O bom malandro latinoamericano

Não se reconhecendo só no Brasil, Don L busca olhar para a América do Sul em seu novo álbum

O bom malandro latinoamericano

O Brasil tem proporções tão continentais que, por vezes, tem dificuldade em entender que faz parte de um corpo maior. São muitas culturas presentes em cada canto desse país mas, definitivamente, somos tão latinos quanto nossos hermanos abaixo, peruanos ao lado e os chicanos ao norte. Essa identidade latina, que não se resume à marca de vacina no braço, foi se distanciando de algumas expressões artísticas como a música, muito por conta da massificação cultural imposta principalmente pelos Estados Unidos, e quando em oposição à isso, giravam em torno de uma eterna busca da identidade nacional.

Apesar de ser um gênero estadunidense, o rap por aqui tem o histórico de resgatar origens através dos samples e, apesar da avalanche do trap, recentemente vimos grandes nomes da cena olhando para o passado na construção de um futuro mais nosso. Mas isso não é suficiente para Don L, e o rapper favorito do seu rapper favorito, para se manter diferente, optou por olhar para a América Latina como ponto definidor da estética e do discurso de seu mais recente trabalho: Caro Vapor II - qual a forma de pagamento?.

colagem de Filipi Filippo com fotos de Bel Gandolfo e Larozza

A continuação de sua primeira mixtape solo, Caro Vapor/Vida e Veneno de Don L, retoma uma história iniciada em 2013, e atravessa outras construídas na última década com os Vol. 3 e 2 de Roteiro para Aïnouz, de 2017 e 2021 respectivamente. Neste, que é o álbum com mais samples mas também o mais orgânico da carreira do artista, Don L parece se ver como o Brasil se vê em relação à América Latina, numa crise de pertencimento dentro de um território ao qual sempre fez parte. 

Desde seu trabalho com o grupo cearense Costa a Costa, o que motivava Don e demais membros era fazer algo diferente do que era visto no rap nacional dominado pelo Sudeste. Fosse pela escolha de referências, sonoridades, cadência nas rimas e obviamente o sotaque, repetir a fórmula de sucesso não era uma opção. Mais do que posicionar o Nordeste na cena, eles queriam mostrar que aquilo era tão ou mais rap brasileiro quanto o que se produzia em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo.

Agora, 20 anos depois e com uma carreira solo bem estabelecida, Don L quer fazer o mesmo, mas a nível continental. Seu álbum quer se distanciar da sonoridade clássica do rap norte-americano mesclando elementos de sons afro-latinos com samba, bossa-nova e funk. Mas o objetivo não para só na estética e na musicalidade, já que forma não é suficiente, mas o conteúdo dialoga diretamente e constantemente com esse pertencimento que precisa ser construído e lembrado.

Eu sou do sul da América
E vocês nunca vão saber
(É outro bagui)
Eu sou do sul da América
E vocês nunca vão saber
(Não fazem como eu fiz)

Já na primeira faixa o artista retoma o clássico moderno da primeira mixtape, Morra Bem, Viva Rápido, com os metais, mas agora numa levada mais bossa que finaliza nos tambores ritmados, hoje tão lembrados pelo funk mas que estão ao mesmo tempo nos terreiros afro-brasileiros. Mas é para Kendrick e Kanye, segunda faixa do álbum, que escancara a temática do disco, ao referenciar o clássico de Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges na voz de Milton Nascimento, Para Lennon e McCartney (1970). Na faixa sampleada, Milton deixa um recado para os artistas mais conhecidos do mundo na época, que aqui pelo sul da América tem gente fazendo muita coisa boa, e Don L, mais de 50 anos depois fala para 2 dos maiores rappers vivos que aqui eles não se criam. 

Milton Nascimento, aliás, foi um dos artistas brasileiros que, em seu período de atividade, mais se preocupou em tocar na temática da identidade latina para o brasileiro. Ele tinha o continente como fio condutor de boa parte do seu trabalho e faixas como Canción Por La Unidad Latinoamericana, ou a forte colaboração com artistas do calibre de Mercedes Sosa, demonstram isso. Don L sabe bem disso e não poderia deixar o mestre Bituca de fora do caldeirão de referências que alimentou na produção deste disco. 

E então, estrangeiro aqui, de novo
Não integrado, cê já sentiu assim entre o próprio povo? (Eu já)
Agora o outro, o exótico, não só o louco
O mundo é nosso e eu deslocado ao próprio corpo
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Em iMigrante o bom malandro aborda os mais de 10 anos morando em São Paulo, vindo de Fortaleza, e ainda se sentindo deslocado, um forasteiro na cidade, ao mesmo tempo que tem dificuldade de se reconhecer ao voltar para seu lar. O Nordeste, fonte de tanta cultura, nossa cultura, apartado de uma identidade dominada pelo sul, e com dificuldade de se reconhecer, assim como o Brasil não consegue ou por vezes não quer se reconhecer como latino, como parte de uma comunidade.

Como falei, não é só conteúdo mas também forma, e os sons, sampleados e orgânicos se inspiram muito no mambo, na salsa, na guajira e no bolero cubanos. Percussões, pianos, maracas e violões marcam compassos dançantes, solares, quentes e coloridos como o Caribe. É um disco difícil de ouvir sem se mexer e, apesar dos temas densos, também difícil de ouvir sem ficar com um sorriso no rosto, coisa distante da cara fechada tão pregada pelo rap de anos atrás.

Dos grandes nomes, BK’ tinha brincado com esses sons há alguns anos com Mudando o Jogo e mais recentemente MD Chefe trouxe o estilo de vida litorâneo e latino em seu álbum Garbo e Elegância. Mas Don L conseguiu aprofundar as discussões e fazer um disco que facilmente já concorre entre os melhores do ano, e eu não estou falando só de rap.

Como os outros trabalhos dele, ainda vão ser necessárias algumas várias audições para pegar todas as nuances, reconhecer todos os samples (sem explanar, por favor 🤫) e até descobrir que aquilo que parece sample é na verdade criação original da cabeça do cara. Ainda bem que por aqui não estamos com pressa e o próximo play vai começar já já.


ISMO
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