Música para otakus, ou animes para fãs de música
Intercâmbio de gêneros artísticos e culturas

A relação entre animes - como são conhecidas as animações japonesas - e música vai além do uso em trilha sonora, aberturas ou AMVs, sendo uma fusão de culturas que contribui para narrativas e dita ritmos às cenas. Muitos animes são lembrados ou até definidos por seu perfil musical e furam a bolha de fãs otakus. O recém lançado Lazarus, dirigido por Shinichiro Watanabe, veio acompanhado de 3 álbuns realizados por Kamasi Washington, Bonobo e Floating Points, e serve como ótimo exemplo contemporâneo dessa relação entre oriente e ocidente.
A comunidade já cria AMVs há vários anos
Shinichiro Watanabe é um velho conhecido do universo dos animes e seu nome hoje pode ser considerado sinônimo de qualidade técnica, narrativa e também musical. Seu trabalho mais famoso, Cowboy Bebop (1998), é um marco na história e chega a ser difícil evitar o termo “revolucionário”, já que integra a música à animação de um jeito muito original.
Yoko Kanno, compositora e musicista japonesa montou a banda Seatbelts para compor a trilha que tem o jazz como base, mas que viaja pelo blues, rock e até sons mais eruditos. O nome do anime, inclusive, vem de Bebop, subgênero do jazz conhecido pelas harmonias mais aceleradas e virtuosas, que casam demais com as cenas de ação e a narrativa noir e futurista criada por Watanabe. Até hoje, Cowboy Bebop é lembrado e celebrado por sua trilha sonora. Um verdadeiro clássico.
Seguindo essa veia de experimentar unir os dois universos, Watanabe, em 2004 nos presenteia com Samurai Champloo, animação se passa no Japão feudal mas que em sua trilha foge completamente do que se imagina pelo contexto. As esperadas flautas e tambores de guerra são substituídos pelo hip-hop e lofi de Fat Jon, Tsutchie, Force of Nature e o saudoso e talvez mais conhecido aqui no ocidente, Nujabes, responsável pela faixa de abertura.
Apaixonado pela cultura hip-hop desde a adolescência, Watanabe decidiu unir dois universos que o fascinavam em um único trabalho. Em entrevista, o diretor cita que Samurai Champloo e a cultura hip-hop se comunicam através do sampling, a clássica técnica de cortar músicas já produzidas para então criar algo novo, e que usou muitos elementos de filmes clássicos de luta e com a temática samurai para realizar cenas de seu anime. E para engrossar o caldo, Sato Dai, que atuou como roteirista em SC, diz que assim como o hip-hop, quis contar uma história sobre minorias, já que os personagens, naquele período, também eram marginalizados.
R.I.P. Nujabes
E como estamos falando sobre essa mistura entre a cultura negra e a tradição japonesa, outros exemplos notáveis são Afro Samurai (2007) e Yasuke (2021). O primeiro, criado por Takashi Okazaki, coloca um samurai negro em uma busca por vingança. Muito inspirado nos filmes de blaxploitation, - movimento cinematográfico dos anos 1970 e que por si só já daria um artigo - o projeto chamou a atenção de Samuel L. Jackson, que contribuiu criativamente, deu voz ao personagem principal e ainda chamou RZA, do Wu-Tang Clan, para tocar a trilha sonora. O resultado é um soul funkeado que embala as batalhas sangrentas, dando um outro movimento para a animação.
Já Yasuke, de LeSean Thomas e Takeru Satō, se inspira na figura histórica de mesmo nome, um samurai africano que serviu no japão entre 1581 e 1582. Aqui o som ficou por conta do produtor e DJ Flying Lotus, que escolheu um caminho mais orgânico, mesclando instrumentos de sopro e percussão aos sintetizadores. Na faixa de abertura ainda chamou seu parceiro Thundercat, que também é mega fã das animações japonesas, para dar uma palinha.
Neste contexto histórico super rico, e que se expande para além das referências aqui apresentadas, os álbuns Lazarus acrescentam valor ao trabalho de Shinichiro Watanabe. São três artistas com identidades muito marcantes, carreiras reconhecidas e que tiveram a oportunidade de, pela primeira vez, trabalhar na produção de uma trilha sonora original. A liberdade criativa oferecida por Watanabe faz com que o jazz quase espiritual de Kamasi Washington, as camadas eletrônicas de Bonobo e a atmosfera mais agitada de Floating Points se tornem protagonistas e ajudem a construir o mundo imaginado pelo diretor.
Os três trabalhos funcionam sozinhos, de forma autônoma ao anime e entre si. Kamasi apresenta faixas grandiosas, que remetem ao The Epic (2015), ao mesmo tempo que parece cruzar o país, indo para o jazz urbano e mais lento, característico de Nova Iorque. Bonobo, por sua vez, vai mais para o lado do trip-hop, brincando com diferentes texturas que criam verdadeiras paisagens. Já Floating Points cria uma parede de som que parece misturar os dois artistas anteriores, abusando dos elementos eletrônicos em algumas faixas, e tirando o pé do acelerador para entrar com cordas e percussões mais sutis em outras.
A sacada de chamar artistas de gêneros diferentes mas que de alguma forma se conversam, para produzir um trabalho original, fugindo do óbvio de licenciar faixas, mostra a visão e o comprometimento de Watanabe em moldar universos que existem não só pela narrativa, visual, ou pelos personagens, mas também pelo som. Lazarus ganha uma camada de profundidade e, mesmo que ainda esteja no meio de seu lançamento, já é destaque.

Por fim, a relação entre anime e música, aqui exemplificadas por Cowboy Bebop, Samurai Champloo, Afro Samurai, Yasuke e agora Lazarus, é de um intercâmbio não só entre artes diferentes, mas entre culturas diferentes. A música se torna agente e na prática dá o tom para histórias, mas também ajuda a cruzar fronteiras.