Gaía Passarelli volta à música e lança "Deslumbre"

Em novo livro, a escritora reúne ensaios sobre suas vivências musicais

Gaía Passarelli volta à música e lança "Deslumbre"

Você provavelmente já se pegou pensando naquele filme, música ou livro que te marcou tanto que aceitaria perder a memória para sentir de novo a sensação de entrar em contato pela primeira vez. Como se a vida tivesse mudado ao final do último acorde ou, quando os créditos começam a subir e você percebe que teve uma experiência transformadora. Esse encantamento, por vezes, é tão grande que se torna hiperfoco, nos molda, define escolhas e dá sentido para nossa compreensão de mundo.

Em alguma medida esse sentimento é o tema do novo livro de Gaía Passarelli, "Deslumbre: histórias de obsessão musical," publicado pela Terreno Estranho, e que marca o retorno da escritora para seu primeiro grande assunto: a música.

Das grandes conhecedoras e apaixonadas do tema, Gaía começou a escrever em 1997, no finado blog Rraurl, que ficou ativo até 2011. De lá pra cá chegou a ser VJ da MTV, entre 2010 e 2013, onde comandou o Goo, programa que muita gente sente saudade, ao mesmo tempo que parece memória construída por um imaginário coletivo. Depois disso tudo, se distanciou da cena e foi desbravar outros universos através da escrita.

Foto: Rony Hernandes

Em 2016 veio o primeiro livro, “Mas Você Vai Sozinha?”, sobre as várias viagens que começou a realizar, e depois, em 2024, o “Tá Todo Mundo Tentando”, livro de crônicas, ensaios e ficções que nasceram de sua newsletter de mesmo nome, e que tem sido o principal ponto de contato entre Gaía e o público que acompanha seu trabalho. 

Como o próprio nome diz, "Deslumbre" encerra essa trilogia de histórias pessoais através de ensaios que revisitam a formação cultural e pessoal de Gaía por meio da música.

Tem adolescência precoce, madrugadas de techno em São Paulo, MTV Brasil e viagens à Londres. É uma mistura de memória e jornalismo musical, numa linha do tempo da Geração X paulistana que atravessa três décadas de descobertas culturais.”

Quando o e-mail anunciando a pré-venda chegou em minha caixa de entrada, fiz questão de garantir um exemplar e aproveitei para enviar um e-mail perguntando se ela topava responder algumas perguntas sobre o livro, escritas e claro, sobre música. Para minha sorte, ela topou, e o papo você confere por aqui.

Ilustração por Tiago Lacerda

Posso estar enganado, mas pós Raurrl e principalmente pós MTV, você ficou um tempo sem falar sobre música (e sobre o período). Como é voltar ao tema depois de tanto tempo?

Quando (a MTV) acabou, acho que estava claro para mim que eu não ia continuar trabalhando em TV (risos), porque não me encontrei ali. Mas eu também tinha a vantagem de poder usar uma certa projeção que eu ganhei naquele período para continuar escrevendo para outros veículos. Então foi uma fase que eu escrevi para outros lugares e comecei um trabalho meu num blog.

Mas esse blog acabou ganhando uma outra direção, porque eu comecei a escrever sobre viagens e a viajar para vários lugares do mundo para escrever sobre isso. E obviamente foi super legal. Aí nessa, a coisa de escrever sobre música acabou ficando meio de lado, mas para mim foi importante tomar a decisão consciente de parar de escrever sobre música para poder me tornar conhecida escrevendo sobre outras coisas.

Porque é muito fácil você cair num nicho e ficar conhecido como a pessoa que só faz isso. Durante uma época eu fui a garota da música eletrônica que escrevia de Techno. Depois eu fui a moça que falava de música estranha na MTV... Então para mim, profissionalmente, era muito importante romper com isso de alguma forma.

E o livro, o Deslumbre, foi um convite do Fábio Massari. A editora onde ele é diretor criativo, que chama Terreno Estranho, é uma editora independente brasileira super legal, que só publica livros sobre música. Eles tem um casting ótimo, e pô, não ia negar um convite no Massari, que é uma pessoa que todo mundo gosta muito. Massari é um tremendo gente fina. E quando eu comecei o Goo na MTV, ele foi uma das pessoas que foi muito gentil comigo, no sentido de me passar o bastão. 

Mas enfim, eu recebi o convite e eu fiquei um pouco com essa missão de entender sobre o que eu ia escrever, mas era claro que eu ia escrever sobre música. E o meu trabalho na literatura tem muito a ver com memória, eu uso muita história da minha vida. Até escrevo ficção também, mas uso muito a minha experiência de vida para escrever sobre outras coisas, e achei que estava num momento bom, mais de 12 anos depois da MTV ter acabado, para eu voltar para o meu assunto inicial, que é música. E foi muito legal, muito gratificante, muito prazeroso.

