O Contexto sem Texto de DJSCOPEBOYG

A história por trás da obra-prima do DJ gaúcho que é um marco na cena do grime

O Contexto sem Texto de DJSCOPEBOYG
Foto: @petriusdias

Contexto sem Texto é o álbum de DJSCOPEBOYG, DJ e produtor de grime natural de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul. Lançado em dezembro de 2023, o projeto conta com participação de diversos MCs da cena e interlúdios feitos em conjunto com sua mãe.

Até então exclusivo no BandCamp, o disco acaba de ser disponibilizado no YouTube, após uma decisão do produtor de removê-lo da plataforma depois de quase dois anos no ar.

Essa decisão, como conta o DJ, foi tomada com a intenção de democratizar o acesso ao projeto e valorizar o seu conteúdo.

Trocamos uma ideia sobre a cena do grime, os processos por trás do álbum e as dificuldades de veicular e fazer dinheiro sendo um artista independente. Confira o papo na íntegra.


Queria começar entendendo como começou a sua relação com o grime, de onde veio esse interesse?

Começou bem ali no iniciozinho da pandemia, eu lembro que eu vi ali os primeiros EPs do Brasil Grime Show — o primeiro episódio com o JXNVS — e nem sabia o que que era. A gente colava numa pracinha aqui na rua de cima de casa e o meu mano me apresentou: “ó, os caras tem maior estilo, mas eles cantam em uns beats totalmente diferentes.”

Na época eu estava fazendo phonk, eu brisava muito no 120 BPM e gostava muito de samplear, mas a galera começou a olhar para o grime, e eu meio que eu fui saindo daquele bagulho do phonk, que era uma parada do Japão, carro — e eu nunca curti esses bagulhos de carro e tal, não entendo nada, sempre andei de skate e busão. Eu vi que o bagulho tem a ver com videogame, via as musiquinhas ali do PS2 e vinha uma lembrança, e aí eu fui parar para estudar mesmo, tá ligado?

Depois do episódio do VND e do OG BRITTO, que foi o EP que eu mais me identifiquei, eu comecei a querer comprar as roupas — acabei me identificando mesmo. Voltei a jogar os jogos de PS2 — que é só jogo bom e não é caro — e casou toda essa estética.

Me resgatou muito a memória da infância, na real — a minha irmã mais velha tinha um Nokia, e eu ouvia os riddims de celular, então quando veio o grime, ativou essa memória. Na época o trap estava estourado, e eu nunca gostei muito, então eu comecei a ouvir e a absorver muito do grime.

E quando foi que você começou a produzir grime?

Eu comecei a fazer jungle primeiro, tá ligado? Só que eu não entendia muito bem, aí eu fazia tipo um jungle nos 136 BPM, e ficava uns breakbeat. Eu estava migrando do phonk, então eu ainda não tinha os drum kits, usava as baterias de phonk.

Eu lembro que eu postei essas faixas no BandCamp e me deu nove dólares. Eu já estava há um tempo fazendo música e até então não tinha me dado nada. Eu peguei e mostrei para a minha mãe: “ó, tô ganhando em dólar!”

Ela curtiu o som e achou diferente, perguntou o que era, eu contei que era um bagulho africano, que trabalhava com as percussões e com o grave essencialmente. Cada vez mais eu fui pesquisando e me identificando com a cultura, porque eu não curtia música eletrônica — achava que era música de playboy, e me apresentaram uma outra eletrônica, com o grime, que é totalmente africano.

Vamos falar sobre o Contexto sem Texto, qual é o contexto (risos) por trás desse disco?

Eu queria fazer um álbum e, até então, eu só produzia beat. E aí eu pensei: “por que eu não tento juntar uma galera?” — e eu consegui juntar uma pá de gente. Consegui juntar o Nice, o Prmt, o Fumace270, tem um maninho que é daqui da região também, o Gabriel Gomes, tem bastante gente.

Capa de Contexto sem Texto (por @hygorkihara)

Mas a ideia, mesmo, do Contexto sem Texto, veio de uns poemas da minha coroa, que ela fazia quando ela tinha uns 20 anos. De vez em quando ela me mostrava e eu tinha uns equipamentos aqui em casa e falei: “ô mãe, vamos gravar uns poemas.” Ela colou aqui e gravou alguns que usei de intro e de interlúdios pro álbum. Esses poemas falam sobre o Brasil, na visão de adolescente dela.

