O “tênis de mil” e uma breve história da tecnologia visível nos pés brasileiros

Entre molas, discos, lâminas e ondas, o vis-tech virou linguagem, desejo e memória nas ruas do Brasil

O “tênis de mil” e uma breve história da tecnologia visível nos pés brasileiros

Vis-tech é a abreviação de "visible technology" (ou tecnologia visível). É quando a engenharia do calçado deixa de ser um segredo interno e passa a se exibir: amortecimentos à mostra, estruturas externas, sistemas mecânicos que fazem parte do visual. Ao invés de esconder a inovação, esses tênis a colocam em evidência. Mecanismos que antes ficavam embutidos passam a ser parte importante do design. 

No Brasil, essa estética encontrou terreno fértil. Tênis com as mais variadas tecnologias visíveis foram apelidados, desejados e ressignificados. "Tênis de mil" não é só valor de mercado. É gíria de quebrada, símbolo de status e pertencimento na periferia.

Onde começa essa história?

A tecnologia visível nos tênis tem marcos antigos. O Nike Cortez, de 1972, já exibia suas camadas de espuma na entressola, destacando a inovação por cores. Uma camada de espuma mais densa, azul, entre duas camadas de espuma mais macia, brancas, deixavam claro o investimento para uma corrida melhor. 

O adidas Forum, em 1984, destacava o suporte em X no tornozelo, que prometia evitar as lesões de tendão de Aquiles, muito comuns no basquete. Mas foi com o Air Max 1, em 1987, que o amortecimento se mostrou de verdade: na Nike, a bolha de ar ganhou uma janela. 

Na década seguinte, essa lógica se espalhou. A ASICS colocou seu GEL-Lyte em evidência, tanto no visual quanto na comunicação. A Reebok apostou no Pump, com seu botão que inflava o cabedal, e fez sucesso ao juntar interatividade e performance. A PUMA, com o Disc System, eliminou os cadarços e propôs um ajuste giratório em mais uma solução que virou assinatura estética.

A partir dos anos 2000, a Nike apostou alto nas colunas do Shox, a adidas testou as lâminas individuais do Springblade e a Mizuno desenvolveu estruturas onduladas na série Wave Prophecy. Era como se o tênis gritasse: “olha o que eu faço”.

Entre o acerto e o tropeço

Mas nem toda inovação visível vinga e exibir a tecnologia nem sempre foi o bastante. Nos anos 2010, a Nike lançou o Joyride, com micro-esferas em cápsulas transparentes que prometiam adaptação dinâmica ao pé. Parecia promissor, mas o uso prático revelou limitações. Algumas cápsulas furavam, a estabilidade era incerta, e a estética dividia opiniões. A tentativa de inovar seguiu a cartilha do vis-tech, mas sem o mesmo impacto cultural.

A tecnologia Joyride, da Nike, "flopou" nos anos 2010.

No Brasil, o vis-tech ganhou outros nomes

Enquanto na gringa esses modelos circulavam com nomes técnicos, no Brasil eles ganharam apelidos e significados próprios. O Nike Shox R4 virou "tubarão" por conta do formato da biqueira. O Nike Shox TL, ganhou o apelido auto explicativo "12 mola". O Mizuno Wave Prophecy virou sinônimo de status, o famoso "tênis de mil". Todos quase sempre apoiados pela estética do funk (e presentes em diversas letras de música).

Esses nomes não surgem por acaso. Eles revelam como cada modelo foi reinterpretado nas ruas, ganhando vida própria para além das campanhas e catálogos.

O caso do Shox é emblemático

Mesmo depois de ser descontinuado globalmente, o Nike Shox seguiu sendo vendido no Brasil. A demanda local era tão alta que a marca manteve a distribuição por aqui por mais tempo. Em São Paulo, Rio e outras capitais, o Shox nunca saiu completamente das ruas. Era o tênis do rolê, da festa, da foto no Orkut. 

O sucesso do Nike Shox no Brasil é inegável. Descontinuado no mercado nacional em 2021, ele retornou globalmente dois anos depois.

Desde 2023, com a tendência vis-tech se estabelecendo no mercado, ele vem timidamente voltando às lojas, aos poucos e pontualmente, mas com foco em um público mais nichado: os sneakerheads.

Novos ciclos, novos preços

Com o vis-tech sendo revalorizado, o mercado está se movimentando. Além das reedições do Shox, o Mizuno Prophecy ganhou colaborações e até uma versão híbrida, em fusão com a chuteira Morelia. A New Balance, antes tímida no visual tecnológico, apostou no Abzorb 2000 com pods expostos e visual nostálgico. As campanhas globais de lançamento de ambos os modelos se apoiam nos significados culturais das periferias brasileiras.

Campanha "The Game of Quebrada", da Mizuno, apresentando o híbrido entre Prophecy e a chuteira Morelia. O tênis chegou ao Brasil por R$ 2400.

0:00
/1:24

Campanha global do New Balance Abzorb 2000, gravada em São Paulo.

Mas o que antes era “de mil” agora pode passar dos dois mil reais no mercado nacional. O valor simbólico cresceu, e o valor monetário também. Em vez de ampliar o acesso, o novo ciclo reforça uma barreira: quem já via nesses modelos uma forma de ascensão agora precisa disputar espaço com colecionadores, revendedores e um mercado mais elitizado.

Por que seguimos olhando para esses tênis?

Talvez porque eles falem de desejo com linguagem própria. A mola visível, o disco giratório, a lâmina translúcida… Tudo isso traduz uma ideia de futuro que já foi o presente de muita gente. E continua sendo.

Esses tênis contam histórias de inovação, mas também de estilo, de esforço, de pertencimento. São peças que resistem no tempo porque fizeram parte da formação estética de uma geração. E ainda fazem. A tecnologia visível pode até mudar de nome ou de formato, mas continua nos dizendo algo sobre onde estamos e sobre onde queremos pisar.


ISMO
Cultura em movimento

Assine nossa newsletter e receba
as últimas notícias em 1ª mão!

Assine agora