Do sertanejo sobrou só o chapéu
O gênero mais ouvido do país é realmente o sertanejo?
O mainstream da música brasileira, ou seja, aquilo que está nas rádios, na TV, nas caixas de som dos carros e vizinhos, enfim, aquilo que ouvimos por osmose, se modifica com o tempo. Claro que o fator regionalidade também pesa, mas no geral já passamos pela MPB, rock, pop rock, pagode, e atualmente pelo sertanejo. O curioso é que, assim como existiu uma mudança e rotatividade nos sons que mais tocam no Brasil, o sertanejo como gênero também mudou, e é quase impossível não notar que há um abismo que separa a estética e a lírica do que hoje está nas ruas, da moda de viola que originou o estilo.
A mudança é tão radical que talvez o único elemento que ainda permaneça similar entre ambos é o chapéu, já que as cordas de aço do violão foram substituídas por sintetizadores, e a vida de paz no campo, pela exaltação da riqueza do agro e do luxo que ele propicia. Mais do que só um gênero musical, o sertanejo virou estilo de vida, cultura, discurso político, gerador de desejo.
Para entender o tamanho da transformação, vamos começar pelo caminho inverso e olhar para os números atuais. Nas paradas de sucesso, ou melhor, no Spotify, que funciona como um termômetro do consumo musical, o sertanejo lidera o jogo seguido por Funk, Trap e o Pop correndo por fora, dependente de artistas pontuais como Anitta e Luiza Sonza que, quando lançam algum álbum ou single, facilmente atingem o topo das listas de reproduções, mas não batem de frente com o número total de ouvintes dos demais estilos.

A tríade Funk, Trap/Rap e Sertanejo dominam o Top 50 do Spotify Brasil, com o sertanejo dominando com folga o ranking. No momento em que escrevo este texto, das 50 faixas mais ouvidas na plataforma, 31 são “sertanejas”— o uso das aspas é proposital e será melhor desenvolvido no texto — e a primeira, “P do Pecado”, pagode do Grupo Menos é Mais, tem como feat a cantora Simone Mendes, estrela do feminejo.
Duplas como Henrique & Juliano, Jorge & Mateus, Zé Neto & Cristiano, artistas solo como Gusttavo Lima e Zé Felipe, e claro, Ana Castela, artista mais ouvida no país em 2023, não rivalizam com grandes nomes do pop, mas entram na roda e contribuem com feats, ou produzem beats para incluir no som. A presença é gigante e consegue entrar na casa de boa parte dos brasileiros, mesmo que eles não queiram.
O gênero como ponte entre realidades
A música caipira, remonta aos anos 50 na figura de duplas como Tonico & Tinoco, Tião Carreiro & Pardinho e Pena Branca & Xavantinho. Nos instrumentais, a base vem da viola caipira, violão e às vezes rola a inclusão do acordeão ou um instrumento de sopro como o trompete. As letras, geralmente melancólicas, falavam da vida rural, a saudade da terra e questões sociais como a migração para centros urbanos.
É interessante perceber que o termo “caipira”, hoje erroneamente usado como ofensa, no período era identitário,e afirmava uma posição social. Longe de querer valorizar ou romantizar a pobreza, mas o gênero servia de contraponto para o estilo de vida acelerado das grandes cidades que começavam a se formar e exaltavam a simplicidade, quase como um valor moral. A natureza também era elemento muito presente nas composições e, até os anos 80, o modelo passou por poucas mudanças.




A primeira grande virada acontece principalmente nos anos 1990, quando o mercado fonográfico abre as portas para duplas como Zezé di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo, que são grandes representações dessa ruptura com a antiga geração. A base melódica até se mantém, mas a influência do country norte-americano chega chutando as portas. Guitarras, slides, distorções e pedais são incorporados no som, e a vida pacata dá lugar ao rodeio, muito impulsionado pela popularização da Festa do Peão de Barretos.
A temática romântica também sofre modificações. Cerveja gelada, mulheres e festas começam a dar as caras, enquanto a identificação com o cenário urbano aumenta. O termo “caipira” quase some, mas ainda é perceptível o saudosismo, até porque muitos dos artistas vieram de realidades rurais e chegaram a trabalhar no campo. Entender essa vivência no campo também é crucial, já que a imagem do latifundiário, hoje muito conhecida e replicada na imagem dos artistas musicais, na época era menos popular e claramente distante dos pequenos produtores.
O Furacão 2000 que atropelou o campo
Tudo isso muda radicalmente nos anos 2000 com o desenvolvimento do Sertanejo Universitário, um som muito mais urbano e criado para ser consumido, como o nome já diz, em festas de faculdade. O ritmo acelera, fica mais dançante, e a temática migra de vez para a balada, a bebida e a paquera. É nesse período que a mescla com outros gêneros fica mais evidente o que massifica o consumo.
Já o movimento popularmente nomeado como “feminejo” ganha forças e, mulheres que antes eram responsáveis somente pelas composições, agora assumem o lugar principal no palco. O empoderamento feminino traz uma nova perspectiva e subverte um pouco as relações de gênero implícitas em uma tradição muito masculina. Maiara & Maraisa, Simone & Simaria e Marília Mendonça foram nomes muito relevantes para a sofrência e abriram um espaço que há tempos era dominado por homens. Mas não esqueçamos de Inezita Barroso, As Galvão e Roberta Miranda, como exemplos que, mesmo antes da popularização do gênero, já se destacavam.

