Entre a direção criativa e o ofício de moda de Rafael Silva
O tempero da moda brasileira e como é equilibrar funções dentro da indústria

Tem sido cada vez mais comum ver no mundo da moda, principalmente internacional, profissionais que assumem a dupla função de trabalhar em marcas próprias e para grifes tradicionais. Jonathan Anderson tem a JW Anderson mas assina a Dior, Demna Gvasalia atuou por anos como Diretor na Balenciaga enquanto tocava a Vetements, isso pra citar só alguns exemplos. Aqui no Brasil, isso rola muito mais por necessidade, já que criar uma marca independente, do zero, é trabalhoso e custa caro, então assumir funções na indústria se torna o caminho menos difícil.
Um exemplo desse caminho é o Rafael Silva, Diretor Criativo da Spice e Designer de Produto na Class. Convidamos o cara para um papo sobre sua trajetória, moda brasileira, conciliação das funções e por fim, para falar sobre a nova coleção da Spice, que chega hoje nas ruas.

Vamos do começo: quando a moda se apresentou para você?
Acho que dessa forma de lidar, como alguém que cria moda, foi em 2015, 2016. Eu já fazia uniformes de futebol para os times da escola, e eu estava muito focado em fazer Design Gráfico, mas acabei querendo abrir uma marca na época, porque queria grana pra uma viagem, e aí eu falei “mano, eu vou começar a vender camiseta.”
Eu lembro muito bem do meu pai, ele comprava várias camisetas de futebol lisas, bordava o escudo do time da várzea dele, que era um time da igreja, competia vários campeonatos da várzea. E eu lembro claramente dele fazendo esse processo de pegar camisetas esportivas e transformar em uniforme de futebol e era o uniforme mais chique que tinha, tá ligado? E eu acho que eu peguei muito disso. Isso com certeza me empurrou para a área de criação de produto.
Essa marca que você criou quando tinha 17, já era a Spice?
A marca na época chamava Blue Spice Crew, e era para fazer com meus amigos, mas acabou que só eu fazia tudo. E aí fiz uma camiseta, era preta, básica, que eu comprei já pronta e estampei a arte de uma menina com um top azul, levantando a camiseta. Um pouco erótico, mas a parte de baixo era só esqueleto, não tinha corpo.
E aí isso foi proibido na escola, porque minha escola era muito religiosa. E aí foi banida, quem usasse a camiseta ia pra detenção - foi aí que fez sucesso. Quando baniu a camiseta, começou a vender para caramba, começou a vender em outras escolas. A partir disso eu fiz uma segunda camiseta que já era só Spice, já tinha cortado o Blue e o Crew do nome. E dali em diante não parou.

Como alguém que teve a oportunidade de estudar fora, qual a principal diferença que você vê, quanto ao consumo de moda entre Europa e Brasil?
Eu acho que tem alguns paralelos. Por exemplo, na Faria Lima você vai ver o cara do coletinho. Em Milão tem o Bucconer, que é o cara que estuda na Bocconi, a maior escola de negócios da Itália. E ele se veste igual o cara da Faria Lima, mas o cara da Bucconi sabe as marcas, ele flagra, ele usa um sapato diferenciado. Acho que o consumo é muito mais consciente. O nosso consumo é muito mais, tipo, “vi o tênis no pé do meu amigo, achei foda eu quero igual”. Ou eu vi o Ronaldinho com a Tiempo e quero também.
É usar a roupa para pertencer. Hoje em dia eu vejo várias pessoas com réplica da Off-White e a Off-White começou em 2012, mas eu tô vendo hoje, em 2025, réplica da Off White. Tipo, você começa a ver que a gente consome o derivado do derivado.
O Brasil tem um ciclo muito diferente do consumo de moda. Lá fora você tem os early adopters, aí vai pra galera “cool”, aí vai pro mainstream, e depois vira cringe. Aqui tem 50 voltas para dar e, do nada, tem réplica em todo lugar de um produto 5 anos depois, sabe?
Mas você não acha que papel de pertencimento também faz parte da geração de símbolos para algumas comunidades?
Eu acho que a moda é um marcador social. A forma de se comunicar sem usar as palavras é a roupa. Por isso que não é só “ele usa, eu uso”, eu acho que é "todos nós usamos". Por isso que o Menzinho, que é o estereótipo do Faria Limer, deu tão certo, porque ele é um cara que não é da Faria Lima, mas que consegue passar a vibe de uma forma cômica. Beleza, tem a parte da fala ali, mas só dele estar com o coletinho e a peruca, fazer a pose, você já sabe. A roupa para mim é comunicação.


