Gordon Parks: A América sou eu
IMS Paulista abre exposição que mergulha no trabalho do fotógrafo que usou a câmera como arma contra os problemas sociais
Hoje, 04 de outubro, a unidade Paulista do Instituto Moreira Salles abre a exposição "Gordon Parks - A América sou eu", primeira retrospectiva do fotógrafo no Brasil e a maior já feita na América Latina. Ao todo são quase 200 fotografias, tiradas principalmente entre as décadas de 1940 e 1970. O recorte apresenta o trabalho de um dos principais fotógrafos do mundo e figura importante no registro do movimento negro norte-americano, sobretudo no período da segregação racial.
Janaína Damaceno e Iliriana Fontoura Rodrigues assumem as funções de curadora e curadora assistente da exposição e foram responsáveis por mergulhar no arquivo de Gordon para selecionar o material que hoje é exibido em dois andares do IMS Paulista. Em conversa realizada durante a montagem da exposição, Iliriana compartilhou um pouco sobre o processo curatorial, a relevância do material aqui apresentado e informações sobre a obra de um dos fotógrafos mais importantes do século XX.
Estamos em processo de criação há quase dois anos. E desde o convite até a chegada da exposição, a gente foi percebendo não só a importância fundamental do Gordon Parks na história da fotografia mundial, como um dos grandes do campo, mas também a importância em ter a possibilidade de fazer uma exposição de grande envergadura.
Então, é uma exposição com quase 200 obras, sendo que muitas delas estão sendo exibidas pela primeira vez, eles nunca tinham nem revelado algumas delas. Então, foi uma imersão de fato na história dele.

Tendo vivido entre 1912 e 2006, Gordon foi testemunha ocular de grandes acontecimentos e transformações dos Estados Unidos e, com um olhar muito sensível, conseguiu registrar a realidade por meio de grandes personagens, mas também de pessoas ordinárias. Iliriana contou que a escolha de fazer a exposição de forma seriada é alinhada à forma que Gordon fotografava. Com o objetivo de captar a totalidade das pessoas, era importante acompanhá-las em todos os seus ambientes e não só naqueles pelos quais elas eram reconhecidas.
Dois exemplos que aparecem logo no começo da exposição são o de Ella Watson, profissional da limpeza que foi fotografada por Gordon em 1942, período em que ele trabalhou para a FSA. Entre os registros, a vida cotidiana e familiar se entrelaçam com o de seu fazer profissional e uma das fotos mais conhecidas é American Gothic, na qual Gordon usa a personagem de Ella como representante de toda uma comunidade em relação aos EUA.
Outro personagem registrado, desta vez em 1948, para uma matéria da Revista LIFE, é Red Jackson, líder da uma gangue do Harlem e figura controversa mas cheia de camadas. Os conflitos são sobrepostos por momentos de convivência afetiva, de autoestima e ternura. Para Gordon, o jovem de 17 anos não poderia ser reduzido ao contexto violento, mas era importante entendê-lo em sua totalidade.

Gordon o viu para além dos estereótipos. E eu acho que isso também diz um pouco a respeito da própria vida do Gordon Parks. Ele era um cara que perdeu a mãe muito cedo e quando ele perde a mãe, faz esse movimento de se tornar uma pessoa migrante, que passa a trabalhar nos trens, a ter uma série de intercorrências na vida, ele fica morando na rua... Ele também se pergunta: "como é que eu sobrevivi? Todos os meus amigos morreram ou foram linchados em algum momento, e eu estou aqui, vivo."
Esse jeito humanizado vai atravessar todo o trabalho de Gordon, e aqui fica uma das chaves mais importantes da sua obra, que é retratar a comunidade negra norte-americana de forma digna, olhando para as manifestações de autoestima, mesmo dentro de um contexto extremamente violento e cruel. Mesmo em trabalhos comissionados, é como se ele buscasse ampliar os significados e as histórias.
Além das fotografias, a exposição traz outros elementos que valorizam o caráter multiartístico de Parks. Um de seus trabalhos mais conhecidos fora do contexto fotográfico é o filme Shaft, clássico da Blaxploitation, movimento cinematográfico protagonizado por diretores e atores negros e que tinha como público-alvo a própria comunidade afro-americana.

