Killa Bi: é nosso tudo o que eu olho
O primeiro disco da rapper dá continuidade ao EP lançado no ano passado e permite um mergulho na sua intimidade
é nosso tudo o que eu olho é o álbum de estreia de Killa Bi, lançado na última sexta-feira, 07/11. O disco expande o universo sonoro da artista, abordando temas como ancestralidade, território e coletividade de maneira íntima e sensível.
Esse trabalho chega pouco mais de um ano depois de Assassina ou Poeta, EP lançado no ano passado pela Sujoground que conta com 5 faixas de drumless, permitindo maior destaque na voz e no discurso.
Funcionando como uma extensão do universo do EP, o disco foi produzido juntamente com Cravinhos e lançado pelo selo SOMOS. Troquei uma ideia com a Killa sobre os processos por trás do disco no papo que está disponível aqui embaixo.
O disco chega na sequência de Assassina ou Poeta, lançado no ano passado. Quando ele começou a ser pensado e como se deu a sua construção?
O álbum começou a ser escrito, a ser elaborado, logo depois de Assassina ou Poeta. O EP foi lançado em maio do ano passado e foi um processo muito rápido de escrever, eu mesma me gravei em casa e já lancei — eu queria que o momento da escrita fosse próximo com o momento do lançamento, sabe? Pra ficar quente.
Eu comecei a entender o Assassina ou Poeta cantando ele ao vivo. Comecei a perceber coisas que poderiam engrandecer o meu show. Eu não queria ficar num lugar só “boombap”, na questão estética — e não sentia falta só da bateria, eu sentia falta de coisas mais orgânicas, mais instrumentos, mais músicas com refrão, coisas com mais melodia.
E daí eu comecei a escrever algumas coisas, a escolher algumas batidas — alguns drumless, outras coisas já tinham bateria — mas comecei a escolher e escrever no final do ano passado.
Assassina ou Poeta, disponível no YouTube
Quando eu apresentei o projeto pro Cravinhos — para gravar com ele, e queria que ele viesse nessa coprodução junto comigo também, com essa liberdade de poder produzir em cima dos beats que eu já tinha escolhido — foi para um projeto de EP, eu não sabia que era um álbum ainda. Aconteceu de eu apresentar o mesmo projeto para a Somos, que fechou e a gente foi criar isso daí.
E como quase tudo que eu faço, ele vai criando uma estrutura, uma estética, uma atmosfera ao longo do processo. Eu nunca fiz um projeto onde eu tinha tudo formado na minha cabeça antes e só executei, tá ligado? Normalmente a obra vai criando o caminho dela. O que eu já tinha de base é que eu queria usar mais instrumentos, mais melodias, poder utilizar mais a minha voz e cantar de outra forma — eu queria trabalhar nesse lugar da sensibilidade.
Eu entendi com Assassina ou Poeta que o meu texto é muito rico, porque eu fazia show sem bateria e as pessoas realmente ficavam realmente vidradas ouvindo, então eu queria unir isso com a musicalidade — não que o drumless não tenha musicalidade, mas querendo ou não, tem menos elementos — eu queria trazer mais elementos, pra deixar corpudo, forte, maior, e junto com isso, colocar o meu texto.
Foi o processo de criação de álbum mais gostoso que aconteceu até agora, muito por conta dessa facilidade de troca com quem tava produzindo comigo, que no caso é o Cravinhos. Muita liberdade para poder criar junto, para poder falar, uma conexão do que eu estou pensando e ele conseguir traduzir isso em áudio, tá sendo uma junção muito foda. Isso foi muito importante pra minha autoestima enquanto artista, pra poder criar, poder gostar das coisas que eu tava criando, acreditar, tendo alguém que tava ali comigo tão afim de entregar o melhor quanto eu.
O que você trouxe de novo nesse projeto, que não apareceu em Assassina ou Poeta? O que chega junto dessa passagem de tempo?
Exato, o que mostrar de novidade num disco, né? Querendo às vezes falar de assuntos parecidos — como a gente tá com um tempo que é próximo, um EP e depois já vem um álbum, não aconteceu grandes coisas na minha vida que vão impactar em questão de texto —, só que são coisas que a gente sempre acaba falando de outras formas, né? Os temas às vezes são os mesmos, mas são vistos de pontos diferentes, falados de outra forma.
E teve essa maturidade de como falar, esse é o ponto mesmo — de trazer coisas novas que não tinha no EP, tanto em questão de instrumental, quanto em questão de melodia, de imposição de voz e interpretação do que tava sendo cantado.
Eu sinto muito isso de Assassina ou Poeta, como se fosse uma música trocando de beat cinco vezes, né? E depois que esse disco ficou pronto, de forma inconsciente eu entendi que era como se fosse uma intro do disco.