Dias de criação e pandemia em Milão
Nessa ótica de consumo, você sente que rolou uma mudança na forma que a gente consome moda hoje, se comparado a quando tu foi pra fora? O quanto da produção de conteúdo impactou nisso?
Completamente, até porque eu não fiquei direto. Nesse período de 3 anos eu ia e voltava, então eu via a densidade de informação que era apresentada através de TikTok e Instagram. Tipo, a gente foi de 2018, que tinham aqueles vídeos de "quanto custa um outfit”, para a maior alta do resell, em que muita gente que só fazia compra na ZARA e tal, falando principalmente do público masculino, na pandemia teve tempo para pensar: "mano, o que eu tô vestindo? Por que eu tô usando essa calça? Por que eu tô usando esse tênis?” Porque toda hora tinha conteúdo sobre moda.
Eu acho que uma parte muito importante dessa leitura do mercado é que até 2019 o resell mandava no streetwear, então você tinha que estar de Supreme, de Off-White, de Jordan, de Dunk, seja o que for. Quando bate a pandemia, o fluxo de vai e volta é muito mais controlado, então você começa a consumir interno. Não tinha mais aquela demanda para fazer uma Soldout, que era o evento de tênis. Tinha demanda do quê? O cliente está na casa dele, ele quer consumir algo e tinha as marcas nacionais produzindo a todo o vapor.
A Class fala, a Pace fala, todo mundo fala que, mano, a pandemia foi a mudança de chave. A The Game, que é uma das maiores lojas de streetwear, era totalmente reseller. O mercado migrou total, paramos de comprar Palace.
Quando você vai pra fora do país, seu objetivo já era construir a própria marca, ou você pretendia entrar em algum projeto existente?
O meu objetivo era fazer carreira lá fora, mas a partir do momento que bate a pandemia, eu tento trancar a faculdade e não consigo. Eu falava com meus professores sobre o mercado, e eles falavam que muitos dos amigos deles eram demitidos, da galera que não tava contratando. E geralmente quando você paga uma faculdade de moda, você não está pagando só o ensino, você está pagando para estar inserido no networking, para ter acesso aos estágios, acesso a ficar no backstage, trabalhar, fazer freela e tal. E isso não aconteceu por conta da pandemia. Na minha sala, de 30 pessoas, quatro ou cinco trabalham na indústria.
Então o meu sonho era trabalhar, estagiar e conseguir uma carreira lá, mas quando eu percebi que eu não iria ficar lá para isso, eu comecei a experimentar mais. E a partir de ali eu mudei muito a minha mente em relação ao que eu queria criar. Acho que a partir de 2022 eu comecei a reconstruir essa identidade, que antes era uma coisa muito mais caricata, jovem, adolescente, e vira uma coisa séria, tipo, “eu preciso definir a minha proposta pro mercado, eu preciso definir qual a minha estética, qual a minha mensagem, qual é o propósito da minha marca”, né? E aí vira uma coisa muito mais séria para mim.