Aí eu falei pros moleques, tipo uma missão: “vocês têm que pegar esses poemas e tentar criar um grime em cima das minhas batidas” — e eu achei daora que cada um usou o dia a dia deles nas letras para se expressar. Tem o J3LLYX, que é do RJ, e fala muito desse bagulho de trampo — quando eu vivi em Florianópolis, cidade grande, era muito isso, caçar trampo — o Bardek também está no álbum, ele fala do soldado do morro. São várias reflexões em cima desses poemas da minha mãe, tá ligado?

E você já tinha uma relação com os MCs ou esse contato veio a partir do álbum?

Já trocava ideia, já tinha um networking, mas tem MCs que eu nunca tinha trocado ideia e a partir dali a gente fez amizade. Tem o Ellika e o DIRR Viittu, que são do drill, eles tinham gravado essa faixa que achei muito foda também.

Tem uma faixa que é a minha favorita — “Alerta!”, com o Kpivara, que é o mesmo nome do poema (“Alerta! (Interlúdio)”) — é uma faixa que fala de racismo, e a minha mãe já passou vários bagulhos aqui, que é bem interiorzão mesmo.

Contracapa de Contexto sem Texto (por @hygorkihara)

Ele tem essa importância bastante pessoal para você, né?

Esse álbum tem, mano. Mas é uma mensagem, também, porque para o cara estar aqui, os coroas do cara passaram por algumas coisas, tá ligado? Esse álbum é tipo uma reflexão, uma homenagem. Não teria um contexto se não tivessem os poemas, e esse texto, que é retirado do caderno, é transcrevido em letras, é cantado. 

O álbum fala sobre isso — que os poemas que a minha mãe escreveu adolescente não são diferentes do rap que um adolescente escreve hoje, é um bagulho de revolta igual. O poema fala sobre fome no Brasil, sobre racismo, sobre não ter oportunidade, sobre olhar mais para as crianças — as mesmas coisas que os artistas falam hoje.

De 1982 até hoje o Brasil não mudou nada, e foi isso que eu quis botar no álbum. Tem um contexto, mas tudo que foi falado não é lido, ou não recebe atenção — o Brasil não muda. Eu li os poemas dela e falei para a rapaziada se expressar como eles quisessem. Eu curti todas as faixas, e virou um álbum.

E os beats? Eles foram feitos pensando no disco ou já existiam?

Eu pedi para os moleques escolherem. Eu fiz esses beats desde janeiro de 2023 até novembro de 2023 — em novembro eu comecei a montar tudo — então eu separei vários beats, uns mais difíceis, uns bem grime. 

Eu fiquei bem feliz da Kenyon ter soltado os instrumentais, porque os caras lá de fora começaram a tocar um dos beats, o de “Alerta!”, que é bem grime mesmo, tem as percussões de grime, é mais voltado para um dubstep, é mais uma parada para refletir.

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Alerta! torando lá na Skeen em set do DNDY com MCs

Os beats saíram pela Kenyon Sound, como você falou, e eu vejo que vários gringos te acompanham. Como é esse contato com o pessoal de fora, você mantém uma relação com eles?

Eu tento, só que eu não sei falar inglês. É uma parada que eu realmente preciso ir atrás, esses collabs. Aconteceu de muito gringo trocar uma ideia comigo, não sei o porquê, mas eu fico feliz, porque ajudou a pagar umas paradas. Mas eu queria fazer mais pela cena ainda, o grime tá no início.

Os gringos olham para cá, porque olha o tamanho que é a Europa. Eles têm tudo que é equipamento, mas não tem público, e para a bolha deles estourar, eles precisam fazer a parada ser internacional. Tu vai ver o funk no Brasil, nós não queremos que o funk seja internacional, tipo, eu não quero ver gringo rimando funk (risos).

Mas eles precisam de um público internacional, e o Brasil é do tamanho da Europa, então o que casar, vai ser bom para eles — e para nós também, que vamos estar ganhando em euro e fazendo um networking. Eu acho que a ideia é essa mesmo, internacionalizar a parada para conseguir um público a mais. Eles têm uma forma melhor de dar suporte, eles têm o poder aquisitivo de montar uma rádio internacional. Aqui, com o passar do tempo vai gerando uma conta que é muito grande, e fica insustentável.

Eu sempre quis lançar alguma coisa na Kenyon Sound, eu acho que todo brasileiro quer lançar alguma coisa lá algum dia — um set, um álbum. Eu via o álbum do VIANA, do J3LLYX, e eu pensava: “eu tenho que ter o meu.”

