O futuro é apenas colaborativo?

Quando collabs se tornam obrigação, identidades próprias perdem sentido

O futuro é apenas colaborativo?

Não dá para fugir das colaborações, sejam elas no mundo da música, da moda ou até da arte, elas estão em todo o lugar. E em uma sociedade liberal, na qual se valoriza a criação individual, collabs e feats seriam um caminho de diversidade e frescor, mas a impressão é que até esse legítimo movimento foi cooptado e se tornou mais um check na lista de quem busca atingir algum sucesso, ou pior, um caminho mais fácil para quem tem preguiça de criar.

De tênis que mal foram lançados e já esgotaram a coleções-cápsulas que mesclam elementos de comunidades distintas com o objetivo de ampliar público, as collabs dominaram o mercado e hoje é difícil encontrar alguma marca que tenha saído ilesa, seja no Brasil ou no mundo. Na enxurrada de parcerias, claramente algumas fazem sentido mas outras parecem ter saído de um sorteio de papelzinho no chapéu ou de algum prompt de I.A.

Havaianas e Copacabana Palace, Kith e adidas, Mercedes e Ice Spice são exemplos das collabs que vimos no último mês, e isso de memória, sem muita pesquisa. Não que toda parceria precise ser algo espetacular, mas a oportunidade de agrupar universos criativos ao redor de um produto parece ser legal demais para saturar, ou pior, para se tornar banal.

Que atire a primeira pedra quem nunca viu uma collab e se perguntou se aquilo era realmente necessário, de quem foi a ideia e como aquilo foi aprovado por alguém, ou melhor por algumas pessoas, afinal, o processo de criação de uma collab costuma ser longo, passa por várias instâncias e ok's até chegar nas ruas. 

De sacada para muleta

A premissa de uma colaboração é, na base, uma troca. Como já dito, em um ecossistema que exalta o individualismo criativo e a exclusividade, propor a união de forças ao gerar algo novo e, porque não, inusitado, é muito tentador. É uma ideia que permite o intercâmbio de conhecimento, referências, histórias, estéticas, materiais, tecnologias, técnicas e saberes. É um processo que permite diálogo cultural e que, na teoria, pode oferecer inovação e espontaneidade. Apesar disso, o que tinha como objetivo ser uma ferramenta estratégica passou a ser o caminho óbvio. Colaborações deixaram de ser uma escolha e se tornaram uma obrigação, um caminho pré-moldado.

O excesso de collabs diluiu o seu valor e se antes existia entusiasmo de ver um produto fruto do alinhamento de valores e da visão criativa compartilhada entre marcas e pessoas, hoje é só o rolar do feed de mais uma série de posts. O consumidor é bombardeado por comunicações que unem logos em um produto que tem as cores conjuntas das marcas e pronto.

Mano @damo_malik09 deu a letra

Onde está o problema?

Vamos ser sinceros, se tratando de produtos, não é como se o mundo precisasse de mais um tênis, um moletom ou um óculos, mas criação nem sempre é sobre necessidade, mas sobre a percepção de que novas propostas podem redefinir caminhos. O design serve à um propósito de solucionar problemas, mas também é capaz de trazer novos olhares a algo que sempre esteve posto. Mas quando falamos de moda, que em algum aspecto é o ponto central aqui neste texto, estamos vivendo um tempo de visita à arquivos, resgate de silhuetas de décadas anteriores para provar autenticidade, e novidades são vistas com estranhamento, quase como se um conservadorismo ocupasse a cultura que por sua vez tem um histórico de vanguarda. 

Voltando às collabs, o que as faz ser relevantes? Talvez o primeiro critério seja propósito. Uma colaboração precisa ser estratégica, trazer a visão de duas marcas, pessoas ou projetos, e para isso acontecer, bem, esses elementos precisam ter uma visão própria para apresentar. Não é incomum ver projetos se aproveitando de collabs para tentar se achar dentro de um mercado, nicho ou comunidade, mas quando eles sozinhos não conseguem alcançar esse objetivo, não é trazer um segundo nome que vai fazer milagre.

Outro ponto é saber quando fazer e quando parar, ou pelo menos renovar. Uma collab de sucesso não precisa se repetir com inúmeros drops, infinitas cores, várias versões do mesmo. Colaborações podem e devem gerar valor, e apresentar sempre a mesma coisa requentada, com certeza vai enjoar o público. Isso vale para marcas que vivem só de collabs - ou pior, licenciamentos - e pouco se preocupam em lançar produtos que mostrem sua proposta de exclusividade. Se o arroz com feijão não é bem feito, cozinhar parmegiana todo dia faz o prato perder a graça.

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Primitive, a rainha dos licenciamentos.

Narrativas são importantes e valem mais do que qualquer logo duplicado. O desejo de ver grupos interagindo é uma parada que gera barulho, cria expectativa, mas se o resultado é só um produto de preço dobrado, a decepção pode ser gigante. Boas colaborações costumam carregar boas histórias e contam isso através do resultado materializado, está nas cores, nos materiais, no design, na embalagem e na comunicação.

Por fim, saber onde se está pisando é bem importante, e mais ainda saber onde não pisar. Um dos motivos que faz das colaborações uma estratégia interessante é se conectar com públicos que antes talvez não o conheciam. É um caminho legítimo, mas não é incomum ver marcas querendo abraçar o mundo e no fim não atraindo ninguém. De novo, você olha para aquilo e pergunta: “porque?”. A real é que se na primeira reunião todo mundo se perguntasse o porquê de estar ali, talvez não teríamos uma boa parte das coleções que saem hoje, e isso é algo bom.

A gente realmente precisa de outro AJ1 Low x Travis Scott?

Um convite a originalidade

Considerando que exista um futuro, ele não parece dos mais empolgantes, isso é um fato. E saber que o próximo grande anúncio dentro do universo da moda ou de outros espaços criativos será mais uma collab me deixa mais triste ainda. Estamos correndo o risco real de ver a criatividade ser engavetada em prol de um soldout garantido pela repetição. A falta de ousadia e alegria, de propor algo realmente novo, de investir em talentos, e até mesmo um desconforto para sair do lugar comum é preocupante.

A ideia aqui não é ser contra as colaborações mas entender o objetivo original de conectar marcas, projetos e pessoas, de sair, de se desafiar, ser original e lembrar que se conectar com a própria originalidade e essência é um caminho mais interessante. Repito que ter uma marca forte, com visão própria e bem desenvolvida é fundamental, afinal, depender do brilho emprestado de outras não é a melhor das rotas para se alcançar um objetivo.


ISMO
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