Hermeto Pascoal e a música sem fronteiras

Improviso, invenção e o legado global do bruxo universal

Hermeto Pascoal e a música sem fronteiras
Foto: Pedro Dimitrow

Falar de Hermeto Pascoal é falar de um dos artistas mais livres e inventivos da história da música. Multi-instrumentista, compositor e improvisador nato, Hermeto construiu um legado que atravessa décadas rompendo fronteiras de gênero, de técnica e até de instrumento. Se a música é, para muitos, uma linguagem codificada, para Hermeto ela é respiração - algo que está em todo lugar e pode ser arrancado de qualquer objeto, de um fio de barba a uma chaleira, do corpo humano a um brinquedo de feira.

Conhecido como “o bruxo” por suas criações inusitadas, Hermeto não se limitou ao folclore ou ao exotismo. Sua genialidade estava em fundir a música popular brasileira, o jazz, a improvisação livre e a música erudita em uma obra coerente e original, capaz de dialogar com músicos de todas as tradições. No início dos anos 1970, gravou com Miles Davis três de suas composições - Little Church, Selim e Nem Um Talvez - para o álbum Live-Evil (1971) e lançou discos impressionantes como Hermeto (1970) e A Música Livre (1973), consolidando sua posição como dos grandes nomes da música mundial. Alguém que, vindo de Lagoa da Canoa, Alagoas, foi capaz de expandir os limites do jazz internacional e da própria ideia de “música brasileira”.

Seu legado também está na radicalidade da prática. Hermeto sempre defendeu a música universal, uma concepção que não é estilo nem rótulo, mas uma visão de mundo. Ele enxergava o som como organismo vivo, aberto à experimentação, e essa postura gerou uma pedagogia única. Um dos registros mais emblemáticos dessa visão é a Sinfonia do Alto Ribeira (1985), gravada dentro das cavernas do PETAR, onde Hermeto transformou o espaço natural em instrumento. Mais que um experimento sonoro, a obra é uma declaração de princípios: a música como extensão do ambiente, a improvisação como ciência e a criação coletiva como caminho.

Essa vitalidade da obra de Hermeto também se manifesta no quanto ela é apropriada, recriada e reimaginada por outros artistas. Seu catálogo se tornou fonte para produtores e músicos de diferentes cenas ao redor do mundo. Madlib sampleou Hermeto em Porto Alegre; Westside Gunn, ao lado de Benny the Butcher, em Vader; Amon Tobin construiu atmosferas eletrônicas em Four Ton Mantis; e no Brasil, nomes como Elo da Corrente (Mudanças) e Nação Zumbi (Do Mote Do Doutor Charles Zambohead) encontraram em suas composições matéria-prima para novas sonoridades. Esses diálogos reforçam que sua música é inesgotável: atravessa fronteiras, estilos e gerações, sempre se abrindo para novas leituras.

Foto por Pedro Dimitrow

Outro aspecto fundamental é a generosidade de sua criação. Hermeto compunha compulsivamente, muitas vezes escrevendo partituras diárias como exercício espiritual. Em 1996, lançou Calendário do Som, um caderno de partituras com 366 composições, uma para cada dia do ano. Mais do que façanha, a obra mostra sua crença de que a música não é propriedade, mas fluxo contínuo. Essa mesma visão o levou a liberar publicamente sua obra para que outros músicos pudessem gravá-la sem burocracia, em gesto raro que reflete sua ideia de música universal como bem coletivo. Sua relação com o público também seguia essa lógica: um concerto de Hermeto nunca era mera execução, mas ritual coletivo, onde músicos e plateia entravam em estado de descoberta.

Um dos últimos grandes feitos de Hermeto foi o álbum Pra Você, Ilza, lançado em maio de 2024, uma homenagem poética à memória de sua esposa Ilza, com quem viveu por mais de quarenta anos. O disco reúne 13 músicas inéditas extraídas de cadernos de composições dedicadas a ela, gravadas em fevereiro de 2024. Pra Você, Ilza também lhe rendeu um Latin Grammy de Melhor Álbum de Jazz Latino/Jazz, reconhecimento justo da maturidade e profundidade de um artista que seguiu revisitando sua própria inventividade até os últimos dias.

