Melodia&Barulho: o manifesto cultural coletivo de Maui
O primeiro disco do artista caxiense procura equilibrar o lado bom e o ruim do seu cotidiano periférico
Maui, MC, cantor e compositor de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, lançou no mês passado Melodia&Barulho, seu álbum de estreia. O disco mistura, sem medo, gêneros como o R&B, drill, afrobeats, grime, drum’n’bass, pagode, funk e reggae.
Essa mistura pode surpreender quem ouve o artista pela primeira vez, mas aqueles que o acompanham há mais tempo, encontram em Melodia&Barulho uma espécie de reprodução da experiência de um set nas festas do seu coletivo, Leigo Records, e de outros projetos relacionados — Exportação, Melodyne, Wobble, Speedtest e Waves são alguns exemplos — onde as definições dos gêneros musicais não importam, e as misturas acontecem de maneira muito natural.
"Esse jeito de consumir é muito espontâneo, muito orgânico do gueto. Tu vai parar numa festa de família na favela e vai tocar forró, arrocha, charme — então quando eu falo que eu gosto de ir em festa que toca tudo, parece que eu sou o maluco, alternativo, mas acho que isso é o normal. A indústria tentou e tenta colocar a gente em caixas, porque fica mais fácil de vender, mas a gente não é algoritmo, a gente é vários bagulhos." — Maui
A versatilidade não chega como ferramenta estética: é resultado de um processo longo iniciado em Rubi, o primeiro EP do artista, que já continha os elementos apresentados em Melodia&Barulho: "Rubi retrata esse momento mais imaturo e feliz, de início das coisas, e Melodia&Barulho retrata essa maturidade, de entender que não é mil maravilhas, mas que o lado bom e o lado ruim se complementam", conta o artista.

"A decisão de fazer o disco tão versátil nem é pra mostrar versatilidade, mas é porque eu não queria mentir pra mim, me trair — e escolher uma abordagem só pra fazer o meu disco de estreia seria ser mentiroso com a minha realidade de jovem, das coisas que eu vivo hoje em dia. Então eu escolhi ser honesto, verdadeiro comigo." — Maui
Maui não se propõe a contar uma história individual, e faz do seu disco de estreia um processo coletivo, com uma longa lista de participações e uma grande equipe envolvida em todas as etapas. "Eu queria muito que o meu disco fosse um manifesto da minha contemporaneidade, da minha geração", ele explica, e acrescenta: "tinha vários caminhos que eu podia seguir em um 'disco de estreia', pensando em tudo que eu vim fazendo nos últimos anos, mas eu fui ouvir o primeiro disco da galera que eu gosto, desde Djavan a Lauryn Hill, BK, e o primeiro disco de todos eles é um raio-x da juventude deles, do que eles estavam vivendo naquele momento".



Fotos: @Is2a.costa
A construção da capa se deu pensando exatamente nisso. Se trata de uma releitura da obra HELL DE JANEIRO, de Hebert Amorim (@artedeft), também integrante da Leigo Records. Nesta versão, aparecem em destaque vários dos artistas e personagens que constroem o universo do disco.
Esse universo foi aos poucos sendo ampliado, e no decorrer dos visualizers de cada faixa, disponíveis no YouTube, vamos mergulhando e acompanhando as mudanças de tema, perspectiva e sentimentos ao longo do disco.
É central no projeto, e no movimento que vem se criando em volta dele, a discussão do lugar da música eletrônica. É feito um resgate das suas origens, fato que aparece, por exemplo, na identidade visual do projeto, construída em torno da bandeira da Jamaica, berço de tudo que entendemos hoje por música eletrônica.
"Eu sei que a vida é muito ampla, muito complexa, e eu conheço muito pouco do mundo para afirmar isso — mas em todos os lugares que eu vou, a juventude que produz cultura, que está ligada à arte e à urbanidade, está vivendo essa retomada da música eletrônica. A gente entendeu que funk é música eletrônica, que trap é música eletrônica, e que tem vários outros gêneros que conversam com isso.
O disco busca isso, lógico que não na sua totalidade — eu tô fazendo um recorte de um moleque de Duque de Caxias, homem, hétero, e é uma cena muito grande, protagonizada por muitas pessoas, muitos corpos, então eu fiz a minha contribuição, mas eu não sou o único fazendo isso.
Tem uma galera que está fomentando esse movimento e mostrando que música eletrônica, a partir de 2025, tem que significar outra coisa no imaginário das pessoas. Tem que significar música de festa de gueto, e não só EDM, house — é também — mas todas as musicalidades que um menorzinho consegue entrar num quarto e tirar num PC velho, é música eletrônica." — Maui
Faixas como "Seu Telefone", uma mistura de pagode e drum’n’bass em um feat com a Cristal; "Gastahondah", a responsável por mudar o clima do disco, um beat de drill mais tenso, que mostra o seu lado mais sério; e "Melodia&Barulho", que carrega o nome do projeto e conta com uma participação da Mali, sua filha, mostram as diversas faces dessa sonoridade que não se encaixa dentro de definições fechadas.
O disco vem com ideias, sugestões, e mostra fragmentos de uma cena, um movimento maior. Melodia&Barulho vem para mostrar o potencial do Maui, e dizer que ninguém constrói nada sozinho.
"Tô vivendo a dualidade que o disco propõe, de melodia e barulho, coisa boa e coisa ruim, cansaço e alegria, demanda de artista, demanda de pai e demanda de peão ao mesmo tempo. Mas eu acho que, artisticamente falando, o disco já tá ocupando o lugar que eu gostaria, de ser um marco na memória da galera da minha geração, que viveu essas loucuras aqui comigo.
Uma parte da missão foi cumprida, mas o projeto é muito extenso. Pra além de um disco, a gente é um manifesto cultural — falo “a gente” porque são muitas pessoas envolvidas nesse sonho — e ele se manifesta em todas as áreas. O disco é musical mas também é visual, também é uma experiência de comunicação, então a gente vai trabalhar ele ainda durante muito tempo e vai ver ele gerando ainda muitos frutos. Talvez por isso eu não esteja com tanta pressa, tanta euforia — legal que as coisas tão dando certo, mas eu sei que é só o começo." — Maui
Ouça Melodia&Barulho, disco de estreia de Maui, já disponível nas plataformas de streaming.