Monstruosidade feminina

Um papo sobre filmes de terror, mulheres, e filmes de terror feitos por mulheres

Monstruosidade feminina

Nem só de sustos, violência gráfica e aparições sobrenaturais vive o cinema de horror, que tem visto seus limites se expandindo cada vez mais, muito por conta da perspectiva inovadora que as mulheres têm trazido, injetando um frescor muito necessário ao gênero.

No Brasil, um dos projetos que difunde a participação feminina no cinema, especialmente no terror, é o Mulheres no Horror, idealizado por Rafaela Germano. Convidamos Rafaela para um papo sobre o projeto e, para nos ajudar a explorar o cenário do cinema nacional, ela ainda compartilhou uma lista de filmes de terror brasileiros dirigidos por mulheres.


Rafaela em seu habitat natural (foto: Thamyris Escardoa)

E aí, Rafa! Pra começar do começo, se apresenta por favor.

Sou a Rafaela Germano, eu trabalho com cinema e audiovisual, me formei em Cinema e Audiovisual na Federal do Espírito Santo. Eu fiz mestrado em Comunicação na Federal de Pernambuco, sempre pesquisando sobre cinema de horror e hoje trabalho como assessora de imprensa na Cine Comunicação. Eu nasci em Laguna, Santa Catarina, que é uma cidade bem pequena, que não tem nem semáforo, mas eu já morei em vários lugares, já morei em Vitória, já morei em Recife, em Portugal e hoje moro em São Paulo há mais ou menos quatro anos e meio. 

Quando surgiu o projeto Mulheres no Horror? 

O Mulheres no Horror surgiu mais ou menos entre 2016 e 2017, que foi quando eu já estava na faculdade e entrei para um grupo de pesquisa sobre cinema de horror. Aí eu comecei a desenvolver uma pesquisa que era sobre filmes de vampiro feministas. Então na época eu percebi que não tinha nenhum site assim, nenhuma mídia voltada apenas para falar sobre obras de terror feitas por mulheres aqui no Brasil. Eu só tinha visto isso em outros países, mídias de outros lugares, e eu achei que seria muito importante que a gente tivesse esse espaço para discutir sobre filmes e livros de terror aqui no Brasil, com protagonismo e autoria femininos.

Na Ponta dos Dedos (2023), dir. Christos Nikou

Tá, vou dar um passo atrás no papo. Você sempre curtiu filmes de terror?

Eu amo terror desde criança. Eu não consigo saber exatamente em qual momento exato eu percebi que eu amava terror. Mas eu assisto filmes de terror desde criança e eu amo coisas de terror e coisas relacionadas a isso desde criança. Então a estética do terror sempre teve um apelo para mim, sempre foi interessante para mim. Eu sempre gostei e sempre me interessei por isso. Então eu assistia muitos filmes do gênero com a minha mãe e meus primos desde criança. É uma paixão que está comigo desde sempre.

Pensando no gênero “horror” e em todos os seus códigos, o que mais você percebe de diferente em filmes realizados por mulheres?

Durante a minha pesquisa de mestrado principalmente, eu me foquei apenas em filmes dirigidos por mulheres. A minha pesquisa de mestrado foi sobre monstruosidade feminina em filmes dirigidos por mulheres. Então, uma coisa que eu consegui perceber de diferente em filmes que tem essa autoria feminina, principalmente na questão da monstruosidade, é que em filmes de terror dirigidos por homens, a monstruosidade é vista como algo a ser temido, algo abjeto.

Enquanto que nos filmes realizados por mulheres a monstruosidade feminina é um tipo de poder, é algo que traz um poder para a mulher. Não é algo que diminui a mulher de nenhuma forma. Então, eu acho que essa é só uma das muitas coisas que eu percebo de diferente e de especial, assim, em filmes de terror, dirigidos por mulheres.

A Substância de Coralie Fargeat, se destacou em 2024 ao mesclar diferentes gêneros ao horror

Eu acho que além disso também tem muito uma questão do ponto de vista feminino, de se colocar muito no filme, no objeto audiovisual. E eu acho que uma das características mais interessantes também do cinema de horror feito por mulheres é o hibridismo de gêneros. É muito difícil a gente ver um filme de terror dirigido por uma mulher que seja um terror puro, digamos assim, sabe? A maioria dos filmes mistura comédia ou mistura musical, mistura drama, mistura vários outros gêneros, cria um hibridismo de gêneros que tornam uma obra muito mais interessante também.

Você pode me dar exemplos em que essa diferença da monstruosidade aparece de forma mais explicita?

Eu acho que um grande exemplo disso e um exemplo fácil de visualizar é a forma que a maternidade é retratada no cinema de horror feito por homens e no cinema de horror feito por mulheres. Então grandes filmes como O Exorcista e O Chamado trazem mães solos que têm os filhos atacados por alguma entidade maligna e é como se fosse responsabilidade delas, como se fosse culpa delas terem deixado os seus filhos à mercê desses espíritos malignos.

Acho que tanto no O Exorcista quanto no O Chamado, a gente vê muito isso, como se fosse culpabilizando mesmo, a mãe dentro desse contexto. Como se tivesse colocado o filho em risco simplesmente por ser uma mãe solo, uma mãe livre e independente. 

