A arte mórbida e mística de Marcelo Vasco

De Soulfly a Slayer, o metal está recheado de capas do brasileiro guitarrista do Troops of Doom

A arte mórbida e mística de Marcelo Vasco

Outro dia estava ouvindo o single “Make the Demons Obey” dos norte-americanos do Hatebreed e a capa é uma arte brutal e sombria, com um capetão no espelho do protagonista. Depois fui ouvir o álbum “From Hell I Rise”, do Kerry King e estava lá o capeta de novo. Aí peguei o “Mortem Solis”, último trampo full lenght do Krisiun e, bom, dessa vez não tinha exatamente o capeta, mas tinha outra coisa que é comum em todas essas artes: uma arte do Marcelo Vasco. 

O carioca Marcelo é artista gráfico desde o fim dos anos 90 e sua ligação com o metal vai além das artes. Guitarrista, ele hoje toca na lendária Troops of Doom e é um dos caras que mais tem feito capas de álbuns para bandas grandes do metal extremo - sua arte digital pode ser vista com trampos do Dimmu Borgir, Soulfly, Dark Funeral, Slayer, Vader e muitas outros. 

Em mais uma conversa com capistas do metal, o que acho que já dá pra chamar de série na ISMO a essa altura, o Marcelo fala sobre suas influências, sua vida como músico e como artista, seus trabalhos preferidos e no que consiste sua arte. Entre uma tour do Troops of Doom e a volta à rotina de trabalhos, ele tirou um tempo pra responder essas perguntas. 


Fala, Marcelo! O que veio primeiro na sua vida, o metal ou o desenho/pintura?

O desenho veio primeiro. Desde moleque eu já vivia rabiscando, desenhando monstros da minha cabeça, cenas de filmes de terror que eu assistia… Então isso sempre fez parte da minha vida e do meu imaginário. Quando eu era novo eu adorava quadrinhos do Conan e aqueles de terror, Drácula, entre outros. Além disso eu vivia atrás de livros de ciência, biologia e medicina também. Minha avó tinha umas enciclopédias na casa dela e eu adorava folhear aquilo, eu era muito curioso com tudo, e aquilo me chamava muito a atenção, aquela estética meio mórbida, corpo humano, músculos, esqueletos etc.

Mas quando descobri o metal, aquilo explodiu a minha cabeça! Foi como se tudo se conectasse. A estética, as capas, o som, a atitude… Tudo fazia sentido com o tipo de arte que eu já gostava de fazer. Então o metal acabou sendo o combustível que deu direção pro meu trabalho. E o metal acabou entrando na minha vida exatamente por causa dos meus desenhos.

Eu estava na escola desenhando no recreio, quando veio um colega meu perguntando se eu poderia desenhar um monstro que ele tinha numa fita k7 do irmão mais velho dele, isso era nos anos 80 ainda, eu tava na quarta série (risos). Eu disse que sim, é claro, ele me trouxe a fita, era o Killers do Iron Maiden, e o monstro em questão era o Eddie. Eu resolvi colocar pra tocar e a partir dali não houve mais retorno, minha vida mudou.

O Derek Riggs foi um divisor de águas pra mim. Mas também as capas do Slayer, Morbid Angel, Celtic Frost, Bathory, todas aquelas artes sombrias, misteriosas e cheias de simbolismo me fascinaram. A capa do Reign in Blood, por exemplo, sempre teve um impacto visual enorme pra mim. Aquilo me fez pensar: “é isso que eu quero fazer”. Eu queria criar imagens que transmitissem a mesma sensação que eu sentia ouvindo o som dessas bandas.

Reign in Blood do Slayer levar uma arte de Larry Carroll

Qual foi seu primeiro trabalho de capa de álbum? O que você faria diferente hoje?

