Emicida Racional VL 2 - Mesmas Cores & Mesmos Valores

Rapper volta as sonoridades iniciais com referências a Racionais MC, mas que são apenas a ponta do iceberg

Emicida Racional VL 2 - Mesmas Cores & Mesmos Valores

Certas coisas parecem que são intocáveis, para se admirar dentro de uma redoma, ter como referência, mas nunca efetivamente pôr a mão e manipular. Por outro lado, eu defendo que aqueles que têm a coragem de reinterpretá-las, são tão visionários quanto quem criou a peça original.

O último trabalho de Emicida é um desses desafios, já que o rapper decidiu mexer na obra de um dos maiores grupos da música brasileira, os Racionais MC’s. Em uma tentativa de voltar ao início, olhar para as raízes e referências que o moldaram, ele mergulha em sua própria história e busca no beats e rimas de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay o sentido de seu fazer artístico. O resultado é Emicida Racional VL 2 - Mesmas Cores & Mesmos Valores, disco que chega hoje às plataformas.

O anúncio foi de surpresa, quando há algumas semanas Emicida se reuniu com parceiro de pickups, DJ Nyack, onde juntos resgataram os vulgos da época das batalhas de rima e lançaram a mixtape Emicida Racional VL 3 - As aventuras de DJ Relíquia e LRX, na qual reinterpretaram bases de clássicos dos racionais com letras de músicas já lançadas pelo rapper da Zona Norte. Chegamos a falar sobre isso aqui na ISMO, e na época não havia anúncio oficial de um novo trabalho original, mas as dicas estavam todas lá. Emicida apareceu em algumas batalhas de rima pela cidade, como na Batalha da Matriz e na Batalha da Aldeia, se conectando com jovens que o veem como referência, e com ele próprio. A frase “Quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo” já dizia tudo.

Capa assinada por Walter Firmo, mestre das cores na fotografia

Pois bem, depois de alguns adiamentos, audições fechadas, dicas em redes sociais e entrevistas para a imprensa, Mesmas Cores & Mesmos Valores desvenda o mistério de qual seria o Emicida que os ouvintes encontrariam. Desde Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa… (2015), o artista não lançava um disco de rap mesmo, já que em AmarElo (2019) ele escolheu flertar com o pop e alcançar novos públicos. Mas claro que se a proposta do novo disco tinha como base os Racionais, mais especificamente o disco de 2014, dificilmente sairia alguma coisa diferente do nosso bom e velho hip hop.

O novo álbum é um mergulho no íntimo do Leandro Roque, que nos tempos mais recentes se viu em destaque não pelas rimas, mas por tristes notícias como a da disputa com o irmão, Fioti, pelo futuro da Laboratório Fantasma, e pouco tempo depois pelo falecimento de sua mãe, Dona Jacira. Com isso, transformou a dor em som e ofereceu uma homenagem aos seus grandes ídolos, na música e na vida. 

A primeira faixa, Bom dia né gente? (ou saudade em modo maior), costura áudios de sua mãe por mais de 6 minutos. São mensagens de afeto, preocupação, cuidado, amor e ensino. Em entrevista cedida para Pedro Bial, Emicida diz que começou a colecionar os áudios com a intenção de fazer um rap, interpolando as palavras da mãe em rimas, como uma piada que a faria rir e se irritar, já que ela, inicialmente, não gostava do caminho que o filho escolheu para viver.

Com sua morte, a faixa se tornou homenagem, e abre o disco com o início de tudo mesmo, a que gera a vida. E ao final, o que se ouve são dois minutos de choro, cru, seco, como o luto é. O que parece uma quebra de expectativa, de um rap bruto feito por um homem negro e que não chora, na verdade mostra a sensibilidade fundamental para colocar a tinta da caneta no papel.

Racionais MC's - Cores & Valores (2014)

A partir disso o que se vê é uma costura de histórias, sentimentos e referências. Tim Maia, Moacir Santos, Cassiano, Sandra de Sá e, claro, Racionais, ajudam a construir a sonoridade que também resgata trabalhos antigos, como as faixas Boa Esperança e Levanta e Anda, lindamente orquestradas e recortadas.

Em Finado neguim memo?, assim como Mano Brown, Emicida brinca com as proparoxítonas e mostra através da rima o porque é, além de MC, um mago das palavras, justificando o convite para lecionar na Universidade de Coimbra, mostrando para os criadores da língua que um moleque da periferia da Zona Norte domina o português como poucos.

A faixa A mema praça, relembra o caos que foi a apresentação dos Racionais durante a Virada Cultural de 2007, que proibiu shows do grupo na cidade, assim como outros de rap em geral pelo centro de São Paulo. O episódio, que já havia sido musicado em A praça , aqui ganha a perspectiva do público, em versos também de Projota e Rashid, que amassa na participação.

O grupo voltou ao palco da Virada Cultural só em 2013

Impressiona também o trabalho feito em Quanto vale o show memo?, faixa escolhida para ser o primeiro single do álbum e que funciona como continuidade da original, na qual Mano Brown traz referências de sua vida entre 1983 e 1987. Aqui, a história começa em 1988, centenário da abolição da escravatura, e vai até 2003, ano em que Emicida completou 18 anos. As duas décadas de história ganharam complemento visual em clipe animado assinado por Pedro Conti e Diego Maia.

Já o lado mais fã de Emicida aparece em Us memo preto zica, que reorganiza versos dos Racionais para formar novas rimas e novos sentidos, agora em samba e com arranjos de Amaro Freitas e Henrique Albino. A faixa é a única com refrão, entoado pelas filhas do artista, e dá sentido para o termo “saber de cor”, afinal, só que tem no coração todas as letras da discografia dos Racionais poderia fazer uma faixa como essa. Uma surra de referência.

Ao final, a audição das 10 faixas podem e devem durar mais do que só os 42 minutos do disco. “Onde está sua mente agora?”, ele pergunta, como já antecipando que talvez estejamos ouvindo o álbum fazendo outras coisas, seja lavando louça, andando de skate, ou trabalhando.

Em um momento em que poucas coisas fazemos com presença total, sem distrações e a necessidade de estímulos complementares, Emicida nos convida a experienciar o álbum na totalidade e só. Como desafio, encerra o disco com uma faixa de 10 minutos, em som ambiente que registra uma festa de aniversário ao ar livre. Vozes ao fundo cantando parabéns, se misturam ao som do vento e passarinhos cantando, coisa que muita gente pode acabar optando por pular e dificilmente vai compor playlists, mas que, para quem ouviu o disco de cabo a rabo, entende a importância desse momento.

Emicida Racional VL 2 - Mesmas Cores & Mesmos Valores é um disco para os fãs dele mas também do rap e da música negra brasileira. Talvez seja o mais experimental de sua carreira, assim como foi o Cores & Valores para os Racionais MC’s, álbum que até hoje muita gente ainda não entendeu, e talvez por isso tenha sido a escolha de Emicida. Agora o que nos resta, além de ouvir o disco, é aguardar a conclusão dessa trilogia e torcer para a qualidade se manter em alto nível.


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