Pré-Coleção 2022 | Fotos: Florence Bodini
Hoje você atua na Class e na Spice. Como isso funciona pra você?
Na minha cabeça é um pouco mais complexo, mas no meu dia a dia meu modus operandi é muito focado em horário, então das 9h às 17h é Class. Óbvio, alguns dias eu preciso fazer algumas coisas, então eu mando um Uber para lá, para cá, mas criativamente, na parte de processos, é 100% focado em Class, e no restante é Spice. Então, sábado, domingo, das 17h às 00h, tem que deixar temperar (risos).
Agora, criativamente é difícil porque tem muitos paralelos entre Spice e Class. É muito fácil eu pegar algo que é Spice e fazer virar Class, e vice-versa. Então o que eu tento fazer sempre é lembrar que eu não sou Diretor Criativo na Class. Até o mês passado eu era Coordenador de Desenvolvimento de Produto. Então eu coordenava dois assistentes de estilo, coordenava a agenda dos Diretores Criativos, coordenava várias coisas. E hoje eu saí desse cargo para focar só na parte de estilo, só em design de produto. Senti que tinha muita demanda e não é o meu foco. Meu foco, minha especialidade, é desenvolvimento de produto. Então, criativamente, eu penso como estilista dentro da Class, eu penso como alguém que só tem que materializar as ideias do Eric ou da Rafa.
Então ele me passa o moodboard e o meu trabalho é fazer a foto de uma sala virar uma jaqueta, a foto de um carro virar uma jaqueta. E isso é uma coisa que eu só consigo fazer bem porque o Eric me deu a abertura de entender o que é a Class com os meus olhos. No começo, eu tive que absorver totalmente o ecossistema deles, eu fiquei uns três meses focado nisso, absorvi os conceitos, as regras…
Então, a partir do momento que eu consigo entender o que ele quer, eu crio o que ele quer. E dentro da Spice eu desenvolvo, eu mudo a minha mentalidade. Eu penso: "Agora, o que eu posso transformar desse moodboard, que eu montei, em produto comercial? Porque hoje, mesmo que eu tenha as coisas mais experimentais, o comercial é necessário para que eu possa estruturar a empresa, profissionalizar, e não ser mais um projeto pequeno, lateral, porque para mim a Spice tem um potencial enorme.
Elástico 1 por Spice
Pensando que hoje, com uma maior democratização da moda e dos conceitos, ou mesmo com tanta gente criando marca, qual a importância de uma formação técnica?
Essa pergunta é muito boa. Olhando pro macro, eu acho que em qualquer empresa, em qualquer startup de moda ou marca que for criada, eu não acho que é necessário diploma. Eu não acho que é o diploma que te dá o knowhow, porque eu saí de Milão com diploma na mão e tenho absoluta certeza que nos meus anos aqui eu já aprendi muito mais. Obrigado Binha e Cido. Eu acho que na moda não dá para você querer criar da noite pro dia. Você tem que ser obcecado, você tem que entender tudo, e eu vejo muito no Eric e na Rafa isso. Eles tiveram a visão de entender que havia uma necessidade no mercado, a obsessão de ir atrás de criar algo novo. E é uma obsessão real. Você tem que ser maluco para pegar e chamar sua tia para costurar boné na laje de casa. E acho que é isso que é o diferencial da moda nacional, as pessoas que fazem acontecer, são marcas que saem da obsessão.
A Class é feita por pessoas que são obcecadas pelo próprio produto, elas acreditam que o próprio produto é o melhor produto possível. E eu vejo isso na Pace, eu vejo isso na Piet, eu vejo isso no mercado. A obsessão do “streetwear" muitas vezes me dá mais prazer do que pegar uma boutique brasileira. E eu acho que é isso que difere alguém foda, alguém que traz inovação de alguém OK. Então eu acho que para uma pessoa jovem, que vai começar agora, eu super recomendaria ir atrás da parte técnica e se descobrir nisso, ir pra faculdade, mas eu não acho que é o primordial. Eu aprendi mais modelagem desmontando jaqueta do que na minha aula de modelagem numa faculdade cara para cacete.
O que a Quadro (Creations) traz de inovação, por exemplo, é muito difícil de competir. Os caras tem molde lá com 30 peças de recorte. Tipo, eu acho que tem espaço para todo mundo, só que você tem que ser honesto consigo mesmo, com o que você está entregando.


