Diego Dedablio tem em Tatuí seu museu a céu aberto

Um papo sobre graffiti, artes plásticas e a convergência de outros universos dentro da arte visual

Diego Dedablio tem em Tatuí seu museu a céu aberto

Existe uma relação muito íntima de artistas que fazem murais com o espaço. Alguns deles exploram o tamanho, dando forma às suas letras e desenhos, enquanto outros procuram entender o que o espaço pede e fazem sua arte coexistir com o ambiente. Mas também existe uma mescla desses dois mundos e, nessa turma, a gente encontra o Diego Dedablio, um artista de Tatuí, do interior de São Paulo, que faz um exercício multisensorial antes mesmo de começar a desenhar, seja no graffiti ou seja nas artes plásticas.  

Em uma busca mais interna do que externa, Diego se mantém em seu local de origem, com uma arte que conversa com cada pedacinho da cidade, usando do improviso e ouvindo o que cada espaço tem a dialogar com sua obra. 

A gente conversou com ele para entender esse fascínio local, seus caminhos criativos e os processos que levam sua arte a acontecer dentro e fora de seu espaço íntimo. 


O que veio primeiro na sua caminha da arte: o graffiti nas paredes ou as pinturas nas telas? 

Eu sempre desenhei e a partir dos 4 anos de idade eu já estava desenhando. Minha informação gráfica era da Turma da Mônica e fiquei até uns 10 anos de idade copiando Maurício de Souza. Um pouco mais velho eu mandava carta pro estúdio dele com meus desenhos, uma visão infantil de que ele iria ver, mas o engraçado é que eles me respondiam incentivando, o que era muito legal, ficava emocionado quando era pequeno! Fiquei aficionado e era um sonho trabalhar no estúdio do Maurício. 

O primeiro contato foi com os quadrinhos. Inventei personagens, comecei a fazer minhas tias, isso já com 15, 16 anos, e depois comecei a colaborar com o jornal da minha cidade, com caricaturas e tabloides de quadrinhos, que não tinha na época. O personagem era um casal, um reflexo do meu relacionamento do momento, um drama de relacionamento adolescente. O pessoal adorou, na escola fazia sucesso, até vendia camisetas desses personagens. 

Aí comecei a andar de skate e mudou tudo! Tinha a revista CemporcentoSKATE na banca e na última página dela sempre tinha graffiti e foi a partir daí que comecei a ver a arte no muro e a escutar rap. Essa coisa toda começou com o skate, comecei a fazer personagens e caracteres no graffiti. 

Era uma crew de quatro caras, eu, o Facio, Arlin graff e o Bart. A gente andava de skate juntos e curtia o mesmo som, aí começamos a pintar na cidade e isso mudou tudo pra mim. Com a técnica do desenho gráfico, eu ficava mais vinculado na parte das figurações, fazia até outro estilos, mas sempre fazia personagens, era meio que minha função na crew. 

Parei de andar de skate no começo dos anos 2000 e comecei a desenhar 100%, comecei a pintar muito e meio que causou na cidade! Tatuí é pequeno e meio que você fica notado se faz muito e isso não é muito legal (risos) - é uma lógica contrária no graffiti, meio que você não quer ser reconhecido, não (risos). 

Tinha um cara que vendia livros e gibis aqui na cidade e ele começou a fotografar a gente fazendo as artes e colocava na internet. Eu escutava muito rap nacional e estava bem nessa vibe de protesto e pedi pra ele tirar minhas fotos da internet, porque não queria, queria ser antissistema, totalmente radical. Mas depois eu refleti e fiquei de boas. Ele começou a fazer esse catálogo na internet e isso foi se expandindo, até o pessoal de São Paulo começou a entender nosso trampo… 

Uma coisa curiosa dessa fase é que eu era muito chato, escutava muito rap de protesto e era uma vibe contra tudo e contra todos (risos). Eles tiveram que ter paciência comigo, viu? Isso me prejudicou muito socialmente, mas ajudou no graffiti (risos). 

