É Pico: skate e cidade também para baixinhos

Uma entrevista com os autores do livro "É Pico" discutindo literatura infantil, skate, arte, arquitetura e o direito à cidade

É Pico: skate e cidade também para baixinhos
Mariana Zanetti e Murilo Romão

O que acontece quando duas pessoas de universos pouco afins resolvem se conectar? No caso do Murilo Romão, skatista e realizador audiovisual, e da Mariana Zanetti, ilustradora e arquiteta de formação, nasceu o “É Pico”, livro ilustrado que inspira adultos e crianças a conhecerem e explorarem os espaços urbanos por meio do skate, mas não só. 

O projeto, com lançamento previsto para dia 09/08, é um dos poucos a abordar a temática dessa forma aqui no Brasil, mesclando as ilustrações de Mariana, feitas sobre frames captados pelas câmeras de Murilo, conhecido pelos vídeos do coletivo audiovisual Flanantes. O resultado é um trabalho que se comunica com todo mundo que olha para cidade para além dos espaços pré-definidos pelos poderes públicos e autoridades, e traz a reflexão sobre como reinterpretá-los.

Convidei Murilo e Mari para um papo na Livraria Ponta de Lança, no centro de São Paulo, para saber mais sobre o livro, ouvir histórias do processo de produção e entender qual é a cidade que os dois autores desejam ver, viver e construir.

Só gente de peso envolvida

Para começar, de quem foi a ideia do livro?

Mariana: Foi nossa! (risos)

Murilo: Eu conheci a Mari porque ela fez um livro que é do Jacaré Fujão, e aí tem uma parte do livro que tem o Memorial (do Vale do Anhangabaú). O Kalil (Ricardo), que estudava na Escola da Cidade na época, viu no Instagram que tinha coisa do Memorial e me falou. Aí eu comprei, elas deram autógrafo e tal, e eu falei um pouco para Mari do Vale.

Mariana: Eu posso contar como foi antes disso. Um amigo que era skatista fez um grande favor de me mandar o vídeo do Murilo sobre o Vale, quando eu estava fazendo o livro do Jacaré, que era um livro sobre o centro histórico de São Paulo para crianças. Só do triângulo (histórico de São Paulo) e tinha o Vale do Anhangabaú. Era na pandemia, estava tudo em reforma e eu não sabia, estava com um tapume. Eu tive que desenhar vendo imagens do Google Maps. Já no fim do livro a gente resolveu dar um rolê, eu, a editora e a escritora do livro, e a gente viu que tinha essa arquibancada.

E daí eu falei "bom, mas o livro está praticamente pronto, gente, acho que a gente desencana". Mas por sorte, esse amigo skatista mandou o vídeo que o Romão tinha feito, e foi "nossa, é incrível" porque é um livro de arquitetura, né? Tinha os monumentos, os edifícios... e achei que o memorial tinha que ser um dos pontos descritos no livro, então entrou na ilustração.

Na divulgação do livro no Instagram esse moleque aqui (aponta para o Romão) me escreve "olha que legal, o (Marcelo) Formiga!" (que estava retratado na ilustração) em um post meu. E pensei: "nossa, que legal que reconheceu" porque eu não falei nada. Daí ele apareceu no lançamento e a gente ficou amigo. E depois me apresentou pro Formiga.

Murilo: Aí a gente levou o livro do Jacaré para o Formiga. Desde lá a gente começou a falar "pô, a gente podia fazer alguma coisa de skate". Aí eu fui comprar o livro da Mari e da Sabrina e a gente começou a conversar depois disso.

Mariana: É, na verdade o que aconteceu é que a gente começou a se seguir, eu comecei a ver o Murilo circulando pela cidade por causa do skate. E assim gente, eu estou aqui, mas não sei nada de skate (risos). 

Isso é uma pergunta que eu ia fazer mais para frente, mas pode ser agora. Você não sabia nada de skate? 

