o primeiro clipe que você dirige. Você diria que ele marca uma entrada em um outro momento da sua carreira ou é uma continuação do que você vinha fazendo nos últimos tempos?

Eu acho que as duas coisas ao mesmo tempo, na verdade, porque eu comecei a trabalhar com audiovisual fazendo roteiro, depois passei para direção, de cinema, né, não dirigi longas, mas dirigi curtas e fiz o roteiro de longas.

A partir disso, eu entrei na publicidade dirigindo — fazendo assistência criativa, pesquisando referências e coisas visuais — e depois comecei a dirigir coisas na publicidade sozinha. Clipe eu não tinha feito nenhum até então, esse é o primeiro que eu dirijo neste mercado mais expandido, mas embora em termos de mercado isso faça bastante diferença, eu acho que em termos de linguagem não existe tanto uma separação, pelo menos para mim, em termos de universo de linguagem visual, não existe tanto uma separação entre o que eu penso, a forma como eu penso os curtas ou a forma como eu penso esse clipe.

Então, eu acho que é um uma grande continuidade e camadas de coisas que vêm se somando, que me inspiram, que eu quero falar ou explorar visualmente. Essa ideia de criar experimentos com imagens, de criar coisas que são muito texturizadas — que envolve trabalhar com película, essa ideia de montagem que depende dessas camadas de imagens — isso tudo é uma coisa que eu já vinha trabalhando no cinema, que eu já vinha pensando desde antes. Mas em termos de mercado, sim, faz diferença, é uma inauguração.

Frames retirados do clipe

Você falou da textura e dá para perceber diversas técnicas envolvidas no processo. Fale um pouco sobre essas camadas e a ideia construída no clipe, no geral.

Eu vou tentar fazer um apanhado, talvez eu esqueça alguma coisa porque realmente foram muitos processos e muitas coisas que aconteceram — o processo da pós foi bem longo e bem trabalhoso para todos os envolvidos.

Desde o início eu tinha a ideia de fazer algo que fosse em 35mm, porque, para mim as músicas dos meninos tem uma sonoridade que já é texturizada, que já traz uma coisa nostálgica — os beats principalmente, é super atmosférico, já te insere em um universo. Tu já consegue imaginar e sentir as coisas daquele universo só a partir da música, e eu queria muito trazer isso para algo visual, que transmitisse a mesma sensação que eu estava sentindo na música.

Como o Sono usa também processos analógicos, tem essa coisa de uma herança, uma nostalgia muito forte presente no som, eu achei que o 35mm ia casar muito bem com a sonoridade, ia trazer uma textura, uma coisa tátil que ia ser bom para reforçar esse aspecto da música.

E aí a gente criou uma espécie de conceito que se relacionava ao relógio e a esse universo da passagem do tempo, das viagens, de ter um movimento das horas passando no dia — a ideia inicial era que fosse bem mais didático nesse sentido, um travelling circular e tal, isso acabou não acontecendo mas ainda assim ele respeita essa progressão do tempo. Eu queria fazer isso em um lugar aberto que reforçasse esse aspecto lúdico, trouxesse um pouco mais da textura também, que não fosse um estúdio, alguma coisa assim.

A ideia era criar esse universo que existe dentro de um relógio e esse universo ser uma representação de um aeroporto, das viagens, de todas essas coisas que eles estão falando ali, mas uma representação muito lúdica, e que depois a gente sairia de dentro do relógio.

Eu queria que houvesse nesse momento uma espécie de "dobra" no tempo, que a gente passasse a ver de outra perspectiva, de fora do relógio para dentro, e nesse momento a gente filmaria eles (Puma e Sono) performando. Em termos ópticos, o 35mm faz muito sentido quando tu tá filmando de dentro para fora, porque é uma coisa mais panorâmica, e no momento em que a gente tá olhando de fora para dentro, eu pensei em trazer o 16mm para ficar mais quadradinho, mais restrito, aquela coisa de realmente ter um ponto de vista mais agudo e mais específico. Se a gente imaginar um bolo, ou uma torta, isso seria tipo a primeira camadinha ali, a massa da coisa.

Depois, por cima, eu queria trazer esse contraste com os adesivinhos, com esses elementos visuais que estão ali para ser uma coisa bem tátil — a gente também precisava de uma forma de esconder o rosto deles, porque tem essa marca deles, de usarem balaclava — e a forma que eu pensei que seria legal de fazer isso foi trazer esses elementos sobrepostos de colagem, que são esses adesivinhos, super nostálgicos, especialmente esses com as bordinhas douradas, que são super glossy, brilhosos e têm uma coisa muito tátil, muito forte que contrasta absurdamente com a textura da película. 

Foto: Fernando Denti

O Denti me ajudou com isso, Fernando Denti, nesse processo de experimentação, mais analógico também, de elementos, objetos, coisas que a gente escaneou e colocou ali para ter a sensação desse acúmulo de informações, de experiências — essa enxurrada de coisas que nos remetem à viagem, ao que ele tá falando ali na música.

Visualmente também era uma coisa que eu achava muito foda, de ir criando esse bolo, essas camadas, uma coisa por cima da outra — existe uma montagem, mas não necessariamente essas coisas vão ser todas pasteurizadas na edição, mas que dê a impressão de que elas coexistem realmente em camadas de vídeo, de imagem diferentes e atuam de formas diferentes na edição. Se tivesse uma forma tridimensional desse clipe, ele não seria uma tela plana, mas seriam todas essas camadas que vêm uma em cima da outra. Em vários momentos a gente ficou falando de bolo, de massa de bolo, é engraçado.

