OGI & NILL: Manual para não Desaparecer
Um encontro geracional que transforma caos urbano em poesia fragmentada
Poucos encontros no rap conseguem reunir, de maneira tão simbólica, trajetórias e linguagens distintas quanto o de Rodrigo Ogi e Nill. Ambos carregam universos próprios, estéticas consolidadas e públicos fiéis, mas a força de Manual para Não Desaparecer está justamente no choque entre esses dois mundos.
Rodrigo Ogi é um dos grandes cronistas do rap brasileiro. Desde Crônicas da Cidade Cinza (2011), consolidou-se como narrador urbano, capaz de transformar detalhes cotidianos em imagens cinematográficas. Sua escrita é minuciosa, quase jornalística, mas sem perder a força poética: personagens, ruas e sentimentos ganham contorno em versos que soam como fragmentos de um filme não gravado. Ao longo da última década, Ogi refinou essa capacidade de narrar, tornando-se referência em rimas que olham para a cidade e para o cotidiano com densidade e lirismo.
Nill, por outro lado, representa uma geração que cresceu entre o rap e a internet, sem medo de misturar linguagens e provocar ruídos. Desde os primeiros trabalhos, mostrou domínio em tensionar a cena com ironia, referências da cultura pop — de animes a videogames — e um frescor ousado que dialoga diretamente com os códigos digitais de seu tempo. Se Ogi escreve como quem filma em película, Nill cria como quem edita no celular: colagem, velocidade, humor ácido e uma leveza quase trapaceira, que desafia o peso esperado do gênero.

Em Manual para Não Desaparecer, esses dois universos se encontram. O resultado não é apenas a soma de estilos, mas a criação de uma terceira voz — híbrida, fragmentada, caótica, mas também carregada de sentido. O disco se comporta como um diário esparso, feito de páginas soltas, lampejos íntimos e crônicas coletivas. Não há linearidade rígida: as faixas funcionam como fragmentos que, quando costurados, compõem um retrato vibrante da experiência contemporânea.
A diversidade dos instrumentais amplia essa sensação de mosaico. Há batidas densas e graves que evocam o peso da rua, beats etéreos que abrem espaço para o lirismo, e momentos de experimentação que surpreendem. Essa variedade não quebra a unidade do disco; pelo contrário, dá corpo a um trabalho que entende a multiplicidade como essência.
"O brilho da tele reflete na face, o meu celular é um cachimbo de crack"
Mas são as letras que concentram o núcleo mais pulsante da obra. Em vários momentos aparece o tensionamento entre a vida real e a digital: o celular é comparado a um cachimbo de crack, metáfora crua da dependência e da alienação geradas pelas telas. Surge também a dualidade entre a vida perfeita exibida online e a dureza concreta das ruas. Em outros trechos, o rap flerta com a ficção científica e a cultura popular, narrando abduções alienígenas e sampleando memes como o “Que Xou da Xuxa é Esse?” — ao mesmo tempo memória afetiva e ironia pop, ponte entre nostalgia coletiva e excesso midiático.

Há também espaço para o amor e o coração partido, tratados sem pieguice, mas como vivências que oscilam entre fragilidade e dureza. A ironia surge como arma contra coachs e pastores picaretas, desmontando o moralismo barato e a retórica fácil da meritocracia. E, atravessando tudo, está a cidade: São Paulo, não só como cenário mas personagem, território de solidão e encontros, violência e resistência.
As participações especiais reforçam esse caráter polifônico. Matéria Prima dobra a língua e torce a métrica, abrindo novas fendas semânticas; Jamés Ventura injeta tensão rítmica e peso; Roberta Estrela D’Alva traz a leveza e a crueza da poesia falada, costurando discurso e performance. Não soam como aparições isoladas, mas como extensões naturais do diálogo entre Ogi e Nill, vozes que expandem o manual e multiplicam os pontos de vista.
"A vida é um cigarro solto e sempre alguém passa pedindo quando tô no ponto"
Na espinha dorsal, além do próprio Ogi e de Nill, que também assinam algumas das produções, o disco reúne nomes que ajudam a manter a obra viva e mutante: Cravinhos, SonoTWS, Munhoz e Ryam Beatz criam terrenos sonoros que alternam densidade e respiro, digital e orgânico, sem perder a coesão. Os scratches de DJ Novset e DJ Mya B, presentes em duas faixas, reforçam a tradição e a importância de manter viva a cultura do DJ dentro do rap. É nesse vai-e-vem de camadas que a dupla encontra espaço para testar limites e afirmar presença, com as guitarras de Thiago Ticana entrando e saíndo como faíscas inesperadas nesse rico manual.
Esse conjunto de temas e colaborações reforça o sentido do título. Manual para Não Desaparecer não entrega instruções práticas: oferece pistas poéticas. O manual é, na verdade, a própria música, a palavra como arma e abrigo, a ironia como ferramenta de sobrevivência, o afeto como modo de insistir em estar presente.
"Deus existe, mas ele é todo mundo sorrindo em sincronia"
Mais do que um projeto colaborativo, o álbum reafirma o papel do rap como espaço de memória e futuro. É tradição e ruptura, crônica e meme, lirismo e ruído. Ogi e Nill oferecem não um manual fechado, mas a certeza de que, enquanto houver poesia e ritmo, desaparecer não é uma opção.