Mariana: Não, eu não sabia. Foi justamente por causa desse vídeo que abriu um mundinho assim, e o skate não é só andar de skate. Ignorante total, não sabia nada. Então eu comecei a seguir o Murilo e eu o via no Instagram circulando por lugares mil por causa do skate, e isso me interessou do ponto de vista urbano mesmo. Você acessa a cidade de um outro jeito, através do skate, é outra forma. Tem várias formas de usar a cidade, de acessar a cidade. Eu acho que são mapas diferentes que as pessoas têm. E daí eu fiquei pensando que a gente podia fazer um livro que falasse de cidade, skate, dessas conexões, esses caminhos que o skate faz. Isso me interessou muito. 

Que é uma coisa que o Murilo aborda muito nos vídeos dos Flanantes, né?!

Murilo: Sim, essa coisa de direito a cidade e também os temas que a gente pega ali. E nessa época que a gente começou a se seguir, acho, eu estava indo muito para Zona Leste, aqueles rolês de Ermelino (Ocupação Cultural Mateus Santos). Aí ela foi vendo isso, que eu ia para lá e para cá toda hora, e centro e não sei quê... E aí a gente começou a trocar essa ideia de fazer um livro. 

Traços iniciais de uma das ilustrações feitas pela Mariana

Qual foi a ideia inicial?

Mariana: A gente pensou em uma personagem... Eu comecei a escrever uma historinha, porque a gente precisava começar e estávamos só nas ideias. Aí eu falei "vou começar a escrever uma coisa aqui”. E escrevi sobre uma menina, e dei para ele continuar. Daí ele continuou na vibe dele.

Murilo: Mais de sensação assim, uma coisa mais filosófica do que você sente andando de skate na cidade, né?

Mariana: E quando a gente foi mostrar para Mell, que é editora da Baião, um dia antes da reunião eu resolvi pegar aquele texto e cortei tudo o que eu tinha escrito, testei mudar o texto para primeira pessoa e assumimos que era um texto do Murilo. A partir de então, ele escreveu em primeira pessoa e mudou totalmente da ideia inicial, ficou um texto só do Murilo.

Como era essa narrativa inicial do livro?

Murilo: Era uma menininha que estava se descobrindo através do skate.

Mariana: E na verdade eu estava querendo focar no Vale. Ela ia passar pelo Vale e descobrir, sabe? 

Murilo: A gente foi indo para esse lado mais de sensação. Aí eu escrevi bastante coisa numa viagem para Juiz de Fora, acho, no busão assim, já fui no celular escrevendo um monte de coisas.

Mariana: E ganhou a cara do Murilo, foi um depoimento pessoal, tanto que por isso que foi para os vídeos também, né? 

Murilo: E aí a Mari foi pegando os frames, fazendo em cima…

Mariana: Isso foi depois da reunião com o pessoal da editora, e lá a gente decidiu que ia ser o tamanho da proporção do vídeo. Foi uma ideia que surgiu na reunião.

Murilo: E o texto também, que é amarelinho por causa disso, como se fossem legendas. 

Entendi, então realmente era um livro mais infantil

Mariana: Era para ser um livro ilustrado. Eu sempre acho que livro infantil é para todos os públicos, um livro bom é para todas as idades. Todo livro infantil deveria ser, né? Eu acho que tem que ser interessante para todo mundo.

E rolou ensinar um pouco sobre skate?

Murilo: Eu falava bastante dessa parada, da mancha da vela. Ela um dia ia no Museu do Ipiranga e eu falei "Mari, presta atenção nos degraus, tá tudo preto, tudo vela de skate aí" 

Mariana: É uma alfabetização também, né? Porque a partir do momento que eu sei disso, eu olho e já sei "ah, ó, isso aqui é um pico de skate".

Romão: E tem a questão do título também, que a princípio ia chamar Pedaço Flutuante e depois de muita conversa... A gente tava com dificuldade no título. A Mari queria "Flanantes" aí eu falei "Mari, o Flanantes faz vídeo, o livro não pode chamar Flanantes". Aí a gente começou a pensar num monte de nomes, e aí "Pedaços Flutuante" os dois gostaram. Só que a galera da editora não curtiu muito, achou muito viajado. Aí virou Cidade dos Picos, mas era uma tese do Gian Machado. Aí a Laís, que é assistente editorial, ela que criou isso, ela que falou: "e se for 'É Pico?". Aí a gente gostou.