No Brasil, seu nome é reverenciado como um patrimônio vivo. Chico Buarque o incluiu na letra da canção Paratodos (1993), listando-o entre outros grandes nomes da música brasileira, como Milton, Gil, Jorge Ben e Tom Jobim. Caetano Veloso já afirmou publicamente que Hermeto “é um dos pontos mais altos da história da música no Brasil” e Flora Purim o definiu como “um dos músicos mais completos que eu já conheci”. A reverência também vem de fora: Miles Davis não hesitou em chamá-lo de “o músico mais impressionante do mundo”.

Hermeto Pascoal deixa um legado que é mais do que musical: é filosófico. Sua obra nos lembra que a música não cabe em fronteiras nacionais ou de gênero, que o som pode nascer de qualquer lugar, que a liberdade criativa é também uma forma de resistência. No Brasil, é reverenciado como patrimônio cultural; no mundo, figura entre os artistas mais respeitados do jazz e da música experimental. Sua trajetória prova que a música universal que ele tanto defendeu não é apenas conceito, mas prática viva, capaz de atravessar continentes e conectar tradições. Hermeto se afirma como um farol que iluminou o Brasil e inspirou o planeta, mostrando que o improviso pode ser disciplina, que a loucura pode ser método, que a alegria pode ser revolução.

Vozes que se despedem do “bruxo” nas redes sociais:

“R.I.P. Hermeto Pascoal. Quem desejar homenageá-lo, deixe soar uma nota no instrumento, na voz, na chaleira e ofereça ao universo. É assim que ele gostaria.” - Arnaldo Baptista

“Hermeto Pascoal é um dos pontos mais altos da história da música no Brasil.
Hoje nos despedimos de um gênio. Aos 89 anos, Hermeto Pascoal parte, mas sua música infinita permanece.” - Caetano Veloso

"Desde meus 14, 15 anos de idade assisti a todos os shows de Hermeto que tive oportunidade. Foram incontáveis, pra mim era como ir à missa.
Música cura, e a existência de Hermeto Pascoal é a prova viva disso.
Obrigado, mestre. Descanse em paz." - Daniel Ganjaman

“Sempre tive muito amor e respeito pela música livre de Hermeto Pascoal. Pra mim, ele, Naná Vasconcelos e Egberto Gismonti formam uma espécie de santíssima trindade dessa arte. Seguirão assim. Você sempre será música, Campeão.” - Chico César

“89 anos de música. Hermeto Pascoal se despede desse plano… Suas qualidades excedem nossa compreensão. Descanse em paz, grande mestre! Passagem maravilhosa de luz!” - DJ Nuts

“Ontem à noite fomos surpreendidos pela passagem do nosso grande mestre, o bruxo da música brasileira. Hermeto é a personificação da música, um dos nomes mais inovadores e reverenciados não só da música brasileira, mas da música universal. O cara que transcendeu tudo. Sem limites e sem barreiras, criou uma obra eterna que bebeu no erudito, no jazz, no experimental e, acima de tudo, nas raízes da música brasileira.” - DJ Tamempi

“Dizem que todo albino pertence a Obatalá, orixá da criação, dono do ar e da respiração, o rei do pano branco. Hermeto foi mago Funfun dos sons, tinha uma liberdade muito própria, suas ideias extrapolaram fronteiras. Durma em paz e volte logo, Hermeto. Obrigado por tudo.” - Kiko Dinucci

“Rest In Power the ever innovative Hermeto Pascoal.” (Descanse em poder, o sempre inovador Hermeto Pascoal) - Questlove

“Hermeto Pascoal. Stalwart of Brazilian Music. Loved by all. A Titan of the post bossa avant garde.” (Um pilar da música brasileira. Amado por todos. Um titã da vanguarda pós-bossa.) - Gilles Peterson


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