Homem Saudade e as Crônicas de Mandrake

Quando as vivências de quebrada se tornam histórias em quadrinhos

Homem Saudade e as Crônicas de Mandrake

Quando a gente pensa em histórias em quadrinhos é fácil pensar nos X-Men, Homem-Aranha, Batman, Liga da Justiça… Turma da Mônica até tem seu reconhecimento, mas é isso, se você não é do nicho, talvez não saiba o que está rolando por aqui. Acontece que tem uma galera muito boa fazendo HQs pelo nosso país, e entre eles está o Sidnei, conhecido como Saudade³.

Local da periferia de Osasco, o cara começou a ganhar destaque ao publicar suas histórias no Instagram através do perfil @O_Homem_Saudade, onde retrata a vivência de jovens periféricos dentro da cultura funk. Apaixonado por quadrinhos desde a infância, começou a desenhar ainda criança nas folhas de rascunho que a mãe trazia do trabalho, inspirado nas ilustrações que estampavam as máquinas de fliperama dos bares como The King of Fighters, Marvel vs Capcom e Street Fighter.

Ao ser demitido do banco em que trabalhava, pouco antes da pandemia explodir, decidiu que era a hora de investir no que mais gostava de fazer e começou a compartilhar na redes as histórias que já escrevia, agora com o título “Crônicas de Mandrake”.

Chamei Sidnei para um papo e recebi de volta o convite para conversarmos enquanto ele trabalhava. “Como eu tinha falado para você antes, eu espero que você não se importe da gente fazer entrevista enquanto eu trabalho. Tô com uma encomenda grande para entregar hoje ainda. Então, se estiver tudo bem por você…”

Colaboração com @Rxbisco

Tranquilo, mano. Tô vendo que você tá com a com a caneta de tablet na mão. Quais são os suportes que hoje você trabalha?

O meu trabalho hoje em dia é muito híbrido, mas eu sou mais rápido no papel do que no digital. Eu não largo o tradicional por nada, tipo, o meu negócio é realmente folha, lápis, papel, borracha…

Mas eu também entendo que hoje o digital é uma mão na roda, e fora que você se especializar nisso abre possibilidades para inúmeros tipos de projetos. Então há 5 anos, desde quando decidi que ia trabalhar ativamente com arte, eu falei: "Bom, então é nisso que eu vou investir: em todos os equipamentos que eu puder". Então eu corri atrás de uma prancheta de desenho, de um setup melhor, uma mesa que seja mais ergonômica para mim. Então o meu trabalho hoje eu considero híbrido, eu desenho a maior parte das coisas no papel, transfiro através do scanner e no computador eu coloco cor e efeitos.

E o Saudade³ vem de onde? Tem um tom de melancolia mas também de retomada. Como é isso?

Tem a ver com resgate. Porque o meu principal intuito é poder oferecer pra molecada de hoje uma coisa que eu não tive na minha infância, que é o referencial preto, da nossa cultura das quebradas. Na minha infância não tinha história sobre a minha rua, sobre a minha quebrada, não tinha história que falasse sobre a nossa cultura. 

As minhas referências são a referência da maioria, né? Então, é Dragon Ball, Cavaleiros (do Zodiaco), Naruto, os desenhos animados americanos e tudo mais. No Brasil você tinha, lógico, a Turma da Mônica, que tem uma participação gigante no meu letramento, assim como de muitas outras pessoas, mas não tinha isso, na minha infância.

E aí eu falei: "Pô, eu acho que agora é isso, usar o meu trabalho, dispor das ferramentas que eu tenho para poder valorizar minha cultura e oferecer isso pra molecada de hoje". E é o que eu tô fazendo. Saudade é basicamente entender que as crianças de hoje, quando chegarem lá na frente vão ter a oportunidade de sentir saudade de algo que falava sobre elas, sabe?

Faz sentido, até porque o trampo que você compartilha nas redes, obviamente chama a atenção pela parte visual, mas a narrativa, os contextos, os outros elementos são o que dão sentido pra parada. E falando nisso, quando você entendeu que queria contar essa história?