Falando em obsessão, como foi o processo da atual coleção da Spice? Quanto tempo levou?
Acho que foi um mês de design, um mês de pilotagem, dois meses de produção. E eu estou muito feliz porque foi um processo de eu ir treinando meu estagiário a fazer ficha técnica e ao mesmo tempo fazer todos os outros papéis da empresa. Desde o ano passado, quando eu lancei na Guadalupe, que foi o primeiro lojista que eu voltei a vender, eu falei: "Mano, agora eu preciso vender para mais lojas, não dá para eu ficar num lugar só, eu preciso vender um volume maior, eu preciso estar presente, preciso estar na rua". E um dos primeiros passos é esse, vender essa coleção agora.
Então eu montei vários mockups no CHATGPT, as fotos das peças que eu queria desenvolver. Eu não tinha nada desenvolvido de piloto, vendi a coleção e aí eu comecei a desenvolver. Então, tipo, eu vendi o mockup sem ter piloto, sem nada (risos). Porque eu tinha certeza de que eu conseguia fazer igual o mockup. E aí eu vendi as peças, recebi os pedidos, e fui para cima. Peguei empréstimo, comprei os tecidos, começamos a pilotar, comprei a produção, correria. Então eu tô muito orgulhoso porque é uma correria que deu certo, a qualidade dessa vez tá muito foda. A gente tá trabalhando com alfaiataria, então traz uma manualidade muito maior para as peças, traz um outro toque. Nossas camisetas são com costura em barra invisível, tipo barra de calça de alfaiataria. A gente tá querendo trazer o refinado pro dia a dia.






Modelagem 3D de peças para Class, feitas por Rafael Silva
Legal saber que está feliz com o resultado. É parte importante do processo de colocar algo no mundo, né?
Sendo bem honesto, em 2023 eu lancei uma coleção com esse mesmo nome, que é Selected Garments & Accessories. E eu tinha acabado de voltar de Milão, estava meio perdido ainda. Eu estava estagiando na Anacê, e fiz a coleção pensando que ia vender bem, pensando em números, e não teve um resultado muito legal. E aí essas últimas duas coleções eu falei: "vou fazer o que eu quero, o que eu consigo propor para mim mesmo, que eu vou usar." E aí eu peguei e fiz essa coleção pensando nisso, porque a Selected Garments & Accessories é literalmente isso, uma seleção de vestuário e acessórios. E essa seleção é para você usar no seu dia a dia. É uma curadoria de roupas que eu gosto e eu acho que todo mundo vai gostar. Não todo mundo, mas as pessoas vão gostar. Então, foi um processo muito foda fazer essa coleção, foi materializar peças que eu achei que eu não conseguiria fazer. Foi muita pesquisa.
E onde você pesquisa geralmente? Onde fica o ouro?
Um fun fact que eu acho que talvez seja importante, mas um dos maiores motivos de eu me envolver com moda, design gráfico, estética, arte, o que seja, foi o Tumblr. Desde antes de ter uma marca, eu tinha um Tumblr onde eu repostava de tudo, muito focado em arte, produto... E até hoje eu uso o meu Tumblr como uma das minhas maiores fontes de pesquisa, porque diferente do Pinterest, onde tudo já vem moldado para você e é fácil, o Tumblr te obriga a treinar o seu olho a saber quando algo é aquilo que você quer. E muito do trabalho que eu faço para Spice, eu faço em parceria com uma galera de garimpo também. Então direto chega peça para a Hand to Hand, ou eles vêem umas peças que falam: "Mano, isso aqui é a cara do Rafa. vou mandar para, tipo, vou ver se ele quer ou se ele quer tirar foto para ele usar de base de pesquisa.






Selected Garments & Accessories 2025 | Fotos: Larissa Cortez
E qual é a expectativa pra coleção agora?
A expectativa é alta porque o modelo é o Yuri Redicopa. A gente fechou com ele de modelo e ele conseguiu traduzir exatamente o que eu queria desde o início. Era ele que eu queria de capa, de estrela da campanha. A Bianca, que faz o casting, ela falou: “que rosto que você quer pras fotos?” Eu falei: "meu, eu preciso de alguém tipo Yuri". E aí acabou que a gente, já tinha descartado a opção porque passou um mês, ele não tinha respondido, a gente tava com outro cara fechado, o cara cancelou, deu uma semana, o Yuri respondeu, e foi muito foda trabalhar com ele. O Yuri é muito educado, muito gente fina. E eu tô muito feliz porque eu chamei a Larissa Cortez para ser fotógrafa, então as fotos de editorial estão absurdas, estão no nível que a Spice tem que estar.