O jingle do Agronegócio
É difícil lembrar quando um termo surge, e às vezes a construção é tão bem feita que parece que sempre esteve ali. Um exemplo disso é o Agronegócio, área da economia que até pouco tempo era chamada de Campo. A propriedade rural agora é latifúndio e o pequeno produtor, responsável por abastecer a mesa da população brasileira, é confundido com o dono de terras que planta soja e milho. Pode parecer que mudei completamente de assunto, mas as transformações da música sertaneja atual estão muito alinhadas ao projeto de produção cultural do agronegócio. O gênero se tornou jingle, máquina publicitária, e o que antes era lamento rural e canção de trabalho, assumiu a posição de propaganda da riqueza e do poder.
Símbolos como as caminhonetes Mitsubishi Hilux e Dodge Ram, não são mais reconhecidas pela função de meio de transporte e robustez para o trabalho no campo, mas se tornaram símbolos de status. O maquinário agrícola se tornou elemento visual dos clipes junto à fazendas gigantescas, aviões particulares em hectares de terra. O sertanejo, em sua versão Pop-Universitária, se converteu em manifestação cultural e sonora do neoliberalismo no campo, valorizando a figura do empreendedor rural milionário e se afastando da figura do camponês que inspirava o gênero original.
O distanciamento estético do sertanejo raiz se materializa enfim no cruzamento de gêneros que também se popularizaram. O funk, principalmente em São Paulo, possui um histórico de falar de ostentação, enquanto o trap atual também foca na forma como o artista vai mostrar a sua capacidade financeira. Esses elementos são importados para o sertanejo, maquiado com botas e chapéus de couro. O gênero canibaliza a estética para se tornar relevante nas plataformas de streaming, mas também absorve o som. As batidas eletrônicas se tornam quase obrigatórias, o uso do auto-tune, o remix de canções internacionais, tudo começa a se modificar, ao ponto das canções serem tudo, menos sertanejo.
Esse hibridismo demonstra uma preocupação com a sobrevivência algorítmica e não com o gênero em si. O objetivo é criar um hit imediatamente reconhecível, com batida forte, refrão chiclete e o mínimo de elementos que remetem ao que o definiu: o canto melódico, o tema amoroso. Todo o resto é material de empréstimo.
Entendo que dentre os gêneros mais ouvidos no país, o sertanejo seria, na teoria, o mais brasileiro de todos, mas o panorama atual levanta uma questão: essa transformação contribui para o desenvolvimento de uma identidade nacional ou se aproxima da hegemonização da música de massa?
Por um lado, é possível dizer que hoje o sertanejo é a música Pop brasileira por excelência. Querendo ou não, ele incorporou a cultura do agronegócio e transformou em um produto de exportação — a piada pronta não foi pensada — cultural. A capacidade de absorver e misturar gêneros (Funk, Trap, Reggaeton, Piseiro, Pagode) pode ser lida como algo muito brasileiro, que é essa mistura cultural maluca em um caldeirão de estilos.

Por outro lado, ao se tornar tão Pop, tão padronizado pela lógica das plataformas de streaming e tão dependente de grandes estruturas de produção e financiamento do agro, o sertanejo perde seus contornos e sua autenticidade. A produção sonora plastificada e a temática da ostentação sugerem que o gênero está formatado para o consumo fácil, apagando as vozes regionais e as narrativas mais complexas que a Moda de Viola original carregava.
No final, talvez seja possível dizer que o sertanejo atual é um reflexo bem fiel do Brasil: complexo, desigual e obcecado pela imagem do sucesso e da riqueza. Se nos anos 90 serviu como ponte entre o campo e o asfalto, agora dilui sua herança em nome do hit e da playlist capa do Spotify. É difícil dizer que não há um juízo de valor aqui, mas seria mais honesto mudar o nome do gênero e se afirmar como qualquer outra coisa, menos sertanejo.