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Dias de laboratório pelos picos de skate de São Paulo

Você já publicou um livro antes, Murilo. Teve muita diferença entre fazer o Vale e o É Pico?

Murilo: Teve porque aquele tinha uma história inteira para contar com base em fatos, né? Não era uma coisa tão lúdica, tão aberta, então era meio que contar a história do Vale como lugar de skate desde os anos 90 e pegar depoimento de quem participou.

Então é uma parada mais de memória. Esse foi meio do zero, né? E é bem simples, porque é como se fossem uns pensamentos, não tem que fazer sentido, uma coisa meio a brisa da cidade mesmo, de estar andando.

O outro foi muito mais trabalhoso no sentido de juntar tanta gente. Eu tive que transcrever uma pá de depoimentos, falar com a galera, pedir autorização, pedir foto... Foi muito difícil. Foi na pandemia, então eu estava com tempo. Esse aqui foi dar uma viajada, o trabalho foi da Mari, que desenhou tudo (risos). Eu só fiquei pensando nas sensações de skate. Tem umas frases também que é coisa de livro, tipo, tem uma hora que fala "parecia que estava perdendo tempo, mas estava ganhando espaço", que é do vídeo Zonzo, lá do (Francesco) Careri.

Os livros VALE TXT E VALE IMG, organizados por Murilo Romão

Sei que muita gente leva o skate a sério, mas para mim o skate no fim do dia é um brinquedo. Como é pegar essa visão, da cultura e da cidade e colocar em um livro para crianças?

Murilo: É muito louco porque é isso que você falou, é brinquedo mesmo. Esse é o maior sentido do skate. Quem pensa em performance, em nível, vai chegar uma hora que não vai dar mais para dar as manobras difíceis. Então o que vai sobrar é essa parte da brincadeira, né, que é só a sensação de embalar mesmo, e já está muito bom. 

Você pensa nisso, tipo, ficar mais velho e não conseguir mais manobrar?

Murilo: Ah, lógico! Não vai ser para sempre as trick, vai acabar um dia. Aí vai sobrar só os embalinhos. Descer uma ladeira…

Mas voltando, é uma parada que é para molecada nova mesmo. O skate está muito sério, tem gente que começa a andar pensando que vai ser campeão, que vai viver da coisa e não é essa ideia. A ideia é aproveitar o que ele te oferece como brinquedo mesmo e fazer outras coisas da vida. A galera fica muito bitolada. E é um incentivo a galera ir para rua também, né? O livro é um convite para sair para rua, tá ligado?

Mariana: E abrir espaços, eu acho. Espaços que não estão destinados ao que a gente gostaria que eles estivessem, sabe? É forçar os espaços. Tipo, sei lá, vai e constrói um jardim no meio da calçada, que nem eu fiz ali. A gente tem que ir forçando as políticas públicas. Eu acho que o skate tem muito isso, sabe, de ocupar espaços que seriam proibidos. Mas vocês vão forçando a abrir esses espaços, e eu acho importante também para criança, passar essa ideia da conquista dos espaços, de não se conformar. 

Murilo: E é um questionamento que a gente sempre buscou também nos vídeos, tipo, sempre que vinha a GCM ou a polícia, não falar que vai parar na hora, falar "mas por que a gente não pode usar aqui?" Tinha muita confusão na época da Roosevelt depois da reforma, e a gente sempre tentou conversar.

Mariana: Isso me lembra do Vale também. Parece que são lugares que estão subutilizados, estão vazios, mas não é, a gente acha que tá vazio, mas os skatistas estão lá. Esses espaços, tipo, a Roosevelt antes ninguém ia, só vocês. Eu lembro da gente na FAU, né, "ah, uma praça elevada nunca vai dar certo", falavam, mas vocês estavam lá, ocupando.

Todo lugar é pico?

Mari, seus livros costumam envolver arquitetura na temática?

Mariana: Eu particularmente penso que todos os meus livros, não todos, mas muitos pensam a cidade. Tipo, eu tenho um livro que chama Como Vou?, que é sobre como ir pela cidade. Enfim, de alguma forma eu sou arquiteta e isso está presente. E uma coisa que sempre está presente nos meus livros de alguma forma, é o cinema e o audiovisual.