E aí, no cinema de horror feito por mulheres, a gente vê a maternidade retratada de uma forma muito diversa e muito complexa. Então filmes como Titane, por exemplo, que explora essa maternidade monstruosa, também o Prevenge e vários outros filmes feitos por mulheres, até o As Boas Maneiras, tratam a maternidade como algo complexo, que pode sim por vezes ser monstruoso, mas não de uma maneira superficial e de uma maneira punitiva para mulher.

Ellen Burstyn em O Exorcista (1973), de William Friedkin

Então, a mulher que é monstruosa ou a mulher que traz algum tipo de monstruosidade para si, para a sua família, ela tem que ser punida, ela tem que sofrer de alguma forma, ela tem que morrer no final. Ela precisa desse arco de punição. E muitos dos filmes feitos por homens trazem uma representação, não vou dizer todos, é claro, muito rasa e muito superficial do que é ser mulher e do que é, por exemplo, ser mãe.

Hoje, existe uma comunidade ao redor do projeto? Como é essa troca e quem é esse público?

Então, sim, hoje existe uma comunidade ao redor do Mulheres no Horror, porque depois de vários anos já que eu tinha o projeto, eu decidi criar o Clube Mulheres no Horror para ser realmente um espaço de encontros para debater sobre filmes e livros feitos por mulheres. A gente agora funciona com ciclos trimestrais, então, por exemplo, agora esse trimestre é sobre folk horror. E aí, dentro do ciclo, a gente fala sobre dois filmes dirigidos por mulheres e sobre um livro dirigido por uma mulher também, que seja dentro desse tema.

O clube hoje amplificou muito a potência do Mulheres no Horror, porque a gente realmente conseguiu construir uma comunidade de pessoas, não só mulheres, que têm interesse em entender mais sobre o gênero e debater o gênero. É uma coisa muito especial para mim, porque a gente faz esses encontros, a gente conversa muito pelo WhatsApp também, troca muita figurinha, muita indicação de filme, de livro, então é bem, bem especial.

Titane (2021), dir. Julia Ducournau

Localmente, como você enxerga a produção de filmes de horror, e até de gênero como um todo, aqui no Brasil?

Olha, aqui no Brasil eu acho que os gêneros de horror vêm ganhando cada vez mais espaço, principalmente por conta de mulheres que se inseriram como autoras dentro do gênero. Então, por exemplo, Gabriela Amaral Almeida, que é uma gênia, eu sou muito fã dela, Juliana Roras... São mulheres que se inseriram nesse meio e conseguiram fazer obras magníficas de terror no Brasil e dar um destaque mundial também para o gênero, né?

E eu acho que a partir do momento em que essas mulheres, principalmente se colocaram como diretoras, o gênero de horror como um todo se amplificou muito aqui no Brasil. Eu acho que a gente tem uma tradição do terror que vem desde o Mojica, por exemplo, e outros autores e autoras, mas eu acho que nos últimos dez, 15 anos pra cá, o gênero de horror tem ganhado cada vez mais espaço realmente, principalmente nessas obras dirigidas por mulheres.

Agora pra fechar, deixa uma lista de filmes de horror dirigido por mulheres brasileiras, por favor?

As Boas Maneiras (2017), dir. Juliana Rojas e Marco Dutra

O filme é uma fábula moderna e conta a história de Ana, uma mulher rica, que contrata Clara, uma enfermeira da periferia, para ser babá de seu filho ainda não nascido. À medida que a gravidez avança rola uma conexão intensa entre as duas mulheres. O filho, que está para nascer, carrega uma maldição que aprofunda a trama.

O Animal Cordial (2017), dir. Gabriela Amaral Almeida

É um filme que explora a natureza humana quando colocada sob condições extremas. Na história, um assalto se transforma em um jogo de sobrevivência quando os criminosos e as vítimas são trancados dentro de um restaurante. No decorrer da narrativa, a moralidade e a civilidade são testados.

Pedágio (2023), dir. Carolina Markowicz

Mais um filme que aborda a maternidade, aqui uma mãe também tem sua moralidade colocada em xeque. Suellen, uma cobradora de pedágio, encontra uma forma duvidosa de ganhar dinheiro extra com o argumento de que precisa custear a cura-gay do filho.

Sem Coração (2023), dir. Nara Normande e Tião 

Versão longa-metragem de um curta de mesmo nome, o filme se passa nos anos 90 pelo litoral de Alagoas. A protagonista que tá com os dias contados na cidade já que vai se mudar para Brasília se interessa por uma menina que tem o apelido de “Sem Coração” por conta de uma cicatriz no peito. 

Sinfonia da Necrópole (2014), dir. Juliana Rojas

Música, dança e mortos. É curioso pensar num filme musical e de horror, mas Juliana Rojas conseguiu. Aqui, um coveiro afim de largar o trabalho precisa recadastrar os túmulos abandonados de um cemitério da cidade de São Paulo. Acontece que mexer com mortos pode gerar situações estranhar.

Terra Estrangeira (1995), dir. Walter Salles e Daniela Thomas

Em tempos que imigração é crime, Terra Estrangeira segue bem atual. No filme, Paco, recém órfão, recebe a proposta de ir à Portugal entregar um pacote misterioso. Mas ao chegar lá perde o bendito pacote e precisa fugir de uma galera interessada no objeto.

A Hora da Estrela (1985), dir. Suzana Amaral

Adaptação do clássico de Clarice Lispector, tem elementos de vários gêneros cinematográficos, inclusive de horror. A história acompanha uma migrante nordestina no Rio de Janeiro, que se apaixona por um metalúrgico e passa a viver um romance bem disfuncional.


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