O Crônicas surgiu num momento em que eu tava me racializando, mano. Porque eu lembro de uma experiência de quando eu tava no trabalho, e um amigo meu virou e falou: "nossa, o trabalho do Sid é muito legal, mas você percebeu que ele não desenha nenhum preto?" E aí isso bateu para mim de uma maneira muito sinistra, que eu nunca tinha sentido antes. E aí eu lembro que esse dia eu fiquei muito mal, eu cheguei em casa e, justamente por ser a época que eu tava me racializando, eu falei: "mano, tem alguma coisa errada aqui", e aí eu fiquei uns seis meses sem produzir nada, sem desenhar, sem colocar o lápis no papel, porque é um momento que eu tava me racializando, eu tava lendo Malcolm X, Abdias do Nascimento… E aí eu comecei a entender que, para mim, naquele momento, o que fazia mais sentido era o meu entorno, era quem eu era, quem eu sou. E eu decidi que a partir daquele momento o meu trabalho ia ser sobre isso. Então eu comecei a escrever o roteiro das crônicas quando eu entendi isso. Foi naquele momento ali de 2018, 2019.

Faz sentido então os personagens serem jovens e estarem conectados com essa fase. Inclusive, as discussões são muito sobre descoberta também, afetivas mas de relação com a cidade, com o meio. Dá para dizer que isso contribuiu para você se entender como indivíduo mas também como parte de um contexto?

Com certeza, pô. Porque muita gente inclusive me pergunta se eu escrevo o que eu vivo, mas para um cronista, escrever o que vive não é a regra. O cronista pode escrever o que vive, mas também pode escrever o que ele observa, que é o meu caso. Então, a minha obra é muito mais sobre o que eu observo do que sobre o que eu vivo. Às vezes eu coloco um pouco da minha vivência ali nos personagens e às vezes o estado de espírito dos personagens é o mesmo que o meu. Mas eu costumo brincar, tipo, desenho um personagem em cima de uma moto, fumando num baile, mas eu mal saio de casa, eu tenho medo de andar de moto e eu não sei nem bolar, tá entendendo? (risos).

Então é uma questão do que está no meu entorno, eu acho que é muito belo, eu acho muito bonito, a cultura funk, cultura da quebrada, cultura hip hop, então observo e faço de tudo para ser o melhor observador possível para poder retratar isso. E sim, eu considero que esse projeto de certa forma é um projeto construído por muitas mãos. É um processo que através da troca do público me veio várias descobertas sobre mim mesmo, sobre a quebrada. Então, toda vez que eu colocava lá na internet, o público falava: “pô, ia ser daora se você desenhasse uma personagem com um corpinho mais real, mais gordinha, ia ser daora se você desenhasse uma moto…” Então fui entendendo que, por mais que eu quisesse retratar a quebrada, ter um olhar mais coletivo sobre isso é uma maneira de conseguir representar mais pessoas.

Fiquei pensando nisso, é legal quando você faz uma arte e cita um outro lugar, e a galera escreve nos comentários: "meu, tal lugar foi citado, que daora". Então, rola um reconhecimento coletivo. Como essa pessoa que observa, quais são os códigos que você acha que unificam o ambiente que você retrata dentro das Crônicas?

Pô, mano, essa pergunta é bem legal. Eu não sei se posso falar a nível nacional, mas falando da Grande São Paulo, cada quebrada vai ter as suas particularidades, mas também tem muita coisa que é universal. As Crônicas de Mandrake, por exemplo, é uma história que se passa no Grajaú, mas eu sou de Osasco. Eu entendi que se eu quiser fazer um trabalho onde eu consiga representar o maior número de narrativas e pessoas possível, é interessante sair da minha zona de conforto. Então eu escolhi uma outra quebrada para poder conhecer, para poder retratar os personagens. 

Mas ao mesmo tempo, quando eu tô construindo a história, eu entendo que muitos desses elementos visuais são universais. Quando eu quero desenhar uma rua, de repente eu posso olhar para uma rua daqui. Por exemplo, tem uma bifurcação aqui, descendo para o bairro de baixo. A cena de entrada de uma história que se passa no Grajaú é essa cena. E eu tenho um parceiro que mora no Grajaú, ele falou: "Mano, essa paisagem tem em qualquer quebrada de São Paulo".

Então, é uma história que se passa no Grajaú, mas os personagens estão inseridos na cultura funk, e se eles estão dentro dela, vão dar peão em outros lugares. Eles vão para Paraisópolis, para cidade de Tiradentes, eles vão para Heliópolis… E para representar esses personagens e esses locais que são tão importantes para essa cultura, uma parada que é indispensável também é a região central. Eu não cheguei nesse ponto ainda, mas está no roteiro.

Você falar disso, da vivência, me fez pensar que tem muita gente que trabalha em outros lugares e circula pela cidade; moram em um lugar, trabalham em outro, e dão peão em outro. Essas conexões são quase inevitáveis, né?!