Ilustração por Tiago Lacerda

Eu escolhi quatro recortes diferentes, então são quatro ensaios, um que fala muito sobre a minha adolescência em São Paulo, outro sobre meu envolvimento com música eletrônica, outro sobre a MTV, e aí tem um texto final que sou eu já mais velha, voltando para Inglaterra, que acho que de alguma forma amarra a experiência dos textos anteriores já com uma certa maturidade.

E junto com isso, conforme eu fui escrevendo o livro, fui percebendo como seria legal poder colocar todas as referências de música, nome de banda, nome de disco, nome de filme, que são essas coisas que a gente que gosta muito de música gosta de trocar. Então os capítulos são intercalados com segmentos que a gente chamou de backstage, que são listas comentadas de banda, música, disco, filme, livro, referências legais.

Eu contei toda uma historinha, mas para responder à sua pergunta, foi muito legal retornar a esse primeiro assunto. E acho que isso também já está transparecendo, já está aparecendo no meu projeto atual, que é a newsletter. Então já voltei a falar mais de música nela, que é uma coisa que eu sempre fiz de forma muito pontual, mas que também é um assunto que eu sei que tem um cenário acontecendo, tem outras pessoas escrevendo muito sobre música no Substack, então também é uma intenção minha de fazer parte desse movimento de alguma forma.

Ilustração por Tiago Lacerda

Te vi falando que a trilogia não surgiu como trilogia, mas fiquei pensando em como o ambiente surge como personagem em seus livros. O mundo no MVVS, a cidade no TTMT… No Deslumbre, também tem esse ambiente?

Não foi proposital, mas eu acho que o Deslumbre encerra uma trilogia muito baseada em memórias, e de histórias. Então o primeiro é o "histórias de uma mulher viajando o mundo", o segundo é "histórias para ler na cidade" e o terceiro é "histórias de obsessão musical". Tudo isso ligado a fatos reais da minha vida. 

E acho que encerra de um jeito que me abre espaço para me dedicar mais ao meu trabalho de ficção, que é uma coisa que já vem acontecendo. O "Tá Todo Mundo Tentando" tem ficção, eu escrevo ficção na newsletter de vez em quando. Não é tão bem aceito quanto textos mais sentimentais e pessoais, mas é algo que eu gosto de fazer. E o meu próximo livro, que eu estou terminando no começo do ano que vem, é um livro só de ficção. Então acho que era importante para mim encerrar esse ciclo criativo para poder abrir espaço para os próximos. 

Mas sua pergunta, sobre como essa presença do ambiente aparece, o "Mais Você Vai Sozinha?" é propositalmente um livro de viagem. Era uma época que eu estava escrevendo muito sobre viagem para vários lugares: Londres, Escócia, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Índia, Peru, Colômbia... Então, tem uma preocupação ali de contar sobre o sobre os lugares, sobre as histórias, as pessoas, sobre os ambientes.

O "Tá Todo Mundo Tentando" é uma coletânea de edições da minha newsletter. E tudo escrito num período que eu estava muito em São Paulo e durante a pandemia. Então, acho que é natural que a cidade apareça muito. Acho que isso também acontece com naturalidade. 

E o terceiro, apesar de ter muito a presença da cidade, porque também é sobre a minha vida crescendo em São Paulo, o protagonista ali, às vezes antagonista, é a música. São as cenas e referências musicais.

Esse livro tem muito de São Paulo, tem muito Londres, que é uma cidade para onde eu fui muito na vida. Mas não acho que isso aconteceu de propósito, “vou colocar a cidade nessa história”, porque são histórias da minha vida e as cidades fazem parte da minha vida.

Pra ti, alguém que viveu pra cacete nessa cena musical dos anos 90, ainda rola se deslumbrar com algum som/banda/artista?

Com certeza! Direto aparece alguma coisa que está rolando e eu sinto uma empolgação, sim, mas também, para ser super honesta, eu ainda sinto muito deslumbre, para usar essa palavra, eu sinto uma ligação muito forte com esses sons que são parte da minha formação. Por exemplo, nesse ano eu voltei a ouvir muito Underworld, que é uma coisa que eu não ouvia faz tempo.

E ouvir sons do passado sempre me levam de volta para um lugar feliz. Sigo ouvindo muito Bowie, que é um artista que me deixa deslumbrada mesmo, fico muito espantada com a capacidade criativa, o alcance artístico dele. 

Esse ano Mogwai veio para o Brasil, e eu voltei a ouvir muito Noise também, que é uma coisa que eu gosto. Estou citando propositalmente coisas do passado para falar que sim, é legal ouvir coisas novas, mas ainda sinto o mesmo deslumbre com coisas que eu ouvia no passado.

Considerando que o acesso à informação, novos sons e lugares hoje é muito mais fácil do que ali nos anos 90/2000, o que você acha que muda para o deslumbre acontecer?

Cara, não sei. Acho que depende de muitas coisas, porque é fato que era muito mais difícil conseguir tudo, né?! Livro, revista, disco... Imagina, a gente ficava sentado na frente do aparelho de rádio FM ou da TV esperando passar alguma coisa que a gente gostava e às vezes podia nem acontecer (risos).

