Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem
Mateus faz muito mais do que só Rock em novo disco que sonha com uma realidade de prosperidade coletiva

Um termo que está presente no vocabulário de boa parte das periferias brasileiras é “as áreas”, que significa seu local, espaço, sua quebrada. Para Mateus Henrique Ferreira do Nascimento, ou Mateus Fazeno Rock, zárea é Sapiranga, bairro de Fortaleza, conhecido pela por ser um dos mais violentos da capital cearense, principalmente se você for um jovem negro. Mas essa imagem é ressignificada em Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem, disco mais recente do artista.
O álbum chega nas plataformas 2 anos depois de Jesus Ñ Voltará, e pode ser considerado uma continuidade do trabalho que colocou o nome de Mateus de forma mais consistente na cena, sendo reconhecido como um dos melhores de 2023 e o levando a viajar o país. Aqui, segundo palavras ditas em entrevistas, o álbum “é um chamado para perceberem nós, pessoas faveladas, longe do estigma da dor, do sofrimento e da violência”.
Apesar do título parecer auto-explicativo, assim como o próprio vulgo Mateus Fazeno Rock, o trabalho vai além da discussão simplista sobre o desejo de viver bem em um ambiente de escassez, e mostra a força do coletivo na construção de uma realidade próspera. No som, ele também se afasta do que o rock tem apresentado, principalmente no Brasil. O instrumento definidor, a guitarra, segue muito presente, mas as linhas do gênero são borradas por elementos de soul, funk, reggae, drum and bass e rap.

A faixa título, que abre o disco, começa com o verso “Quando escutar essa canção / Escute como fosse uma oração”, e para mim isso sintetiza muito do que ouvimos nos 40 minutos divididos em 10 faixas do disco. Não falo isso só pensando no conceito de prece, de pedido, mas na forma como as faixas se constroem. A repetição de palavras e frases é muito presente em todo o álbum. Na tradição católica, a reza tem a repetição como base, com as contas do terço determinando quantas vezes a mesma sentença será entoada, e Mateus coloca essa mesma premissa aqui.
Em “Melô do Sossego”, um soul à lá Tim Maia, a frase “Não ter esperanças / Cansa” é seguida por “Que vontade de lhe dar sossego” até o final da faixa. Já em “ARTE MATA”, single que abriu o ciclo de lançamentos, o artista declama uma espécie de manifesto, ao sons de sirenes, tiros e afirma que “Ou morre o sonho, ou morre o sonhadouro”. Isso me lembrou muito a frase lema da editora sobinfluencia, que afirma que “ler e caminhar podem salvar a sua vida ou te levar para a cadeia”, afinal, em uma sociedade cada vez mais conservadora e, vamos admitir, facista, ser artista, ou no caso de Mateus, nascer artista é crescer com uma sentença de morte na cabeça. Ao final da faixa, os sons de fundo se cessam para entrar a guitarra de Mateus, como quem busca subverter a regra e as estatísticas.

Nesse sentido só se reforça a ideia de oração, já que repetir também é uma forma de afirmar, de se impor, de reforçar um ponto, como se só através desse movimento fosse possível alcançar o objetivo tão esperado. Mateus Fazeno Rock já disse que artistas negros dos anos 70 e 80 estão entre suas maiores referências e o vanguardista Itamar Assumpção, que muito provavelmente está na lista, já disse: A cada mil lágrimas sai um milagre. O milagre que Mateus busca, de certa forma vem pela construção coletiva, e não da espera pelo divino, como já bem dito no álbum anterior.
O coletivo, aliás, definitivamente é central aqui, e aparece desde a capa, assinada por Suellem Cosme, nas comunicações em redes sociais nas quais Mateus convidou seus amigos para fazerem parte, até à última faixa. Ao ouvir “Mercado das Miudezas” a estrofe: “Na melhor nois divide o que tem / na pior nois divide também”, lembra muito a barra que escreveu o conterrâneo Don L em “favela venceu/cit: rap das armas”: “A gente é comunidade junta / A gente é mutirão em dias ruins / Bailão em dias bons”. Ou seja, se o que é dado não permite que se viva a abundância, ela é sonhada e construída no coletivo.






Fotos: Jorge Silvestre | Montagem: Liamê Alves
E já que o paralelo entre Lá Na Zárea Todos Querem Viver Bem e Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2 é possível de ser feito, um tema fundamental nas duas obras é o amor. Necessidade humana, como o alimento, o teto, o sol e o lazer, o amor e o sexo norteiam boa parte das faixas escritas por Mateus Fazeno Rock. Se é para falar sobre sonhos, sobre uma vida plena, sobre conquista, nada mais justo que partilhar tudo isso: “Eu fiz planos contando com o dinheiro que nois merece / O ano inteiro trabalhando tanto / Tesão e descanso”.
Como já dito, Mateus realmente faz rock, mas também faz funk, soul, e vários outros sons em faixas produzidas por ele mesmo e pela dupla de alto nível Fernando Catatau, também cearense e que já assinou trabalho de Otto e Arnaldo Antunes, e Rafael Ramos, figura que se fosse citar só os artistas de rock que já produziu, a lista seria imensa. Nego Célio também chega junto com beats em um trabalho que as participações não estão em feats, mas são muito perceptíveis, afinal, fazer sozinho não teria sentido.