Porque daí entra também o trabalho do Elbi com os glitchs, o datamosh, que foi uma adição muito incrível que também estava lá como uma forma de burlar um pouco a balaclava, de não mostrar o rosto deles, mas também uma forma de criar essas passagens entre os universos e adicionar um pouco mais de textura. O Denti que me mostrou o trabalho do Elbi e eu achei incrível, realmente encaixou muito bem e expandiu o que eu estava já imaginando. Foi uma coisa que mudou um pouco o rumo do que estava sendo pensado — o que é sempre bom, né, quando a gente encontra coisas que a gente não espera, mas que são muito legais.

Foi muito divertido montar com essas coisas também, teve o Andrés Medina, que é uma pessoa que já trabalhou comigo em um dos meus curtas, e a gente foi ajustando isso e adicionando esses elementos — em alguns momentos tem as figurinhas por cima do 16mm, e quando tem o glitch que mistura elas realmente parece que tu pega uma massa de bolo e coloca uns chips de chocolate e vai se misturando, derretendo.

Os outros processos de audiovisual, de publicidade que eu participo, normalmente não são assim, eles são bem mais rápidos. Esse processo foi muita coisa, muitos elementos, muitos passos e coisas que só podiam acontecer depois de outras coisas. O pessoal da pós da Stink também ajudou horrores, porque para eles não é o workflow normal. O Rafa Supriano, que foi quem finalizou, exigiu uma paciência absurda nele, porque todo dia mudava uma coisinha, enfim, foi muito, muito trabalhoso.

Porque é um experimento, né? Realmente é um experimento, então tu não tem muito controle sobre o resultado que essas coisas vão dar e às vezes elas dão certo, às vezes não dão tão certo, às vezes elas acontecem de uma forma inesperada.

O final é uma parte que chama muita atenção, é bem intenso e no fim você entende que está tudo ali dentro do relógio. Queria você falasse um pouco sobre esse momento final.

A ideia de sair do relógio era uma coisa que foi tomando forma aos poucos. Estava tudo de fato ali dentro do relógio, do Cartier Santos Dumont, que é o relógio que dá o nome à música, mas o fato de sair de dentro da bolinha, isso foi uma coisa que foi se desenvolvendo ao longo do processo. Eu tive bastante sorte de contar com uma galera muito foda da pós, que fizeram esse 3D que ficou absurdo.

Como eu te falei, a ideia era começar com um lado e depois fazer essa dobra no tempo e mostrar o outro — e isso não saiu exatamente como eu pensava — o que acabou acontecendo foi um crescimento do quão claras, didáticas ou não-distorcidas as imagens estão, e elas vão ficando cada vez mais lisérgicas e mais absurdas até esse momento em que vira outra coisa, que é essa transformação no relógio.

A ideia original era que a gente começasse com esse personagem que era para ser uma das pessoas que aparece em uma briga, em um wrestling, começava nele e terminaria com ele, teria essa ideia de uma circularidade. Depois de fechar o círculo, a gente sairia do relógio, mas isso acabou não acontecendo, e a gente deu uma adaptada.

Sobre a luta, eu acho que é o que eu menos tenho uma explicação lógica para o porquê que eu fiz daquela forma. Era para ser bem mais pessoas e para ter uma coisa de corpo, de fricção, de novo com esse lance das texturas, essa coisa que eu acho muito visual, dos corpos e da textura da pele, enfim. Eu queria trazer isso, especialmente por ser uma diretora mulher, e eu sei que é um território delicado.

Mas acho que isso aparece de algum jeito ali com todas aquelas pessoas juntas, vários personagens que formam uma espécie de comunidade.

É, eu acho que é isso. Eu não sei se tu já assistiu Rumble Fish, tem essa coisa de ser uma comunidade, mas tem algo muito performático, de pequenos papéis que são desempenhados. No final do filme tem um travelling muito longo que começa em um ponto específico e termina em um outro lugar, passando por muitas pessoas ao longo disso.

Foto: Fernando Denti

Então é meio que esse overview de várias coisas que acontecem em um lugar, que no nosso caso não é uma comunidade física tipo Twin Peaks, mas é um lugar meio imaginado, um pouco mais, sei lá, o 8 1/2, em termos de visual, lúdico — um universo de sonho e tal.

E já que você entrou nesse ponto, qual é a importância de você, enquanto diretora mulher, assinar a direção desse clipe? Pensando no momento da carreira deles, é importante que não tenha sido mais uma vez um homem mostrando a visão dele.

Eu não posso falar por eles porque eu não sei o que eles pensaram, não estou aqui nessa posição, mas o que eu posso dizer é que eles sempre foram muito abertos à troca e eu acho que existia uma curiosidade, por eu não ser um elemento óbvio dentro do universo de pessoas que dirigiriam esse clipe, do que eu poderia trazer.

Eles sempre foram muito abertos às ideias que eu trouxe, muito interessados nas referências e me deixaram super livre para criar — nunca teve um direcionamento específico de "a gente quer tal coisa de tal jeito porque o universo espera que a gente faça assim, nossa base de fãs espera que a gente faça assim ou assado" — óbvio que tem algumas coisinhas que a gente dá uma adaptada aqui ou ali para não ficar completamente descolado.

Mas eu não me senti em nenhum momento uma mulher dirigindo, sabe? Eu me senti uma pessoa dirigindo um clipe para eles, para um artista, não me senti um tótem, não foi uma coisa que veio tipo: "vamos colocar isso porque é a tua linguagem enquanto mulher e não sei o que", não, foi bem natural, bem orgânico.


Assista o clipe de Cartier Santos Dumont aqui e acompanhe o trabalho da Marcela nas redes sociais.


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