Essentia Fluctus Imago

O fotógrafo Jair Bortoleto lança livro com mais de duas décadas de registros que retratam o surf como estilo de vida e expressão artística

Essentia Fluctus Imago
Foto da capa de Essentia Fluctus Imago em Waimea Bay, North Shore, Oahu, Havaí (2012)

No horizonte onde o mar encontra a arte, Jair Bortoleto lança nessa quarta-feira, 28 de Maio, Essentia Fluctus Imagouma obra que transcende o surf como esporte e o revela como expressão estética e cultural.

Com mais de duas décadas dedicadas à documentação visual do universo das ondas, Bortoleto apresenta uma coletânea de imagens que capturam a essência desse modo de vida em sua forma mais pura.

Com curadoria de William Baglione, edição de Adrian Kojin, direção de arte de Ernani Mesquita, curadoria editorial de Clifford Li, prefácio de Scott Hulet (diretor criativo do The Surfer’s Journal) e posfácio de João Valente, Essentia Fluctus Imago é publicado pela Editora Afluente. 

Batemos um papo com o fotógrafo sobre suas visões sobre a cena atual do surf, a efemeridade das redes sociais e é claro, sobre o lançamento do livro que, mais do que um compilado de fotografias, se afirma como um manifesto visual.


Fale um pouco sobre o conceito por trás de Essentia Fluctus Imago.

Numa tradução livre, significa algo como “A essência da imagem da onda”. Por estarmos, em minha opinião, vivendo as últimas fases do declínio da cultura surf, a busca da essência é fundamental, por isso do título do livro.

O livro é um compilado de registros feitos entre 2003-2025 do surf e de sua cultura. Entre o primeiro e o último registro presente na obra, quais as maiores transformações que você enxerga em relação a cena de surf lá do começo dos anos 2000 e a cena atual?

Creio que havia uma certa inocência no meu olhar — pra não dizer em toda a cena. Existia um senso mais forte de comunidade, tanto entre os surfistas quanto entre os artistas que orbitavam esse universo. O primeiro registro do livro, inclusive, é de skate, feito em 2003 na extinta Pala Pool, na Califórnia. Essa é a minha essência: o skate. Sou de Santo André e comecei a andar em 1987. Sempre vi a cena do skate como um exemplo sólido de documentação cultural e tentei levar esse olhar pro surf também. A cena que eu via no início dos anos 2000, obviamente, já não existe mais. Sempre vai ter gente tentando fazer algo diferente, algo único — mas a verdade é que quase tudo já foi feito. Hoje, encontrar algo genuíno é raro. Muitas vezes, o que vejo são pessoas encenando um personagem, e poucas sendo realmente quem são.

Recentemente aqui na ISMO publicamos um texto sobre o paradoxo que o skate vive, em que se por um lado nunca houve tanta exposição da mídia, circuitos de campeonatos, olímpiadas, por outro lado a cultura “core” está em xeque - revistas especializadas sumindo, marcas e skateshops fechando, fotógrafos e videomakers migrando para outros mercados para se manterem. O momento do surf é parecido?

Aconteceu algo muito parecido no surf. O grande marco para o surf brasileiro foi o primeiro título mundial do Gabriel Medina. Aquela conquista foi o clímax — o momento máximo — para todo o mercado: revistas, sites, marcas, todo mundo. Eu estava no Havaí quando ele foi campeão, e na manhã seguinte, quando acordei, já existia o “funk do Medina”. Ali, pra mim, começou o fim de uma cultura que sempre foi movida pela contra cultura — pela busca de algo mais livre, mais fora do sistema.

O problema é que a maioria abraçou aquilo com entusiasmo. Ter um título mundial trouxe uma avalanche de exposição, de televisão, de redes sociais. E com isso, o papel das revistas foi esvaziado. Não fazia mais sentido publicar algo que todo mundo já tinha visto há um mês no Instagram. Os fotógrafos de surf — especialmente de ação — praticamente sumiram. A maioria virou videomaker, acompanhando a demanda por conteúdo rápido e efêmero. O restante procurou refúgio em outros caminhos ou simplesmente desapareceu da cena. É triste, porque muita coisa bonita se perdeu. Mas como tudo na vida, sobrevive quem se adapta. E talvez, pra alguns de nós, adaptar-se signifique também preservar certos valores, mesmo que em pequenas trincheiras — como um livro impresso, uma fotografia que dure, ou um olhar que ainda saiba contemplar em vez de apenas consumir.

Em um tempo onde imagens evaporam no deslizar de dedos na tela e a efemeridade impera, o que te motivou a lançar um livro impresso em 2025?