Então, no passado, eu acho que esse deslumbre, esse encantamento, ele vinha junto com uma percepção muito forte de novidade e de raridade também. Então, sei lá, quando tinha um amigo que ia para o exterior e voltava com discos e revistas, a gente ficava dias vendo aquilo. Eu lembro de revistas que eu ficava folheando por semanas, ela nunca esgotava isso. Isso é muito legal. 

E acho que acho que isso não existe hoje, por motivos óbvios, mas eu não acho que diminuiu o encantamento das pessoas com música, filme... É só ver como as turnês hoje continuam imensas, sabe? Artistas muito populares quando lançam disco, os fãs ficam histéricos.

Então eu acho que essa sensação de envolvimento muito grande com música e esse deslumbre ainda existem sim, ele só acontece numa chave diferente, porque isso é do ser humano. Acontece de uma outra forma e talvez seja mais urgente, mais do agora. Talvez ela mude muito rápido, por isso que artistas ficam aí tentando lançar coisa o tempo inteiro para se manter em relevância.

Essa não é bem uma pergunta, mas queria te ouvir sobre a escolha do Tiago Lacerda e a estética dos quadrinhos para as ilustrações.

A parceria com o Tiago aconteceu de forma muito natural. A gente já se seguia no Instagram, porque o Thiago é um cara dos quadrinhos e eu gosto muito de quadrinho. Então acho que a gente já se seguia no Instagram há um tempo, e um dia ele ofereceu de fazer: "pô, posso fazer uma ilustração para a newsletter?" E o resultado, claro, foi super legal, porque o Tiago é um cara super talentoso. E daí a gente manteve até agora, semanalmente. No momento que a newsletter passou a ter paywall, também passei a pagá-lo, porque antes a newsletter era gratuita. 

Mas agora também, esse acho que foi o último trabalho que a gente fez junto, pelo menos por enquanto, porque o Tiago está fazendo outras coisas e parcerias também vêm e vão. A newsletter, agora em 2026, também está entrando num outro momento, com uma outra organização e inclusive uma outra identidade visual. 

Mas o Tiago fez a capa no livro anterior, o "Tá Todo Mundo Tentando", e a primeira ideia que eu tive para esse livro, que acabou sendo o Deslumbre, era um livro em quadrinhos, porque a gente fez uma vez, em 2024, acho, uma história em quadrinhos para uma edição da revista Morel, que é uma revista literária brasileira, que toda edição, tem uma história em quadrinhos, e ele fez uma história em quadrinhos baseada num texto meu, e foi super legal. Nossa, eu amei! 

Então a primeira ideia era fazer algumas histórias musicais, todas em quadrinhos. Mas cara, quadrinho demora muito para fazer, é muito difícil. Demanda de quem escreve também, mas principalmente do artista. Uma dedicação longa. Então, acho que esse era um projeto que não ia dar para fazer agora. 

Mas eu sugeri para o pessoal da editora, falei "porra, acho que esse livro tem que ser ilustrado pelo Tiago, porque tem tudo a ver. E quando as pessoas começarem a receber o livro elas vão ver que de fato tem tudo a ver com as ilustrações que estão super legais. 

Então, acho que é uma parceria muito feliz, para os dois lados.

Pra fechar, indica ler ouvindo algo? Se sim, o que?

Ah, as playlists que eu ainda vou disponibilizar, ué! (risos).

Assim, o livro tem muito, muito mesmo, nome de banda, muito nome de disco, muito nome de música. Então acho que está facílimo para quem tiver lendo, ler com o celular ou com o computador do lado pra abrir uma janela de browser e identificar algo ali e colocar pra tocar.

É difícil indicar uma coisa só porque os ensaios têm identidades de sonoras muito bem definidas. O primeiro é totalmente pós-punk, o segundo é eletrônica noventista, o terceiro é aquele período do Goo, da MTV, e o quarto ligado ao radialista inglês John Peel, então ele é bem eclético, mas é bem rock inglês também.

Mas, ó, eu tenho uma playlist de dez anos do Goo disponível no meu Spotify. Mas é isso. Indico ouvir alguma coisa sim, tipo ouvir com o YouTube aberto do lado para ir buscando em tempo real as referências que eu estou mencionando. Acho que essa vai ser a melhor experiência.


Para quem estiver afim, "Deslumbre" está em pré-venda direto pela Terreno Estranho, e conta com prefácio do jornalista e DJ Camilo Rocha, que também escreveu sobre música no recente "Bate-Estaca", além das já citadas capa e ilustrações de Tiago Lacerda, e bençãos de Fábio Massari, pessoa fundamental para a formação musical de boa parte dos modernos brasileiros, e que hoje também é diretor artístico na Terreno Estranho.

Se estiver por São Paulo e quiser pegar um autógrafo, curtir um som ou já comprar o livro pra ler na volta pra casa, o lançamento está marcado para o dia 18/12, no BOLOR São Paulo. Fica o convite aí e, caso você esteja lendo isso depois do lançamento, bom, compra tua cópia porque é sempre gostoso ler gente escrevendo sobre algo que gosta.


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