Por que tanto barbeiro é da cena do hardcore?

A ligação entre estilo e design de cabelos com a música hardcore

Por que tanto barbeiro é da cena do hardcore?

A cena hardcore é feita de vários elementos além da música. Das roupas confortáveis e tênis com a tecnologia Air a tatuagens e alargadores que definiram o visual de várias gerações ligadas ao gênero, o hardcore sempre teve sua "cara".

Mas cara não acaba na testa e, curiosamente, também é nos cabelos que a conexão do hardcore se faz presente. Em São Paulo, um dos locais mais férteis da cena no Brasil, é bem comum encontrar barbeiros e barbeiras que, ou tem banda, ou fazem parte do rolê de uma forma bem participativa.

Pensando nisso, chamamos quatro personagens que cortam e tocam para falar sobre o assunto e que ajudam a gente entender se, quando o assunto é o cabelo, o hardcore também tem alguma ligação, influência e/ou histórico no grupo.


Daniel Azt
Barbearia New Rose
Bandas: Obsoletion, In Your Face
Coletivos: Hardcore Festival, Verdurada, BLC

"O hardcore veio do punk e é um rolê que acolhe as pessoas marginalizadadas, aquelas que tem famílias desestrututradas, galera pobre, negros, todo tipo de minoria, que na verdade é a maioria no nosso país.

O rolê das barbearias é que, por ser um trampo informal na maioria das vezes, abraça uma galera mais underground, uma pessoa que é fora da curva, que não é um padrão da sociedade. Muita gente do hardcore, do punk, do rockabilly, psychobilly, tudo que era mais nichado foi abraçado na barbearia.

Eu mesmo acabei indo pra barbearia porque essa galera do hardcore me incentivou e me chamou pra trabalhar junto. 

Anos 80 e 90, no auge do hardcore, você conseguia definir pessoas pelo cabelo. Aquela pessoa curtia tal tipo de hardcore pelo cabelo que usava. Então tem influência sim da estética do cabelo com o HC. 

Os Youth Crew era um cabelo militar e colorido. Os punks eram mais os moscainos. Muita gente raspava cabeça, que era uma forma que raspava a cabeça, principalmente os streight edges, pra mostrar sobriedade. Eram símbolos que definiam o que você era e o que curtia. 

Vejo que hoje em dia não tem mais um cabelo só pra cada cena, não é mais tão assim quanto foi nos 80 e 90. Hoje é o cabelo normal, o diário, o que está em tendência ou praticidade. 

O que pega mesmo é os degradê, máquina zero, durável, que dura pelo menos um mês pro cara não precisar ir cortar de novo tão cedo. Geralmente a galera do rolê HC são pessoas marginalizadas, como sempre foi, e muitas vezes essas pessoas não tem grana ou tempo pra se preocupar muito com o cabelo toda hora."


FM
Barbearia Madalena
Bandas: Malpractice, B’urst!, Paura e True Force

"Eu comecei a colar em shows de metal, onde a maioria das pessoas tem cabelo comprido e automaticamente eu me identifiquei com essas pessoas por conta do meu cabelo, que era comprido na época também.

Eu devia ter por volta de 14 ou 15 anos quando eu fiz a transição pro rolê hardcore. Percebi que todo mundo tinha um corte mais ou menos parecido, a lateral do cabelo era bem raspada e em cima era um pouco mais comprido jogado pra trás. Algumas pessoas chamam esse corte de Slick back, onde você cola todo o cabelo pra trás ou usa ele de lado.

Aos poucos eu fui cansando do meu cabelo cumprido e estava pensando em cortar. Foi então que eu encontrei um amigo que estudou comigo que não tinha conexão direta com o rolê hardcore, porém o pai dele era muito conhecido entre várias pessoas do rolê hardcore, o que fez com que ele também soubesse do que se tratava o rolê. Perguntei pra ele com o que ele estava trabalhando e ele me disse que estava em uma barbearia. Foi aí que eu decidi ir cortar o cabelo com ele, coincidentemente era barbearia que outras pessoas do rolê hardcore trabalhavam então ali começou a minha história com a barbearia.

Dali eu me interessei em fazer cursos pra poder trabalhar na área também, isso em 2015, porém desde 2010 existem barbeiros que são do hardcore, e hoje em dia muitos deles são empresários do ramo. Acredito que pela estética da barbearia tradicional combinar com as tatuagens e pelo senso de coletividade que o hardcore trás, um vai chamando o outro, tendo em vista que é uma boa área pra trabalhar."


Denis Veronese
Black Coat Barbearia
Banda: Vendetta

"Na minha visão, as duas coisas estão muito ligadas.  A liberdade que a barbearia tem é a mesma que encontro dentro do hardcore/punk.