Sim, com certeza. Eu entendo que certas coisas entram para memória afetiva justamente porque são extensões, e o transporte público é uma extensão da periferia.

Teve um outro trabalho meu, bem curtinho, chamado Cortavento, que foi uma webcomic em parceria com o Sesc Pompeia, e é a história de um casal que se conhece num ponto de ônibus. Para muitos de nós um ponto de ônibus, uma estação de trem, de metrô, vai se tornar um lugar de memória afetiva, porque faz parte do nosso cotidiano. As pessoas das periferias estão ali, então querendo ou não, retratar os personagens num busão, num ponto de ônibus, numa estação de trem, igual eu já fiz, por exemplo, chama o pessoal para a realidade.

Pegando o gancho que você trouxe com o Cortavento, o afeto é uma nuance do seu trabalho, mas também tem muito de humor, principalmente para tratar de temas duros, como a violência. Como esses subtons ajudam a quebrar os estereótipos criados sobre a periferia?

Eu acho que dá para pensar essa parada de duas formas: um elemento é o público e um elemento o outro é o autor. Falando sobre público, dá para voltar no que eu comentei sobre querer representar as histórias e as pessoas. Então eu tomo muito cuidado para que o que eu faço não seja mero achismo meu. É se debruçar em cima disso (da cultura funk), pesquisar o máximo de coisa que eu puder ler, o máximo que eu puder assistir, o máximo que eu puder vivenciar.

Então eu tento fazer esse escape total dos estereótipos, porque o que eu mais vi na minha infância sobre a quebrada foi estereótipo. Eu via lá o “Cidade de Deus”, e o “Cidade dos Homens”, Laranjinha, Acerola, moleque preto na quebrada com arma na mão. Eu olhava, e porra, eu não sou isso aí, tá ligado? Pô, mais uma mina grávida, mais um tiroteio no roteiro. Porra, minha quebrada também não é isso aí. 

Então, é basicamente tomar cuidado para não cair nesses estereótipos que o colonizador sempre fez, né? E olhando pela parada do autor, é também sobre me dignificar como autor. Porque eu poderia simplesmente só cair no mesmo tipo de narrativa que o burguês faz.

E falando sobre as situações, por exemplo o humor, eu tenho uma série de capas variantes. Em quadrinho a gente tem essa cultura das capas que mudam, né? A gente tem uma obra, mas a gente também pode trabalhar o imaginário dos personagens de outras formas, e eu tenho uma série chamada Halloween na Quebrada, que é sempre em outubro. Eu gosto muito de terror e eu queria trabalhar com isso de alguma forma, mas eu tô muito imerso nessa obra. Eu falei: "Pô, como é que eu posso juntar uma coisa com a outra, né?" 

Então, lá em 2021, eu falei: "Pô, eu vou fazer uma série com os personagens das Crônicas utilizando o terror." Eu quero saber o que é o imaginário do medo na periferia. E aí eu começava a soltar nas caixinhas de perguntas para as pessoas: “Você já viu a assombração na quebrada? Do que você tem medo dentro da quebrada?” E aí as pessoas respondiam muita coisa: sei lá, "talarico", "transporte público", um monte de coisa, mas majoritariamente o que as pessoas respondem é "a polícia". O que mais tá no imaginário periférico através da minha pesquisa do medo é a polícia. E é muito louco porque é quando as convicções se confirmam. Eu falei: "Pô, se eu vou fazer uma série sobre o terror dentro da quebrada, eu vou tentar refletir o que a quebrada tem medo." Então, por mais que eu tenha receio de sofrer algum tipo de represália, eu vou fazer isso. Mas o humor também é um recurso, né?

Mas como é que eu levo isso de uma forma que o pessoal consiga entender a crítica construtiva em cima disso, que o pessoal também consiga entender que aquilo é uma ficção, que aquilo é um quadrinho que tem uma narrativa e que tem uma construção de ironia por trás também. Por exemplo, esse mês com o Halloween na Quebrada, fez 5 anos e foi justamente na semana do massacre lá do Rio. Então eu até fiquei meio assim (receoso) de lançar a parada, mas é isso, é o trabalho, é a arte. Então, é entender que o que eu faço mais do que nunca tem pé na realidade.

E do que você tem medo?