A vontade de nadar contra a corrente. A vontade de mostrar que tem coisas que precisam ser permanentes. Vivemos num tempo onde tudo é consumido e descartado rapidamente — imagens, palavras, até ideias. Mas há experiências, olhares, histórias e sensibilidades que merecem repouso, tempo e presença. Um livro impresso exige outra postura de quem o vê: o toque, o peso, o silêncio ao redor da imagem. Ele se opõe ao ritmo da rolagem infinita. A fotografia, para mim, não é só registro — é memória sensível, é testemunho. E há memórias que não podem se dissolver tão rapidamente. Elas precisam resistir ao tempo. Essa permanência, nesse mundo efêmero, é um ato de resistência e de cuidado. O livro é meu modo de ancorar o que importa, mesmo quando tudo ao redor tenta flutuar e desaparecer.

Muitos dos seus registros são em P&B. O que mais te atrai na fotografia preto-e-branco?

O que mais me atrai na fotografia em preto e branco é o foco. Não o da câmera, mas o foco interno que se exige pra criar uma imagem monocromática com impacto. Venho do tempo do filme, e como nunca tive grana sobrando, eu precisava ter certeza de que estava fotografando certo — cada clique contava. Quando chegou a era digital, mantive esse princípio: clicar pouco, mas com intenção. A fotografia em preto e branco tem alma, tem peso. Às vezes, tanto peso que pode ser difícil de absorver.

Como foi o processo de edição até chegar no recorte que acabou entrando no livro?

Meu objetivo sempre foi fazer um livro de fotografia — e não um livro de surf. Eu queria que a fotografia falasse por si, então o primeiro passo na edição foi eliminar o foco na ação para priorizar a documentação de uma cultura que, aos meus olhos, está desaparecendo. Pode parecer uma visão pessimista, mas eu a vejo como realista.

Nos primeiros cortes, ainda não havia uma divisão clara de temas ou ganchos, e o resultado parecia sem peso, sem direção. Foi quando pedi ajuda ao meu amigo Adrian Kojin, que tem décadas de experiência em editoração. Ele passou uma hora no telefone comigo — me esculachando no melhor sentido — e me deu um norte. A partir daí, tudo começou a fazer sentido. O livro começa com uma imagem simbólica, o princípio do fim: Gabriel Medina sendo cuspido pela baforada de Pipeline, no dia em que conquistou seu primeiro título mundial. Um Havaí pesado e poético. Depois, voltamos à gênese do surf, com registros dos caballitos de totora em Huanchaco, no Peru. Seguimos para Santos, minha casa, onde o surf nasceu no Brasil, com imagens dos irmãos Thomas e Margot Rittscher feitas em 2005. A sequência passa por surfistas icônicos, personalidades, música, Califórnia, skate, Austrália e Maldivas.

Gabriel Medina sendo expelido pelo bafo de Pipeline (2014)

Pra quem não vive o universo do surf, o livro pode parecer desconexo, como se faltasse um fio condutor. Mas, na verdade, tudo está interligado. Não é apenas uma coletânea de fotos da minha trajetória — é um testemunho da transformação de uma cultura. E, acima de tudo, uma defesa de que a arte deve estar acima do esporte.

Esses dias vi que você postou uma linda homenagem para o Sebastião Salgado e falou sobre a grande influência da obra dele em seu trabalho. Fale um pouco sobre essa relação.

Ainda não processei a morte dele. Sinto um profundo pesar de não ter me esforçado pra conhecê-lo pessoalmente. Provavelmente vou dar a mesma resposta que a maioria dos fotógrafos no mundo, mas depois que eu vi as fotos dele, minha visão da fotografia mudou. Existe o antes e o depois. Meu trabalho em preto e branco vem dele. Também teve Henri Cartier-Bresson, mas o peso e a força do trabalho do Salgado é a base do que eu faço. Eu me “traí” um pouco por fotografar colorido em algumas ocasiões, mas minha alma é monocromática.

Waimea Bay, North Shore, Oahu, Havaí (2014)

Você também tem atuado no audiovisual, certo? Existe algum projeto de filme no universo do surf também? Ou algum tipo de extensão do projeto do livro?

Estou começando um projeto de um filme com o mesmo tema do livro. Ainda estou tentando achar exatamente o norte do projeto, mas está em andamento. Não será um filme de ação, ou seja, não tenho a mínima vontade de mostrar o lado de performance, mas assim como o livro, será um mesclado documental da cena atual do surf.


O Lançamento do livro Essentia Fluctus Imago de Jair Bortoleto acontece amanhã (28), a partir das 19h30, no Bar do Beco na Vila Madalena em São Paulo. No evento, além da presença do fotógrafo assinando livros, também haverão prints de fotos disponíveis em edição limitada.


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