É como se o disco fosse uma continuação de Assassina ou Poeta. É nosso tudo que eu olho, até o nome e as formas que eu narro as coisas — porque eu sinto que veio um momento novo ali no EP, e eu estou nesse momento ainda. Por mais que venha mudando algumas coisas no caminho, acho que eu tô nesse mesmo momento ainda, nessa mesma direção, nesse lugar de um show um pouco mais introspectivo, onde a pessoa precisa prestar atenção no espetáculo, trabalhar com iluminação, com banda, com instrumento.

No Assassina ou Poeta não foi possível fazer, mas agora o que a gente mais quer — conseguir fechar shows em lugares como Sesc, Casa Rockambole, trazer um potencial para as apresentações, porque eu acho que tem muito a entregar no ao vivo, tem muitas coisas impactantes — e eu, como artista, já tô maquinando isso também, pensando muito nessa nova fase de shows.
Conta um pouco sobre o nome do disco. O que ele significa e da onde veio essa ideia?
O nome do disco partiu da última faixa que foi feita, a “é nosso tudo que eu olho”, com produção do Paulo DK, Cravinhos e Gui Cunha. Esse beat chegou por último, a gente já tava com as coisas até meio fechadas, mas ele chegou e a gente gostou muito.
Eu fiquei escrevendo em casa, pensando no que eu ia falar sobre isso, e daí eu já imaginei o local que essa faixa tinha que estar, antes de “utópico” e depois “de não se desespere”. Se fosse para colocar uma faixa a mais, teria que ser ali. Eu entendi que, naquele espaço do disco, eu precisava falar sobre alguma coisa muito nossa — no sentido de que todo mundo pudesse se identificar. Porque eu venho falando sobre ancestralidade, sobre coisas que são mais pessoais, que mesmo tendo muitas pessoas que se identificam, é muita coisa dentro da minha cabeça, muito introspectivo, muito Killa Bi.
Em “é nosso tudo que eu olho” tem também muito disso, mas eu já trago esse lugar de falar um pouco sobre vivências com a minha avó e coisas que ela me ensinou — isso é uma coisa universal, todo mundo teve em algum momento uma avó, mesmo que não tenha mais. No meio dessa faixa veio o nome, é nosso tudo que eu olho, e eu quero dizer isso, exatamente o que foi dito — tudo que eu enxergo é nosso.
Até as coisas que não são boas, que podem em algum momento ter sido trazidas até nós, no caso de colonização, por exemplo. O que fez com o nosso território, o que faz até hoje — porque é um processo, um projeto muito bem executado e a gente sofre muito com isso até agora.
Quando eu falo da colonização, é bem citando a minha ancestralidade indígena, o quanto isso foi apagado e tido como extinto, durante muito tempo, por causa da colonização. A gente sofre com ela no futuro, nesse lugar de coisas que não são nossas, mas que agora são, que trouxeram, que já tão aqui tão enraizadas, que é nosso, então a gente precisa fazer alguma coisa referente a isso agora.
E daí a parte boa também, porque tem muitas coisas maravilhosas, incríveis — tanto referente ao território, mas coisas que a gente consegue enxergar nas outras pessoas que a gente convive. Poder se apropriar do que é nosso, não ter vergonha de ser quem você é, de ocupar certos espaços. Não ter medo de estar ali, não ter medo de ser você, não ter medo de receber pelo seu trabalho — e ainda assim os meus olhos conseguem ver pouco, então, para além do que eu enxergo, é nosso também.
O nome do disco vem muito desse lugar, e eu acho que isso conversa com todas as faixas, de alguma maneira. Mesmo com muita raiva, eu trago muito amor nas coisas que eu canto, amor pelas pessoas que estão me ouvindo. Eu respeito muito todo mundo que divide o tempo comigo, que para pra me escutar, que leva a sério as coisas que eu digo, que tenta interpretar, que escuta mais de uma vez, que vem me perguntar depois sobre algumas coisas que eu tô dizendo.
É pra isso que eu faço rap, pra trazer uma palavra que é minha, que é só minha, que não vai ter igual em nenhum lugar e eu precisava muito falar. E ter alguém que escute é muito importante, então eu queria afirmar isso e colocar no plural.
A gente precisa criar essa consciência coletiva, de que é nosso tudo que eu olho, e entender um pouco mais o território que a gente vive. Se fala muito sobre coisas que não estão aqui — coisas que não são daqui, que vieram, que levaram — mas não o que está aqui, o que esteve aqui, desde sempre.