Eu sou formado em comércio exterior e trabalhei por mais de 10 anos como comprador. Trabalhava de terno, gravata... essas paradas que não tem nada a ver comigo. Eu meio que vivia duas vidas. O Denis de terno e gravata e o Denis de bermuda e camiseta aos finais de semana. Essa dualidade sempre foi um problema. Eu fui inserido desde jovem no mundo corparativo e sair dele foi dificil. Eu saí porque acabei tendo "burnout" (que na epoca nem havia esse termo pra isso), e fiz com que eu pedisse a conta no emprego.

Eu não sabia o que ia fazer da vida, mas sabia que aquela vida corporativa eu não queria mais. Saí do trabalho no último dia, e fui cortar na barbearia 9 de julho (onde eu já cortava com o David) e lá vi que, apesar de ser uma sexta feira às 19hs e eles precisavam trabalhar no sábado a partir das 10, eles estavam felizes.

Naquele ambiente havia uma galera tatuada que não precisava esconder as tatuagens (como eu fazia no corporativo), ouvindo um rock n roll e trocando ideia. Foi isso que me chamou a atenção. No dia seguinte eu fui fazer um curso. Na época nem tia curso de barbeiro, era curso de cabelereiro. Fiz o curso, apenas o módulo 1 (que era de corte masculino) e de lá fui pedir trampo na 9 de julho pro Tiago. E la na 9 de julho eu fiquei 10 anos trabalhando. Só sai de la pra abrir a minha aqui no interior de Sao Paulo. A BlackCoat (minha barbearia) é uma filha da Barbearia 9 de Julho.


Vejo que há anos os homens vem se cuidando mais. Aqui na barbearia fazemos cabelos, barbas, aquela depilação de nariz sabe? Os caras aqui fazem bastante sobrancelha também.

Dentro do hardcore a parada é muito variada. Tem galera cabeluda, tem cara com cabelo social, cabelo raspado, cabelo pintado, moicano... Dentro do role hardcore não tem muito um padrão, mas dando uma generalizada, o corte que mais sai é o degradezinho na lateral e cabelinho de lado (risos)."


David Paoli
Barbearia Corleone
Bandas: Busscops, Veneno Lento e Sweet Suburbia


"Tudo que envolve a estética de subculturas como o hardcore, o rap e o rockabilly tem uma forte ligação com a barbearia.

A barbearia tradicional sempre foi um lugar para fazer a barba e manter o cabelo alinhado. Porém, nos anos 90, a modernidade tomou conta dos salões de beleza, praticamente extinguindo as barbearias e deixando o estilo clássico de lado. Isso fez com que esse tipo de serviço se mantivesse vivo entre as subculturas e na vanguarda da elegância, que criaram uma certa resistência em manter os cortes clássicos, mesmo fora da moda na época.

No universo punk, a aparência sempre teve um papel essencial — e isso não se limitava apenas às roupas, mas também aos cortes de cabelo. Com o hardcore, que é uma das vertentes mais ativas do punk até hoje, não poderia ser diferente.

Quando comecei a me envolver com a barbearia, logo percebi que aquilo ia muito além de cortar cabelo. Era um estilo de vida, uma cultura. E foi aí que conheci o cara que virou minha maior referência: Donnie Hawley, da Hawleywoods Barber Shop.

Ele não só dominava os cortes clássicos, como também foi um dos grandes responsáveis por trazer de volta o espírito das barbearias tradicionais. Donnie conectou tudo — carros antigos, motos, tatuagens, rock’n’roll, cultura underground… tudo isso respirava dentro da barbearia dele. Mesmo não sendo um cara envolvido com o hardcore, ele influenciou diretamente com todo o conceito.

O cara cortou o cabelo da galera do Rancid, US Bombs e de toda a cena rocker, custom, punk, chola e alternativa da Califórnia. E não era só sobre o corte — era sobre atitude, identidade, raiz, tudo isso na atmosfera dos anos 50. Ele mostrou para o mundo que a barbearia pode ser um espaço de cultura, resistência e expressão. Um lugar para todos. E é essa visão que me inspira até hoje.

Fora as barbearias que nunca deixaram de existir nos guetos, com suas particularidades incríveis, como retratado, por exemplo, no filme Um Príncipe em Nova York, com o ator Eddie Murphy.

Hoje vejo que a galera quer mesmo é ter um visual que fale por si só.

Você pode raspar a cabeça, gilletar um moicano em casa, cortar um cabelo texturizado num salão moderno ou colar numa barbearia — que é um espaço para todos: desde o executivo mais sério, que acha que hardcore é “música de maluco”, ao pai e filho que ficam fascinados com toda a decoração, ou até o cara com o cabelo clássico, bem repartido e cheio de pomada, usando uma camiseta do Beastie Boys.

O lance é seguir o seu estilo. Tudo é permitido no hardcore."


ISMO
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