Quando eu tinha o Contexto sem Texto, eu falei com eles, e dois meses depois do lançamento, saiu a versão instrumental para dar aquele bônus. Na época rolaram as enchentes aqui no Rio Grande do Sul, e o dinheiro das vendas era para converter para doação. Eu não sei se eles fizeram isso, mas eu também não recebi, então espero que eles tenham feito (risos).

O álbum agora está disponível só no YouTube, como full album — até então, ele era exclusivo do BandCamp. O que motivou essa retirada da plataforma?

Aquele som, com todo o valor que ele tem, não estava sendo visto. Aquele momento ali ele me rendeu o que eu precisava, e agora eu vou basicamente eternizar o álbum para todo mundo ouvir, todo mundo ter acesso. Porque até então, no BandCamp tu escuta ali as 10 faixas e daí ou compra, ou não escuta mais, né?

E sei lá, o BandCamp te dá dois dólares a cada mil, não sei se compensa muito. Eu quero dar uma expandida na parada, o álbum é de dezembro de 2023, já fazem dois anos que ele tá na pista, e eu vejo que agora é o melhor momento de tirar ele ali do underground.

Vocês veem as vendas ali no BandCamp, mas às vezes o cara acaba se frustrando bastante com essa questão de vender a parada. Porque o valorzinho ali, aqueles cinco pila, às vezes tem uma cota que não vem. Eu vi que o BandCamp funciona de uma forma estranha — ele mesmo te divulga, mas quando ele quer. Eu fiquei muito tempo batendo cabeça com o algoritmo dele, e o Contexto sem Texto estava lá atrás, no meio de um monte dos meus lançamentos.

Ele era o álbum que eu queria que a galera mais ouvisse, mas não era o que mais estava vendendo — aí eu meio que me revoltei e decidi tirar. Eu consegui fazer poucas vendas — ele estava a sete dólares — e foi um bagulho que tinha um peso maior, e eu acabei ficando meio chateado. Tirei ele, mas ele está guardado a sete chaves.

É uma estratégia, porque teve umas dez pessoas que compraram, e essas pessoas vão ter esse álbum ali na pasta do PC, e para o resto, vai ter no streaming. Isso dá uma valorizada, é muito do grime, esse lance de exclusividade e de valorização. Porque no momento que eu soltei ali, a galera pegou, né? Quem pegou, pegou, agora já foi. Eu vou tirar os beats da minha conta, vou lançar outros, vender outros e quem tinha aqueles lá vai usar, e continua sendo eu — independente do beat estar online ou não.

É muito complexo o processo de veiculação do som, né?

É osso, mano. Eu comecei a prestar atenção nos artistas que faziam grana no BandCamp — eram só os europeus, que lançam vinil, camiseta, eles conseguem, mas isso é o mainstream da plataforma. Os caras do BandCamp não querem que pobre poste coisa na plataforma, eles querem o artista que faz um vinil por ele mesmo e lança na plataforma para eles ganharem em cima.

E tipo, o BandCamp me deu um dinheiro massa, mas eu vi que se eu fizer orgânico, chegar na de alguém e tentar vender o álbum, dá na mesma. Hoje eu estou explorando criar uma label, lançar no Beatport. O BandCamp, infelizmente, te fala que é a nata do underground, mas tu tem que pagar anúncio para veicular lá, e acho que se é para pagar, é melhor pagar para o Spotify.

Então eu estou bem underground mesmo, caí fora do BandCamp. Percebi que é muito melhor outra mídia postar para ti do que lançar independente. É muito difícil tu fazer orgânico, e essas colaborações é o que ajuda.

Eu fiquei cinco anos no BandCamp, com 217 seguidores, mas era periódico que caia a moeda. Tinha os mesmos que sempre davam, mas o BandCamp é complicado.

E qual você enxerga que pode ser o caminho para conseguir colocar os sons na pista?

Voltar para a rua, mano. Esses dias eu fiz uma batalha de rima com os moleques aqui, acho que tinha 30 pessoas — não é muito, mas para uma cidadezinha…

Eu chegar e dar todos os meus beats para o parceiro tocar, acho que é por aí. Sair, mostrar o som, para qualquer pessoa da rua, vale mais do que o anúncio. Claro que dá um puta trabalho, chamar 300 pessoas para escutar meu som, mas é uma forma. E eu vi que é um jeito que vem dando certo.

Não olho mais para o dinheiro, a questão mesmo é a divulgação — um impacto na cena. Às vezes coloco um free download e fico bem mais feliz da galera ter baixado a minha música de graça, do que ter lançado e vendido. 

Confira o álbum na íntegra no YouTube


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Viva o grime nacional.


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