Eu não chamaria de trabalho, porque eu fiz muita coisa pra bandas de amigos e pra minhas próprias bandas, ali no começo dos anos 90, mas não é algo que eu considere muito, pra ser honesto. Eu ainda tava aprendendo a lidar com as ferramentas digitais e entendendo o processo de fechamento gráfico pra impressão, então claro que hoje eu faria muita coisa diferente. Uma das primeiras capas oficiais que eu fiz que tiveram alguma visibilidade foram para as bandas brasileiras Malefactor, Unearthly e pros suecos do Lord Belial, ai no caso já no final dos anos 90, mas o disco foi lançado somente em 2001 ou 2002, não me lembro bem. Era super simples e tosco, mas eu olho pra ela com muito carinho, porque foi o começo de tudo e minha primeira capa internacional né. Foi dali pra frente que mais bandas começaram a me procurar e a coisa foi andando mais rápido. Foi onde eu comecei a entender o que realmente queria seguir profissionalmente, mas ainda era um hobby.

A primeira capa de uma banda fora do Brasil

O que consta na sua arte? Quais elementos mais marcam seus trabalhos?

Meu trabalho é totalmente digital. No começo era tudo baseado em desenho, lápis, papel, aquele processo mais tradicional, mas isso foi quando ainda era um hobby e eu era bem novo. Com o tempo, ainda nos anos 90, fui migrando pro digital e acabei me adaptando completamente a esse formato. Admiro demais quem ainda faz pintura em tela ou desenho orgânico, mas infelizmente não é pra mim, eu sequer tenho prática nesse formato hoje em dia. É algo que demanda mais tempo e quem faz dessa forma hoje em dia ainda enfrenta alguns obstáculos, especialmente pensando em grandes formatos. Precisa de fotógrafo profissional ou scanners de alta tecnologia, enfim, é algo muito verdadeiro e animal, mas na correria do dia a dia o digital ainda é o processo mais prático e usual entre a maioria dos artistas desse nicho que atendem uma alta demanda. Inclusive eu não uso mesa digitalizadora, nem nada do gênero (risos), quando preciso usar desenho livre em cima das minhas artes eu faço tudo direto no computador, no mouse mesmo, bem oldschool. É o jeito que me acostumei ao longo dos anos, e pra mim funciona muito bem. De qualquer forma, mesmo eu usando desenho livre dentro desse processo digital, gosto dessa liberdade de misturar com manipulação fotográfica, que é o maior foco do meu trabalho, apesar de abusar de traços e texturas sobre o contexto final, pra chegar num visual mais orgânico, parecendo uma pintura a óleo real.

Acho que o que mais marca é esse clima mórbido, místico e dramático. Gosto muito de trabalhar com luz e sombra, com texturas envelhecidas, tons terrosos, e elementos simbólicos, abordando temas como religiões antigas, ocultismo, morte, mitologia... Mas tudo de um jeito que tenha uma estética própria e um bom equilíbrio visual. Sempre busquei ter a minha própria identidade e continuo buscando com o passar dos anos e dos trabalhos. Mesmo nas coisas mais caóticas, eu busco uma certa harmonia, sabe? Uma hierarquia e simetria de uma maneira geral. Acho que as pessoas já conseguem notar tudo isso facilmente. Inclusive hoje em dia muita gente chega em mim afirmando que tal capa é minha, só de ter batido o olho, e de fato na maioria das vezes realmente é. Eu fico feliz com isso, porque é um sinal bastante válido de que aos poucos eu estou conquistando minha própria estética e identidade, que foi algo pelo qual eu sempre prezei desde o começo.

Essa arte aqui não tem dono (ainda)

Você toca no The Troops of Doom. Como concilia isso com a carreira de artista visual?

É uma loucura, mas é natural pra mim, porque as duas coisas são extensões da mesma paixão. E eu já me acostumei com toda correria da minha vida, apesar de que algumas vezes é bastante estressante e eu só quero ficar longe de tudo (risos), dai eu normalmente viajo e ponho a cabeça no lugar. Mas eu vivo arte 24h por dia, seja no som ou no visual. Quando o Troops tá em turnê, eu me organizo antes pra deixar os trabalhos de arte adiantados. Já em períodos mais tranquilos com a banda, mergulho de cabeça nos projetos de design. Mas a arte ainda é meu trabalho principal, apesar de eu considerar a música mais essencial pra mim, se eu tivesse que escolher ou colocassem uma arma na minha cabeça. No final das contas é um ciclo criativo constante, ambas amplamente conectadas.

