O banal extraordinário nas capas de Cafi

Testemunha e membro da geração de moldou a música brasileira

O banal extraordinário nas capas de Cafi

É preciso uma sensibilidade acima da média para extrair arte do cotidiano, ter o olhar calibrado para perceber que momentos banais podem ser alimentados com significado a partir da escolha de quem observa. Carlos da Silva Assunção Filho, mais conhecido como Cafi, é uma dessas pessoas, que usou sua sensibilidade para ampliar os sentidos de outras obras, aqui no caso, as sonoras.

O recifense, que teve o primeiro contato com as artes através da pintura e da gravura, encontrou a fotografia ainda jovem, após ganhar uma câmera de presente da irmã. Talvez ela não tivesse ideia de que o gesto faria do jovem o responsável por algumas das imagens mais icônicas a adornar discos e marcar gerações. Com um portfólio que ultrapassa as 260 capas, Cafi não apenas registrou a história da nossa música, mas também ajudou a moldá-la com sua visão única e inovadora.

Nascido em 1950, Cafi se mudou para o Rio de Janeiro em 1965, onde começou sua carreira na efervescência cultural dos anos 70, principalmente ao acompanhar um grupo de artistas mineiros conhecido como Clube da Esquina. Em pouco tempo se tornou um dos mais requisitados da indústria fonográfica, afinal, suas capas não eram apenas invólucros, mas extensões da obra, capazes de evocar emoções, narrar histórias e até mesmo antecipar o que se encontraria ao dar o play.

A genialidade de Cafi reside na sua capacidade de transitar por diferentes estilos e estéticas. No minimalismo elegante, na exuberância de cores com a saturação lá no alto, no jogo de luz e sombra ou na experimentação visual, cada capa assinada por ele carregava uma identidade forte e memorável. 

“Clube da Esquina” - Milton Nascimento e Lô Borges (1972)

Um dos maiores e melhores discos da música brasileira tem uma capa tão icônica quanto as faixas que o compõem. Cafi acompanhou e documentou boa parte do processo de composição e gravações de Clube da Esquina, mas foi em uma viagem de carro por Nova Friburgo que o fotógrafo avistou duas crianças sentadas sobre um monte de terra, assoviou, e fez o registro. Sem nome dos artistas ou título impresso, só a foto e nada mais. A Odeon, gravadora do projeto, não curtiu muito a proposta mas foi convencida e, bom, o resto é história.

“Lô Borges” - Lô Borges (1972)

Ainda durante a gravação de Clube da Esquina, Lô foi convidado à produzir seu primeiro disco solo, e Cafi, que já o acompanhava, ficou responsável pela capa. O par de adidas surrado foi clicado na frente da casa do artista e representava a vontade de Lô Borges de colocar o pé na estrada e se livrar das amarras que a gravadora poderia criar. Assim como o projeto anterior, não foi bem aceita, mas a Odeon acabou cedendo e hoje o disco é popularmente conhecido como o “Disco do Tênis”. Pelo jeito o selo não tinha muita visão de futuro nesse sentido.

“Minas & Geraes” - Milton Nascimento (1975 e 1976)

Os álbuns lançados em sequência foram projetos de Milton que abordavam dois universos opostos e complementares, o urbano e o rural. No primeiro, o título é a soma das iniciais de nome e sobrenome do músico. A capa é crua, um close no rosto de Milton, firme, sereno, sério, uma expressão difícil de ler, mas que nos olha de volta com profundidade. Já Geraes traz o lado rural e folclórico da América Latina e na capa, uma ilustração do próprio Milton, de montanhas e um trem com três vagões representando sua cidade adotiva, Três Pontas/MG. O projeto ainda chegou a ser lançado junto, em um LP duplo com encarte laminado prateado, unindo a identidade dos dois discos, assinada por Cafi.

"Alma de Borracha”-  Beto Guedes (1986)

Ainda entre a gangue, ou melhor Clube, Beto Guedes é um dos que mais discretos, tanto que poucos se lembram de sua participação no disco que leva o nome do movimento. Mas em Alma de Borracha, título que alude à Rubber Soul dos Beatles, Cafi expõe a maturidade do trabalho e da vida de Beto, registrando um momento de relação entre pai e filho. É bonito pensar nas transformações e na flexibilidade que uma nova vida possui, mas que também é capaz de moldar o que já está posto.

“For All Para Todos" - Geraldo Azevedo (1982)

Nesta capa Cafi coloca pra jogo suas habilidades como ilustrador e artista gráfico ao distribuir elementos comuns da vida brasileira para o álbum de seu conterrâneo, Geraldo Azevedo. O álbum, cujo título brinca com o gênero forró, realmente é um saladão de sons que vão do rock - inclusive com pitadas de prog, acredite se quiser - ao bom e velho baião. A escolha de cores e principalmente da fonte trazem o verdadeiro sentimento popular para a capa do disco de um dos maiores da nossa MPB.

"Certa Noite Acordei de Sonhos Intranquilos"- Otto (2009)

Um dos melhores álbuns de 2009 teve o privilégio de ter a capa e encarte fotografados por Cafi junto a Talita Miranda. O disco de Otto, composto em um momento em que sua vida passava por um turbilhão de emoções, se reflete não só nas letras como no projeto gráfico. Na capa, o artista interage em performance com peças do artista pernambucano Tunga, metamorfoseado, e trabalhando incansavelmente. O resultado é tão surreal quanto o universo de Tunga, de Kafka e, porque não, de Cafi, que transformava o comum em extraordinário.


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