Acho que a gente já tá melhorando muito nesse aspecto, com pessoas ocupando vários lugares na arte, na educação, que são indígenas, que estão em retomada indígena, que se autodeclaram indígenas. Mas isso tem que aumentar, até porque a quantidade de pessoas que não se autodeclaram porque acham que precisam estar na aldeia, que precisam saber o povo, não entendem ainda que na verdade isso é um processo da colonização, um projeto, e é exatamente por isso que a gente não sabe.
Então, da minha forma, do meu jeito de ser, de abordar esse tema, eu venho trazendo isso. E o nome do disco é muito sobre isso — ancestralidade, retomada, autodeclaração. É muito sobre o etnocídio que aconteceu nesse território, sabe? E como também é incrível ser nós.
A visão embranquecida de tudo isso faz com que as pessoas tenham no imaginário delas pessoas indígenas que não são parecidas comigo, e isso é muito racista, é ligado a estereótipo. A gente precisa conseguir desmistificar o indígena no território Brasil. Porque ele não está mais só na aldeia, ele está em todos os lugares, principalmente nas periferias do Brasil todo — e ele não está de cocar na cabeça, não está sem roupa, não está pintado. Ele pode também estar, mas ele não deixa de ser menos indígena se ele não tem essas características naquele momento.
Só que as pessoas ainda têm essa visão. Então eu eu luto muito por isso também, para desmistificar esse lugar do indígena em 2025 no nosso Brasil, tá ligado? A gente tá em todo lugar, a gente faz música e a gente não necessariamente precisa falar sobre isso nas músicas porque já é muito maçante ser nós, eu posso falar do que eu quiser. E falo sobre isso da maneira que eu sinto, sem precisar grandes coisas, eu acho que meu lugar é esse.
Como tá sendo lidar com o disco — que é tão íntimo, tão pessoal — disponível no mundo, para todo mundo ouvir? Como você equilibra essa entrega com o interior?
Eu tô sentindo agora, que foi lançado. Até então era uma grande exposição que as pessoas não tinham acesso ainda, mas depois que você lança, já não é mais seu, já tá ali. As pessoas têm acesso à aquilo e eu me sinto um pouco exposta mesmo, essa é a palavra.
Eu não penso muito nas consequências de me entregar pra composição. Eu acho que é isso que faz a música ser eterna, que faz a música emocionar as pessoas, então eu não me não costumo me podar, eu entrego mesmo. Acho que é uma característica minha, e acho que é assim que tem que ser, pelo menos nesse momento. Pode ser que venha a mudar algum dia, mas neste momento é o que eu sinto. E dentro, fica esse lugar de uma leve insegurança com a vulnerabilidade, porque eu acho que a exposição traz um pouco disso — é como se alguém que nem me conhecesse soubesse meus pontos fracos, dos meus problemas.
Então, eu me sinto vulnerável, mas eu acho que eu pego essa vulnerabilidade e transformo ela em força, em tesão. Sinto muito isso quando eu faço show, porque é toda a vulnerabilidade que eu escrevi e botei no disco, e eu cantando, olhando pras pessoas. Eu me sinto com muita vontade de ficar quietinha, ir para casa, depois de show, porque eu me abri demais, eu me expus demais. Mas é muito viciante, e é um tesão muito grande.
A única faixa que ganhou videoclipe foi "por um fio", que também é o único feat do disco, com a Lis e a nabru. Qual é a importância dessa faixa?
Eu vejo como um marco no tempo do rap underground. Dessas mulheres, que fazem esse tipo de música, que gostam de estar nesse lugar, que absorvem as coisas dessa maneira e usam esses tipos de métrica, e que não tem a mesma performance que a maioria das outras mulheres.
Esse é o ponto. No momento eu observo o rap nacional como uma pizza com oito pedaços e tem um só pedaço para as mulheres. Dentro desse pedaço, eles dão uma visibilidade para as mulheres que eles escolheram estar nesse momento. E elas têm as suas diferenças, obviamente, mas ainda assim é muito parecido — sempre mulheres que performam feminilidade, uns tipos de beat parecidos, os temas parecidos. Eu sinto que rola essa profundidade do sentimento, mas é sempre num lugar de uma decepção amorosa, uma bad com algum cara, pá.
Eu queria que a gente pudesse ter mais fatias, tá ligado? Para que a gente pudesse falar de outras coisas, que a gente usasse outras batidas, outras roupas, outras performances em show, outras caras — eu acho muito bom que a gente tenha uma fatia hoje, porque a gente não tinha, mas a luta é para que a gente tenha mais. Colocar nabru e Lis numa track é provar e documentar o que tá acontecendo no rap nesse momento.
Fazer o videoclipe com essa track foi exatamente por isso — eu queria que isso fosse visível, eu queria que isso marcasse o nosso rosto naquele momento. E foi coincidentemente, mas depois eu vi a importância e o peso de também serem três estados diferentes, tá ligado? São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Então eu acho que são várias coisas importantes numa faixa só.
