Onde o som encontra o asfalto

Das ruas e pistas para estúdios e palcos, uma genealogia de skatistas profissionais com carreiras sólidas que se tornaram músicos

Onde o som encontra o asfalto

A história do skate sempre esteve ligada à música, às vezes como trilha, às vezes como estética, às vezes como vibração coletiva, mas existe uma camada mais funda nessa relação, algo que ultrapassa estilo e postura e toca a sensibilidade de quem viveu o skate por dentro. No asfalto, aprende-se ritmo, repetição, leitura fina do espaço, convívio com o erro e um tipo de improviso que depende tanto da técnica quanto da intuição. Quando essa formação cruza a música, o que surge não é necessariamente mudança de rumo, mas ampliação de uma mesma linguagem. Esta é uma genealogia dessa travessia – uma constelação de dez skatistas profissionais de diferentes gerações, com carreiras sólidas no skate e que posteriormente, ou em alguns casos até paralelamente, levaram o movimento e a autoexpressão para dentro do som.

Steve Caballero

Steve Caballero é um daqueles raros casos em que a história do skate se confunde com a história de uma vida inteira dedicada ao movimento. Parte fundamental da Bones Brigade, ele atravessou gerações reinventando o vertical, criando manobras, expandindo possibilidades e mantendo um estilo que sempre uniu precisão e intensidade.

Caballero de camiseta preta e boné, quebrando tudo no lendário CBGBs

Essa mesma energia transbordou para a música desde cedo, em bandas como The Faction, Odd Man Out, Soda, Shovelhead e Urethane, onde Caballero mostra uma compreensão musical forjada em anos dentro de transições, calçadas e sessões intermináveis. Seu som é direto, veloz, disciplinado, carregado de uma urgência que lembra a sensação de dropar sem pensar duas vezes. Cab existe em movimento contínuo, e sua trajetória musical é apenas mais uma das formas que encontrou para permanecer nessa busca.


Duane Peters

Duane Peters é pura combustão. Conhecido como Master of Disaster, ele se tornou uma das figuras mais indomáveis da história do skate ao transformar piscinas vazias em território de guerra. É lenda do pool skating e um dos grandes inventores da linguagem do vertical moderno, creditado por criar manobras como o Acid drop, o Indy air e sua contribuição mais emblemática, o fakie hang up, ou simplesmente Disaster, quase um manifesto sobre ele mesmo.

Se procurar skate punk no dicionário, vai encontrar Duane Peters

Essa mesma energia crua, arriscada e imprevisível atravessou para a música, onde Peters derramou sua fúria e urgência em bandas como Die Hunns, U.S. Bombs e Duane Peters Gunfight. Sua música é agressiva, enérgica, sempre à beira do colapso. Ele não traduz o skate em som – ele continua o mesmo instinto que o levou a desafiar a gravidade, a ordem e os limites. Peters é o momento em que o skate e o punk se tornam uma só coisa.


Tommy Guerrero

Tommy Guerrero é a personificação do skate como filosofia de vida. Emergindo na Bones Brigade como um dos skatistas mais carismáticos e fluidos da história, ele ajudou a transformar a cidade de São Francisco em território mítico, com suas ladeiras infinitas e dias que pareciam não terminar. Quando migrou para a música, transportou essa paisagem inteira para dentro de seus discos.

Tommy Guerrero e banda, incluindo seu parceiro do skate Matt Rodriguez na percussão

Sua obra navega entre lo-fi, downtempo e soul instrumental, sempre guiada por texturas de rua, climas costeiros e uma sensibilidade quase cinematográfica. As faixas soam como passeios longos por bairros que só ele conhece, como se o concreto tivesse memória e ele estivesse apenas traduzindo suas camadas. Guerrero compõe com o mesmo olhar atento que sempre o guiou sobre o skate.


Ray Barbee

Ray Barbee trouxe leveza e fluidez para a transição entre skate e som. Lenda da Powell Peralta, ele marcou época com seus no complys soltos, linhas improvisadas e um estilo que parecia sempre flutuar sobre o chão. Foi um dos grandes rostos da virada técnica do final dos anos 80, aparecendo em vídeos fundamentais como Public Domain, Ban This e Propaganda, onde seu skate parecia mais expressão corporal do que manobra. A elegância com que costurava uma linha se tornou tão icônica que atravessou gerações.

Ray Barbee tocando com seu parceiro do skate Chuck Treece

Quando passou a se dedicar à música, levou consigo essa mesma sensibilidade fina: discos de jazz, soul e lo-fi que soam como linhas longas e suaves. Sua colaboração com o The Mattson 2 ampliou ainda mais esse universo, unindo vibração costeira, jazz experimental e a sensação de fluxo contínuo que sempre definiu seu skate.