Tenho uma coleção de flipbooks, que é um cinema de bolso. Daí tem um livro que eu fiz, O Leão e a Estrela, que é meio inspirado em animação, em cinema silencioso, então é como se fosse um filme mudo. E quando a gente decidiu esse formato de vídeo falei “bom, mais um livro meu em que o audiovisual vai aparecer de alguma forma".

E no lado mais acadêmico da coisa, você sente que novas formas de ocupar a cidade estão presentes nos estudos?

Mariana: Então, eu não sou muito por dentro do mundo acadêmico, mas lembro de quando tive uma conversa com um amigo doutorando em urbanismo, porque a gente fez um jardim na minha calçada - nós abrimos a calçada e plantamos árvores - e é uma confusão, sempre tem os haters, e daí alguém me escreveu falando no Instagram, "você tem que usar as políticas públicas!". E esse meu amigo estava falando que o livro da Raquel Rolnik é justamente sobre como as políticas públicas muitas vezes são criadas para privilegiar poucas pessoas e que nós temos de forçar a mudança delas muitas vezes. Eu acredito que o skate tem a ver com isso, com forçar mudanças. Não sei se foi pensado pelos urbanistas, não vejo os urbanistas falando de skate. Se bem que o (Rafael) Murolo é arquiteto e ele fez bastante coisa já em favor do skate.

Murilo: Se não fosse ele não teria o memorial do jeito que foi. Ele resgatou as plantas…

Mariana: Então tem que ser um arquiteto skatista, para pessoa se ligar. 

Murilo: Mas podem usar contra o skate também. Eles podem estudar o que gostam para fazer o contrário disso, o que eu acho que rola já hoje em dia. Um anti-skate, tipo ”ah, eles gostam de chão liso, vamos fazer o chão (emula um barulho de pedra).

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Algumas imagens que foram usadas como base para as ilustrações da Mariana

Pensando nisso de forçar, o próprio Memorial do Vale do Anhangabaú foi uma conquista feita depois de muita cobrança, né?

Mariana: É uma conquista porque teve uma perda, porque teve aquela reforma sem nenhuma consulta pública. E essa concessão horrorosa, enfim. Então na verdade é uma conquista perto de tudo que vocês iam perder. 

Murilo: Recuperou alguma coisinha ali porque de resto o Vale é tudo vazio e o memorial é a única parte que tem uma galera. O centrão tá bizarro! Os frames que a Mari pegou são de 2016 a 2020, era uma outra cidade. Já mudou muito, tá péssimo o centro nos últimos anos.

Olhando o livro é legal que tem muita textura de cidade.

Mariana: Aqui (aponta para imagem) é uma coisa que o Murilo falava muito e a gente passeou um pouco para eu ir ver o skate. Eu achava que ia desenhar olhando ao vivo e no final a ideia foi olhar os frames.

Bom, para fechar, queria ouvir mais sobre o que você falou, Mari, de que um livro infantil bom é um livro para todas as idades. 

Mariana: Eu acho que um livro legal para criança é um livro que a criança vê e hoje ela sabe isso, daí ela cresce um pouco e vai entender outras coisas naquele mesmo livro, entendeu? Quando um bebê pega ele vai ver uma coisa, que pode ser o som da palavra, a textura… Quando a mesma criança tem dois anos e pega esse mesmo livro, ela vai ver outras coisas, quando ela tiver dez ela vai ver outras, entendeu? E quando é adulto vai descobrir outras coisas. Então às vezes um livro, um bom livro, eu acho que serve para todas as idades e cada um vai descobrir coisas diferentes. Quando você pega um livro que só é fofinho e que nem os pais vão achar legal, para mim isso não é um bom livro. É isso.

É pico chega dia 08/08 em livrarias pelo Brasil, mas se você está em São Paulo, dia 09/08, às 15h, tem lançamento oficial na Livraria Megafauna do Teatro Cultura Artística, onde vai rolar sessão de autógrafo com os autores e depois uma sessãozinha de skate na Praça Roosevelt. Só colar.


ISMO
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