Jards Macalé: o maestro da vanguarda

Caminhando entre gigantes, Macalé escolheu a contra-mão

Jards Macalé: o maestro da vanguarda

Na vastidão da Música Popular Brasileira, onde brilham estrelas de melodia imediata e apelo popular, existe uma constelação particular reservada para aqueles que ousaram perturbar o conforto, que fizeram da música um campo minado de possibilidades sonoras e narrativas. Nesse panteão dos inquietos, Jards Macalé é verbo, uma força desestabilizadora que, desde os anos 60, redefiniu as fronteiras da arte musical, ou melhor, sonora, no país. Seu legado não reside em hits radiofônicos, apesar destes também existirem, mas na profundidade de sua vanguarda, na coragem de sua poética áspera e na fundação de um som que se manteve irredutível a qualquer fórmula mercadológica.

Carioca da gema, cria da Tijuca, Jards é uma figura seminal cujo trabalho é difícil de definir por transitar muito bem entre o erudito e o popular, o sublime e o marginal. Sua carreira foi um manifesto estético que se inicia na efervescência do pós Bossa Nova, atravessa o Tropicalismo, período de talvez maior alcance comercial de seu trabalho, e se consolida na contracultura dos anos 70.

Jards e Vinicius de Moraes

De nome oriundo do talento que lhe faltava com a bola, recebeu sufixo e virou conceito, afinal, a abordagem sinestésica é uma vanguarda macaleana. Macalé não apenas cantava, ele dissolvia a forma. Já no álbum de estreia, homônimo e lançado em 1972, marco absoluto na música brasileira de todos os tempos, o ouvinte é confrontado com uma proposta que subverte a lógica linear da MPB até então. A música de Macalé desvia das expectativas melódicas e harmônicas. Pensar que no mesmo ano os Novos Baianos lançavam o festivo "Acabou Chorare", considerado até hoje um dos melhores álbuns brasileiros da história, Jards cantava a melancolia em um disco antagônico e ao mesmo tempo tão bom quanto o dos amigos Moraes, Pepeu, Baby, Paulinho e companhia.

Sua formação musical é fundamental para entender esse rigor técnico por trás do caos aparente. Primeiro que nasceu em casa de músicos, em bairro de sambistas e tinha como vizinhos Vicente Celestino e Gilda de Abreu, grandes nomes da rádio da primeira metade do século XX. Parecia que a música o tinha escolhido primeiro. Ainda desconhecido, transitava entre grandes antes dele mesmo se tornar referência. Em 1970, por exemplo, foi diretor artístico e arranjador para o disco Legal, importantíssimo para Gal Costa, e em 1971 foi visitar um Caetano Veloso exilado para dirigir o disco Transa (1972). Tudo isso antes de seu primeiro trabalho solo.

Apesar de caminhar entre grandes, Macalé escolheu o próprio caminho e o construiu de forma sonora. Isso é evidente em faixas como “Mal Secreto”, música que não se desenvolve de forma previsível. Ela se encerrae e retoma com texturas instrumentais inesperadas e utiliza a dissonância como ferramenta expressiva. A agressividade da guitarra, o groove do baixo e o arranjo orquestral, também distorcido, criam um clima de tensão e urgência que reflete o ambiente político e social do Brasil sob a ditadura. É música para despertar, ação que ele levou até o fim.

Embora Jards Macalé não seja classificado estritamente como um artista tropicalista, sua participação e influência no movimento foram cruciais para radicalizar a proposta estética de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Seus trabalhos são documentos da contracultura brasileira, mesmo dentro do próprio movimento, como um “punk-tropicalista” que se utilizava de arranjos e direções artísticas 

Virtuoso e genial, o papel de Macalé na Tropicália não foi apenas de arranjador, mas de curador do caos. Ele ajudou a forjar as persona selvagem e subversiva de Gal Costa, por exemplo, injetando doses cavalares de blues, rock psicodélico e atonalidade na matriz do movimento. As performances visceralmente cruas, filtradas por uma lente experimental, devem muito à visão vanguardista de Macalé.

O espírito de Macalé reverbera a mesma postura iconoclasta que se via na arte moderna brasileira iniciada duas décadas antes de seu nascimento. Sua música tem o corte seco e a ironia devastadora de modernistas como Oswald de Andrade, a erudição de Mário de Andrade e a preocupação estética de Milliet. No entanto, é na arte contemporânea dos anos 60 e 70 que encontramos paralelos mais diretos.

Assim como Lygia Clark e Oiticica, por exemplo, buscavam a participação ativa do espectador, quebrando a passividade da obra de arte, Macalé exige um ouvinte ativo, que preencha os silêncios, decifre as dissonâncias e aceite a ruptura com o conforto melódico. A sua arte é relacional no sentido de que ela só se completa na tensão criada com o ouvinte. Sabe a ideia de que arte não é pra gerar conforto sempre? Jards gostava da estranheza.

No cinema, Macalé se aproximou de Nelson Pereira dos Santos, Júlio Bressane, Eduardo Escorel e Glauber Rocha. Composições de trilhas-sonoras, como a de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), ou atuações como em “O amuleto de Ogum” (1974), só mostram como o mestre nunca precisou de câmera pra fazer cinema, já que sua obra era também, em essência, visual e cênica.

O amuleto de Ogum (1974)

A influência de Macalé é notável em artistas de gerações posteriores que buscam a transgressão estética e a densidade lírica. Do rock ao rap, mesmo sem saber, bebem da fonte da liberdade que ele ajudou a consolidar. Ele pavimentou a estrada para que artistas pudessem ser difíceis, complexos e, ainda assim, profundamente brasileiros. A ideia de que a música popular pode ser arte de primeira grandeza, exigente e não-conciliatória, deve muito à sua teimosia artística.

O legado de Jards Macalé, mais do que uma série de discos ou canções, é uma ética da insubmissão. Seus discos são documentos de um tempo, de uma estética e de uma escolha, não produtos formatados. Em meio à pasteurização, Macalé era o lembrete de que a arte exige tempo, reflexão e, sobretudo, coragem para ir contra a corrente.

O cantor, compositor e gênio é um arqueólogo do som que desenterra as possibilidades mais radicais da canção popular, utilizando sua voz, as vezes por meio de sussurro rouco ou um grito existencial, como a última ponta de contato humano em meio à experimentação.

Macalé foi o verdadeiro mestre da  invenção dentro do mainstream da MPB. Sua obra é a prova de que a vanguarda não precisa ser inacessível; ela pode ser visceral, política e, no fim das contas, a mais sincera expressão de um artista que carrega a navalha no bolso, pronto para cortar as amarras do que é esperado.

Ele regeu a banda da anarquia estética, garantindo que as notas fossem tocadas tortas, que a batida fosse quebrada e que o silêncio ecoasse mais alto que qualquer refrão. E por essa teimosia genial que merece ser celebrado não apenas como um grande nome, mas como um fundador de um modo de fazer arte que seguirá a inspirar e a desafiar. Seu som, como ele mesmo, é perene e inclassificável.


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