Matt Hensley

Matt Hensley foi um dos maiores símbolos do lendário time da H Street, protagonista de algumas das videopartes mais marcantes do final dos anos 80 e início dos anos 90 e dono de um estilo que misturava potência, criatividade e carisma. Seu skate tinha algo teatral, como se cada linha fosse uma pequena narrativa contada em velocidade. Ao entrar para a banda de irish punk Flogging Molly, ele levou essa mesma intensidade para o acordeon, ocupando palcos gigantes com a mesma energia que trazia para a rua.

Não dá pra ficar parado num show do Flogging Molly

Sua presença musical tem calor, urgência e honestidade, como se cada música fosse uma manobra nunca antes feita em um pico inédito. Hensley faz da performance uma ética: corpo inteiro, alma inteira, movimento sem reserva.


Mario Rubalcaba

Mario Rubalcaba representa a colisão perfeita entre velocidade, precisão e caos que define o skate de rua. Profissional respeitado, ele sempre pareceu existir num limiar entre controle absoluto e explosão iminente. Esse mesmo pulso o levou para a bateria, onde se tornou peça central de bandas como 411, Rocket from the Crypt, Hot Snakes, Earthless, the Sultans e OFF!.

Rubalcaba sentando a mão na bateria do OFF!

Seu estilo é rápido, firme, agressivo, como se estivesse transportando suas manobras direto para o kit de bateria. Rubalcaba toca com o corpo todo, com uma determinação que lembra o momento exato em que se entra de grind em um curb com toda velocidade. Ele é o som da gravidade agindo no limite.


Matt Rodriguez

Matt Rodriguez é uma figura quase espiritual dentro da história do skate. Com estilo intuitivo, linhas longas e uma conexão profunda com a rua, ele sempre tratou o skate como ritual, não como performance. Essa qualidade silenciosa e meditativa também aparece em sua música, marcada por percussões, dub, jazz, improvisos e uma sensibilidade muito própria de quem enxerga além da matéria.

Matt Rodriguez tocando percussão com Tommy Guerrero

Rodriguez colaborou em discos de Tommy Guerrero e toca com ele, Ray Barbee e Chuck Treece no Blktop Project, coletivo que mistura groove, improvisação e paisagens sonoras que evocam pôr do sol, vento quente e a sensação de estar exatamente onde deveria. Sua música é skate em estado de vibração.


Parteum

Parteum é um dos grandes arquitetos da ligação entre skate e música no Brasil. Nos anos 90, quando ainda atendia por Fábio Luiz no circuito profissional e representava marcas como Perfect Line e LowPro, ele desenvolveu um olhar que via movimento como narrativa e repetição como refinamento.

Quando passou a se dedicar ao rap e à produção musical, trouxe com ele essa visão microscópica: beats que respiram, texturas que se desdobram, silêncios que falam tanto quanto os sons, tudo composto com a disciplina de alguém que aprendeu observando a cidade. Parteum pensa música do mesmo modo que pensa skate, como somatória de gestos, ritmo, técnica e construção.


Kamau

Kamau surgiu da mesma geração paulistana em que skate era escola estética e ética. Como skatista profissional, ainda conhecido como Marcus Vinícius, aprendeu a transformar o improviso das ruas, repetição em técnica e erro em estudo, desenvolvendo um entendimento preciso de ritmo interno. Essa sensibilidade migrou direto para sua música.

Suas rimas têm cuidado, proporção, respiração e uma atenção ao detalhe que só existe em quem passou horas no vale tentando encaixar uma linha. Kamau escreve como quem anda: observando, ajustando, buscando o equilíbrio certo entre intenção e fluidez. O rap, para ele, é desdobramento natural de uma vida guiada por movimento.


Sage Elsesser (Navy Blue)

Sage Elsesser é o rosto contemporâneo dessa linhagem. Cresceu no coração da cena da Supreme em NYC e se tornou profissional pela Fucking Awesome, com estilo técnico, presença marcante e uma sensibilidade estética que influenciou toda uma geração de através de vídeos, fotos e campanhas.

Na música, Sage se reinventa como Navy Blue e cria discos profundamente íntimos, espirituais e poéticos, transitando entre jazz rap, soul abstrato e atmosferas meditativas. Suas colaborações incluem nomes como Earl Sweatshirt, MIKE, Standing on the Corner e The Alchemist. Ele é a prova viva de que essa ponte não só existe como segue evoluindo. Navy Blue é o som de um skatista que aprendeu a transformar silêncio em profundidade.


Incontáveis horas e dias de dedicação à pratica, infinitas tentativas: o skate ensina tempo, corpo e ritmo antes de qualquer instrumento. A música só amplia esse vocabulário. Esses dez artistas mostram que a travessia entre asfalto, estúdio e palco não é exceção – é continuidade natural de uma sensibilidade moldada pelo movimento. No fim, tudo nasce da mesma pulsação.

Para fechar, montamos uma playlist ISMO exclusiva com uma seleção especial de músicas criadas, tocadas e/ou cantadas por esses skatistas músicos. Boa sessão!


ISMO
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