Planet Hemp e a última ponta em São Paulo

O gurufim da banda que ensinou gerações a pensar e a resistir

Planet Hemp e a última ponta em São Paulo
Foto: Divulgação @allianzparque

Nesse sábado, feriado de 15 de novembro, os maconheiros mais famosos do país subiram ao palco do Allianz Parque, em São Paulo, para o penúltimo capítulo da turnê de encerramento de uma trajetória de mais de três décadas. Era mais que um show de despedida: era o gurufim, o último ato na cidade de uma das bandas mais decisivas para a formação da cultura brasileira contemporânea.

Antes mesmo do Planet entrar em cena, Russo Passapusso, no show incendiário de abertura de sua banda, deixou seu testemunho histórico: “sem Planet Hemp não existiria BaianaSystem”. Um reconhecimento público de que poucas bandas abriram tantos caminhos, misturaram tantas estéticas e pavimentaram tanto terreno para que outras surgissem com liberdade criativa, crítica e política.

Desde sempre, a maconha foi apenas um pretexto — um símbolo, uma provocação, uma forma de cutucar um país conservador. No centro de tudo havia um discurso ferozmente punk e profundamente engajado. Por trás da erva, estavam denúncias sobre violência policial, corrupção, racismo estrutural, encarceramento em massa, censura e o projeto de um país forjado na desigualdade. O Planet nunca foi só sobre legalização: foi sobre desnaturalizar o medo, sobre transformar o palco em megafone e a música em ferramenta de expansão de consciência.

Underground por essência e mainstream por impacto, a banda atravessou os anos 90 e 2000 como um paradoxo necessário: enquanto contestava o sistema, ocupava seus espaços e plantava sementes de crítica social em gerações de jovens. A prisão da banda em 1997, tentativa explícita de silenciar seu discurso, acabou funcionando como um tiro pela culatra: a repercussão nacional os catapultou muito mais longe, provando que se pode deter corpos, mas não se pode aprisionar uma ideia. O legado que fica não é apenas musical: é formativo. É uma pedagogia de rebeldia, de resistência, de reflexão e de consciência de classe.

Musicalmente, o show teve um setlist generoso que passeou por todas as fases da banda e reafirmou a alquimia que sempre fez do Planet um organismo vivo: rap com guitarras sujas, psicodelia, hardcore, ragga e aquele senso de urgência que nunca perdeu a força. Em um Allianz lotado, o público alternava entre engrossar o coro, abrir rodas e viver momentos de catarse típicos de quem sabe que está diante de um momento histórico. Pelo menos para mim — que vi o primeiro show da banda aos 17 anos, no pequeno palco do antigo Sub Club, no porão do Columbia, em São Paulo, em 1994, antes mesmo do lançamento do primeiro disco — foi exatamente isso.

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Do underground ao mainstream, esse é o Planet Hemp. Divulgação @planethempbanda

O impacto visual do show também desempenhou um papel fundamental nessa despedida. Nos telões, uma narrativa visual potente costurava passado e presente: imagens raras, trechos de shows históricos e registros de arquivo revisitavam momentos-chave da trajetória da banda e do país enquanto reverenciavam figuras essenciais para que o Planet chegasse até ali. Nomes como Fábio Costa, fundador do mítico Garage, berço da música alternativa carioca nos anos 90, e Elza Cohen, produtora cultural que acreditou no grupo quando quase ninguém acreditava e lançou seu primeiro disco, surgiam como pilares dessa história. Assim como a banda De Falla e Chico Science, forças criativas que dialogaram profundamente com a estética, a atitude e a ousadia do Planet Hemp. Mais do que um show, foi um rito de memória, um mosaico audiovisual que relembrou a genealogia do Planet e celebrou todos os que ajudaram a manter a chama acesa.

Tinha gente no Allianz, viu? Foto: Will Halifaman

Os convidados da noite, cada um a sua maneira, subiram ao palco para ajudar a contar e potencializar essa história. Seu Jorge, membro honorário da banda, abriu as participações emprestando sua ginga, elegância e afeto — e colorindo o caos organizado do Planet com sua voz aveludada e a sua flauta transversal. Na sequência, Emicida trouxe o peso e a urgência da sua rima e, em uma fala, sintetizou de forma precisa a herança do Planet: uma fita K7 comprada em 1997 virou para ele mais do que música — virou formação, visão de mundo, consciência. Sua trajetória é o exemplo vivo de como o impacto do Planet atravessou gerações e moldou a cultura.

Depois foi a vez de Pitty, parceira de décadas e cúmplice de estrada, que subiu ao palco como quem reencontra a família, trazendo sua presença, sua entrega e aquele vínculo construído não apenas na música, mas em anos de vivência e resistência lado a lado. João Gordo trouxe a seguir a fagulha original: a ponte direta com o punk e o hardcore que moldaram a espinha dorsal da banda, tocando Crise Geral e lembrando que o Planet nasceu do atrito, do ruído e do confronto.

Gustavo Black Alien, o eterno Mr. Niterói, fechou a noite com chave de ouro: ex-companheiro de microfone de D2 e BNegão nos anos formativos, voltou ao palco como quem retorna ao seu habitat natural. Sua presença incendiou o estádio — um reencontro esperado, celebrado e cantado em coro por um público que reconhece nele uma das vozes mais inventivas e essenciais da história do Planet e do rap nacional.

E se a maconha sempre foi o pretexto, o que o Planet Hemp realmente oferecia era liberdade para as mentes. Suas letras deixaram claro que o THC era só a superfície: “Não falo só da maconha, eu tenho muito pra dizer”. E disseram. Falaram de corrupção policial, chacinas de menores, manipulação religiosa, desigualdade e a engrenagem que mantém tudo isso funcionando. A banda sempre operou como um chamado a pensar com a “mente aguçada”, a desenvolver espírito crítico, a olhar para o país com consciência de classe.

Quando eles cantam “Foda-se as leis e todas as regras”, não é estetização da rebeldia: é sobre confrontar o Estado. Quando ordenam “Repense, reflita, recuse, resista!”, é um chamado para a guerra. Quando afirmam “Revolução, eu vou fazer de maneira diferente / tiro o ódio do coração e tento usar mais a mente”, apresentam uma forma de luta que mistura lucidez e chama, crítica e afeto.

Os maconheiros mais famosos do Brasil. Foto: Wilmore Oliveira

A maconha, afinal, sempre foi metáfora, a forma que encontraram para serem ouvidos e abrir brechas na mente. Quem passou por essa brecha encontrou algo muito mais profundo: crítica social, espírito combativo, pertencimento e política cotidiana. Era “o ritmo e a raiva” convertido em ferramenta de transformação.

Por isso, mesmo que a “Última Ponta” se apague, as ideias continuarão queimando. Ponta nenhuma dura para sempre — mas pensamento, sim. A chama que o Planet Hemp acendeu não depende de isqueiro: vive nas gerações que seguem ouvindo, citando, revisitando e se reconhecendo nessas letras que, infelizmente, trinta anos depois, permanecem atuais, urgentes e necessárias.

Já tô com isqueiro na mão, pronto pra revolução.”

E felizmente, muita gente ainda está.

13/12 é a última chance de ver o Planet Hemp ao vivo, na Fundição Progresso no RJ

ISMO
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