Você fala sobre ser um disco bonito, como você diria que essa beleza aparece no projeto?
A gente percebeu isso no meio do caminho, eu e o Cravinhos, que todo o timbre que a gente colocava, tudo que a gente acabava escolhendo, eram sempre coisas que soavam muito bonitas.
Tem produtor que você faz coisa estranha, tem produtor que você faz coisa inovadora, e tem produtor que você faz coisas bonitas, tá ligado? As escolhas são bonitas num lugar confortável, de trazer uma imagem bonita, uma sensação boa. As nossas escolhas levam para esse caminho da beleza. Que tira um pouco o peso das rimas, tira aquele lugar cru.
É uma intenção também que as pessoas me escutem curtindo um pouco mais a música, saboreando outros elementos além do meu texto, sentindo outros sabores. Eu acho que nisso vem a produção, que tá impecável, tá bonita.
Para finalizar, queria saber um pouco sobre como você enxerga a indústria e qual é a importância desse disco na sua trajetória?
Eu tô num momento que eu quero jogar um pouco mais alto, eu quero fazer coisas maiores, eu quero conseguir viver disso, sem tanto sufoco como é agora. É aí também onde entra essa iniciativa, essa estratégia, essa possibilidade de estar junto com a Somos, pra conseguir fazer um álbum com algum incentivo, com algum financiamento. E eu acho que foi o primeiro passo para entrar um pouco mais dentro dessa indústria musical mesmo, porque até então era tudo muito sem estratégia.
Eu me virava, eu me viro. Fazia projeto, lançava projeto, fazia show, sempre teve merch, sempre teve audição, nunca deixou de ser profissional — há muito tempo é profissional. Mas é isso, a gente precisa melhorar as coisas para nós, e foi a alternativa que eu tive no momento. Tá sendo ótimo, tá dando tudo certo. E em lugar de indústria, assim, eu acho que o primeiro ponto que eu tô vendo a grande diferença é ter uma equipe.
Esse é o grande ponto — eu nunca tive uma equipe, então eu era muito sobrecarregada, é muito difícil de abraçar todas as funções. E hoje eu tenho a clareza, a nitidez de que precisa ter todas as frentes organizadas para que a Killa Bi consiga chegar nos lugares onde ela quer chegar, que hoje em dia são lugares grandes.
Eu entendi que eu tenho potencial para isso, que é possível e que eu vou fazer — que eu tô no meu melhor momento. Então, preciso de uma equipe, que é a possibilidade que a Somos tá trazendo, para além do financeiro — tem alguém que faz as distribuições, tem alguém que tá empresariando. Agora a gente tá fechando o booking, tem a Carol com assessoria de imprensa, o Gabi também, que faz o social mídia pra mim. Pessoas que estão no backstage fazendo tudo para que as coisas ocorram da melhor maneira — às vezes não são citadas, mas é muito importante.
Eu quero acrescentar também a importância do Cravinhos, que é muito responsável por esse disco. Como eu disse, para além do lugar profissional e da qualidade que ele tem como artista, como músico, é um ouvinte muito bom, um cara muito sensível.
E eu acho que são músicas com potencial de serem um grande lugar de se conectar com as pessoas, mesmo. Acredito muito nesse projeto, nos shows desse projeto, nos outros que estão por vir, em ideias que eu já tenho rascunhadas. O processo com a Somos é de criar esse planejamento, tanto para esse ano agora que tá acabando, pro ano que vem a seguir, sabe? É só o primeiro projeto de um grande projeto, na verdade.
Eu sinto que esse disco é um marco — acho que na verdade de Assassina ou Poeta para cá é isso —, eu sei quem sou, sei o que faço, sei como fazer, sei o que vou fazer e esse lugar de estar à vontade na criação, eu acho que ele vai crescendo conforme eu for fazendo, então, acredito que o melhor projeto sempre é o próximo.
Eu acho que é todo um combo. Hoje mesmo me mandaram uma uma mensagem falando: "o melhor desse álbum é que ele tá a sua cara". E é isso, fazer um álbum que as pessoas escutem e consigam me imaginar. Ele tem a minha cara, é o meu jeito.
Por isso, inclusive, ele é tão importante e eu acho que vai me abrir portas para a questão de musicalidade, de me conectar com mais artistas, mais músicos. Pessoas que tocam coisas, que gostam de música. Para além das pessoas que já me acompanham, vou chegar em mais pessoas, vou conseguir aumentar essa rede, fazer shows do jeito que eu quero. Eu tô muito positiva quanto a isso, confiante mesmo.
Ouça é nosso tudo o que eu olho, primeiro disco da Killa Bi, já disponível nas plataformas digitais.