Eu não fujo muito dessa parada da maioria, então o enquadro é uma parada que realmente dá medo, mas eu acho que é como esse medo afeta as pessoas. A gente vê muito essa parada do pânico moral, então, às vezes as pessoas tão na quebrada e criticando a cultura da quebrada sem entender que ela faz parte, não cria uma sensação de identidade, e a partir disso vem o conflito, vem as indiferenças. Eu tenho medo disso também, dos conflitos que podem surgir entre nós mesmos.

Pode crê, parece que existem dois caminhos claros né, que se dividem entre quem se entende parte daquela comunidade, e quem busca se afastar e sair dali o quanto antes.

E é uma parada totalmente legítima, você tá ali e tem incursão policial, é falta de saneamento básico, sabe? É falta de estrutura, saúde precarizada, educação nem se fala; é totalmente legítimo que as pessoas busquem melhoria. Tá todo mundo tentando sobreviver nesse sistema. Agora, uma outra coisa é você comprar o discurso burguês de que a cultura de quebrada precisa ser criminalizada, sendo que não é. O funk passa hoje pela mesma parada que o samba passou, que o jazz passou. Essa CPI dos pancadões que tá rolando é uma parada extremamente forte em cima da repressão.

Voltando para seu trabalho, o que você consome de referência?

Pô, mano, hoje eu também gosto de uma coisa ou outra do mainstream, mas em grande maioria, o que eu curto hoje é underground dentro de qualquer linguagem, seja cinema, série, desenho animado, e quadrinho principalmente.

Então o pessoal fala: "Nossa, você viu a parada do Batman nova?" e eu vejo quando puder, porque agora eu tô focado em consumir o que o pessoal daqui tá produzindo. E entender que a cena underground de arte é além da minha linguagem, né? Então eu também ando com a rapaziada que faz grafite, eu ando com a rapaziada que é do pixo, o pessoal que tá produzindo audiovisual. Eu mesmo tinha um projeto de audiovisual, sempre flertei bastante com audiovisual, com documentários para ser mais específico.

Você pode indicar uma galera das visualidades?

Jessica Groke é uma grande quadrinista, com um nível de sensibilidade muito forte dentro das narrativas. Eu sou do Slice of Life, que é um gênero que fala mais sobre o dia a dia, então, tem um um autor que eu gosto muito, que é o Jãovito, um parceiro que inclusive fez residência comigo.

Audiovisual, eu indico o Filipe Barbosa, um mano lá da Cidade Tiradentes. Eu fiz o pôster do primeiro curta dele, que é o Fluxo (2024), um curta que foi recorde de público no SPCINE. Nesse momento ele tá lá na Nigéria, levando o trabalho para rodar nos festivais. 

Na animação eu indico o Deley, CEO da MANDABUSCA, que é uma produtora audiovisual de quebrada voltada pra animação. Ele tem um projeto muito foda que vai lançar no ano que vem chamado Debutantes, que eu particularmente acho que vai revolucionar a cena da animação assim.

E nas artes plásticas eu indico a Chá de Melissa, que é uma grande parceira minha. Dentro das artes plásticas, da pintura e de você pensar o imaginário gangsta e o amor dentro da quebrada. Indico muito o trampo dela.

Poster do filme "Fluxo" (2024)

E pra fechar, tu falou do digital no começo, como ele ajuda no seu trabalho ao mesmo tempo que não abandona o físico, mas o quadrinho talvez seja a linguagem que mais foi apropriada pela IA. Você, como criador, acredita em um uso ético da IA na produção artística?

O algoritmo cria através da cópia do trabalho de outros artistas, né? Ela não gera nada, ela plagia. É uma parada que eu sempre abominei, eu falo com os meus amigos, desculpa o termo,  mas pau no cu da IA, foda-se, o bagulho é fazer arte e já era, colocar toda a nossa bagagem, todo o nosso aprendizado e, na maioria do tempo, a gente consegue ignorar, mas as vezes não. 

Esses dias aconteceu uma parada que eu já imaginava que pudesse acontecer. Teve uma cena que eu postei dos meus personagens no baile e teve um perfil que jogou as todas as páginas, 19 páginas, na IA. Mudaram o texto, os personagens ficaram 3D, um negócio maluco. E aí eu fui cobrar e falei: "Pô, rapaziada, isso aí pode dar um problema legal para vocês. Eu sou artista, eu tô tentando viver da parada e tal". Aí os caras, "pô, mas a intenção foi postar o seu trabalho melhorado e remasterizado”. Os caras me mandaram esse áudio. E lógico, às vezes é uma molecada que não tá por dentro do que é isso, essa parada do artista, mas é foda.


ISMO
Cultura em movimento

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