A exposição também se preocupa em apresentar um pouco sobre o trânsito entre intelectuais nas Américas e as aproximações entre Brasil e Estados Unidos. O título “A América sou eu” foi retirado de um texto escrito em 1968 no qual Parks questiona a democracia norte-americana sua contradição em se consolidar sob um regime segregacionista. Mas também é possível pensar na forma que grupos minorizados foram e são explorados em estruturas que se apresentam como democráticas mundo afora.
Para nós é bem importante esse sentido coletivo do "Eu" do Parks, porque é estar falando das populações ditas à margem: das populações negras, das populações migrantes, das populações latinas... A gente tem consciência da importância transnacional e do diálogo que a obra dele tem na diáspora.
Iliriana ainda nos conta como o trabalho de Parks influenciou muitos dos criadores brasileiros em diferentes gerações. Don Filó, personagem fundamental para entender a cultura musical negra, principalmente no Rio de Janeiro, nomeou seu baile de Baile do Shaft. Já o fotógrafo Walter Firmo, em entrevista cedida para a equipe da exposição, afirmou que seus tons de azul foram apreendidos a partir da leitura das imagens de Parks nas revistas LIFE, que Walter conseguia acessar nas bancas de jornal perto do aeroporto Santos Dumont.
Gordon, aliás, chegou a visitar o Brasil em 1961, para um projeto que depois veio ser conhecido como O caso Flávio, no qual fotografou a família Da Silva, com o objetivo de documentar a vida nas favelas cariocas, principalmente na Favela da Catacumba, que hoje já não existe mais. Na oportunidade, Parks aproveitou para visitar igrejas evangélicas negras no Rio de Janeiro, o que conversa também com o fato de que a espiritualidade atravessa seu trabalho e o é possível observar em diversas fotografias expostas.

Uma das séries mais importantes da obra de Gordon Parks e que não poderia faltar, é a de seus registros sobre a luta pelos direitos humanos e da população negra ao longo dos anos 1960, principalmente. Os líderes Malcolm X e Martin Luther King Jr. são documentados em fotografias de uma sensibilidade gigantesca. Duas presenças avassaladoras, mas que diante das lentes de Gordon, ganham contornos sutis.
Os registros da segregação, com destaque para as fotos que mostram os espaços destinados para a população branca e negra, também conseguem trazer à tona a brutalidade da estrutura social norte-americana, ao mesmo tempo em que se preocupam em documentar todas as pessoas com muita dignidade. A foto Department Store, Mobile, Alabama, de 1956, foi eleita ano passado pelo The New York Times como uma das 25 fotos que definiram a Modernidade; e para Iliriana também faz parte das peças que mais lhe tocam, muito por sua pesquisa pessoal, na qual a partir de arquivos fotográficos de sua própria família, consegue reconstruir um passado que se aproxima muito do capturado pelas lentes de Gordon.

A gente pensou essa série como um dos corações da exposição. [...] Ele faz esse colorido de propósito mesmo, para encarnar as pessoas, para que elas estivessem retratadas em cores. Mas ao mesmo tempo é um colorido que mostra os limites da própria estrutura segregacionista, porque você vê as imagens onde as pessoas pretas entram, onde as pessoas brancas entram…
É muito importante que esteja aqui, porque acredito que seja, inclusive, uma das primeiras vezes em que tantas imagens dessa série estão sendo exibidas. É bem significativo.
Apesar do recorte, há um salto temporal para expor uma foto muito importante, talvez uma das mais reconhecíveis de Gordon: Um grande dia para o Hip Hop. O click feito em 1998 reúne mais de 200 artistas e produtores em uma foto que replica outro clássico, Um Grande Dia no Harlem, 1958, de Art Kane, no qual 57 músicos de jazz posaram na escadaria da mesma casa.

Nomes como Grandmaster Flash, Busta Rhymes, Cam’ron, Common, Kool Herc e o grupo The Roots fizeram parte desse momento histórico. A foto foi capa da edição de setembro da XXL e, bom, só indo pra entender, porque não tem tela de computador no mundo que dê conta.
A cultura Hip Hop, aliás, é uma das que mais olhou para Gordon Parks como referência. O clipe de ELEMENT., de Kendrick Lamar, reinterpreta diversas fotos de Parks como forma de apresentar essa visão delicada e ao mesmo tempo visceral da história negra norte-americana. E com todos os intercâmbios, o Brasil de certa forma também pode consumir desse legado.
Eu acho que a obra dele permanece extremamente atual nessa possibilidade de reflexão, a partir do que foi feito e do que somos. Muito do pensamento do movimento negro brasileiro... Mas bom, a Angela Davis diz "Por que vocês, brasileiros, se inspiram tanto em mim, se vocês tem a Lélia (Gonzalez) e tem a Sueli (Carneiro)?" Mas eu acho que há um intercâmbio nesse pensamento.
Além do que já foi dito aqui, a exposição passa por várias outras séries, como os registros de Muhammad Ali, entre outros. Então faça um favor para si mesmo e separe um dia, dois ou mais para visitar e revisitar a exposição no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Todas as informações estão aqui abaixo:
SERVIÇO
Gordon Parks: a América sou eu
De 4 de outubro de 2025 a 1 de março de 2026
Entrada gratuita
7o e 8o andar
IMS Paulista
Avenida Paulista, 2424. São Paulo
Horário de funcionamento: Terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h.
Agradecemos a Iliriana Fontoura Rodrigues, a Mariana Tessitore e à equipe do IMS Paulista pelo apoio.