O último trampo do Troops of Doom é o álbum A Mass to the Grotesque (não, a capa não é dele)

Em casa, pintando pra você, seu trabalho vai pra outros lugares? Existe uma versão “mais light” do Marcelo? (risos)

Olha, até existe, mas é raro! Muitas vezes eu gosto de fazer algo mais minimalista, mais gráfico, ou até com uma pegada mais conceitual, menos agressiva. Mas mesmo assim, sempre tem um toque sombrio, um traço mais denso. Eu costumo dizer que mesmo quando tento fazer algo leve, sai com um certo peso e morbidez sem querer. É parte do meu DNA já. E de certa forma eu infelizmente quase não tenho espaço para isso, já que muitas bandas me procuram exatamente pelo estilo da minha arte mais popular, que é maligna, cheio de caveiras, ossos, demônios, satanismo, sangue e fogo (risos). Isso é ótimo pro negócio, é claro, mas confesso que enche um pouco o saco. O Metal é meio xiita e cíclico nessa questão conceitual e abordagem de temas, tudo sempre acaba no mesmo lugar, e isso me deixa um pouco triste as vezes. Fico até frustrado e é um enorme desafio eu continuar fazendo o que faço por mais de 20 anos, tentando ser criativo, mesmo dentro do nicho, sem parecer repetitivo e vago. Então eu adoro quando surgem projetos onde eu posso ousar um pouco mais e sair da caixa, mas como eu disse, é muito difícil de acontecer.

Sei que você tem um relacionamento legal com o Slayer, já fez capas e outras artes. Como se deu esse relacionamento? E qual sua capa favorita que fez pra banda?

Foi um sonho realizado! Trabalho da minha vida! Eu cresci ouvindo Slayer, eles são a minha banda favorita desde que eu era moleque, então quando a oportunidade apareceu foi surreal, as vezes a ficha parece que não caiu e não vai cair nunca (risos). Tive uma sorte absurda! Bom, o contato começou por meio da gravadora, e depois acabou virando um relacionamento direto com o Tom Araya, Kerry King e o pessoal da equipe. Nos últimos anos mais com o Kerry e com o Paul Bostaph, por causa da nova banda do Kerry, onde também colaborei com minha arte. Mas a primeira grande colaboração de todas foi com a capa do Repentless, em 2015, que abriu muitas portas. Essa é, sem dúvida, a minha favorita, não só pelo resultado, mas pelo que ela representa na minha carreira. Trabalhar com uma das bandas que moldaram meu gosto musical foi algo que mudou minha vida.

A capa de From Hell I Rise é dele

Qual capa de disco favorita que você não fez?

Difícil escolher uma só, mas acho que To Mega Therion, do Celtic Frost, é uma das mais maravilhosas e macabras já feitas, aquele trabalho do H.R. Giger é simplesmente absurdo. Também adoro a capa do South of Heaven e Reign In Blood, do Slayer, as primeiras do Iron Maiden, Coma of Souls do Kreator, As capas do Sepultura até o Chaos Ad são lindas, Creatures Of The Night e Destroyer do Kiss, primeirona do Black Sabbath. São artes que transcendem o disco, viram ícones visuais. Inclusive estive no Reino Unido nessas últimas semanas em Tour com o The Troops e tivemos a oportunidade de ir até a velha casa com o moinho, onde foi feita a lendária foto da capa do primeiro Sabbath. Foi emocionante! Aquilo é praticamente o marco zero do Heavy Metal, a estética do Metal surgiu ali e eu como capista do estilo, ter pisado naquele solo sagrado foi inacreditável. De chorar!

 H.R. Giger é o responsável por essa capa lendária do Celtic Frost

Qual sua capa de disco favorita que você fez?

Com certeza foi a do Repentless do Slayer. Ela tem um valor emocional gigante pra mim. Outra que eu adoro é a do Winter Thrice do Borknagar e a do Enslaved do Soulfly. Cada uma tem sua história, mas essas três são as mais especiais pra mim, eu diria.

O que te inspira na hora de criar?

Tudo que me cerca. Desde filmes de terror antigos, sci-fi, pintura clássica, arquitetura gótica, livros sobre mitologia, até conversas e viagens. Às vezes uma textura numa parede velha ou uma paisagem bucólica aleatória já me acende uma ideia, mas acima de tudo, o que mais me inspira é a música. É isso que mais me move.

Acompanhe o trabalho do Marcelo aqui.


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