Depois, mais velho, comecei a ler muito outras coisas, tipo filosofia e outras coisas mais difíceis e começou a mudar minha cabeça um pouco, me aproximei mais das artes plásticas, mas nunca abandonei o graffiti. Eu saí do rap antissistema pra ler Foucault e, novamente, foi catastrófico pra vida social (risos). Eu só conversava com gente mais velha, tive um crescimento precoce. Dava muito contraste com os amigos antigos, a crew até acabou, brigamos na época, mas só fui entender depois de um tempo. 

O graffiti era um lance bem mais puro, que eu mantenho ainda, mas essas outras leituras deram uma ampliada nos horizontes e isso acabou repercutindo com outras áreas, como nas artes plásticas. Hoje até atinjo outros perfis, como psicólogos, porque acabo falando disso com as imagens também. 

Em 2008 fui para Argentina, através de uma cantora que conheci no conservatório, tínhamos muita coisa em comum. Ela era 25 anos mais velha, a gente conversava muito e pensava muito igual. Essa coisa de ler e conversar sobre outras coisas também me ajudaram na hora de sair de situações desagradáveis por causa do graffiti, até mesmo de conseguir conversar com autoridades.

Rolou algum episódio na Argentina nessa pegada?

Sim! Eu tive o azar de estar pintando lá e rolar algo. Eu fui fazer uns murais em cidades diferentes e quando tinha uma folga, saía pintando nas ruas, onde eu escolhesse, no ilegal mesmo - essa cultura do graffiti mesmo, do bomb. E saí pintando, mas acabei indo perto da sede do partido obreiro de lá, que é o partido comunista da cidade e o histórico dos caras é um problemão, são perseguidos até hoje. Aí a polícia apareceu e eles acharam que eu estava fazendo uma propaganda política e me abordaram. A sorte é que eu estava dormindo na casa de um diretor de um teatro, ele que tinha nos chamado, e ele é advogado e ele passou bem na hora! Aí não deu nada (risos). 

Me chamar pra pintar é pegar um pacotão de coisas, vou pintar o mural mas vou também pintar na rua, colar coisas na parede, fazer tag, o pacote da arte urbana. 

Mas o mural todo mundo curtiu! 

Dedablio em Corrientes, na Argentina

Você teve um episódio curioso com a Vera Holtz, né? 

Sim, em 2010 ela veio aqui em casa e comprou umas obras. Eu fiquei assustado quando ela chegou, achei que era polícia (risos). Nesse ano a gente estava pintando bastante, fazendo coisas muito detalhadas e a galera até achava que era coisa contratada, que estavam pagando a gente pra fazer, mas na verdade era pra gente mesmo. 

Aí a Vera Holtz veio aqui, acho que porque eu fiz um graffiti grandão, de uns 5 metros, mais ou menos, perto da casa da irmã dela aqui na cidade. Ela ficou impactada e veio aqui perguntar, ver as obras e meus desenhos - eu já estava estudando mais sério fazer obras, mais coisas conceituais. 

Esse lance com ela foi um ponto de virada de alguma forma? 

Não, ela meio que comprou algumas obras a um preço super bagatela, porque na época eu não tinha noção de quanto era! Mas o que foi legal foi que ela me deu uma bolsa de estudos e pediu pra eu escolher a escola em São Paulo e escolhi a Panamericana. Era um curso profissionalizante, de 2, 3 anos. 

Fui estudar lá mas não terminei, porque, como já falei do meu histórico de questionamentos, entrei na escola muito quadrado,  achei que estava avançado pra aquilo que me mostravam, eu achava muito fácil e alguns outros alunos ficavam de cara, mas eu não estava satisfeito com essa parada de copiar desenho, criar estilo… Paguei uma multa e saí da escola. 

Fiquei com medo de perder meu estilo lá. Eu já tinha aprendido com muita coisa em casa e estava me deparando com um processo que parecia uma regressão, já tinha tido um esforço terrível para ter o mínimo de identidade, aí na escola me deu um gelo, não queria isso pra mim. 

Depois fui estudar xilogravura no Lasar Segall. Hoje a técnica é mais difundida, mas na época ninguém fazia, tinha que ter instrumentos específicos. Fiquei deslumbrado e eu estando lá no museu toda semana, me influenciou muito e acabei estudando expressionismo abstrato, com o figurativo junto. Isso me ajudou bastante, tinha uma experiência muito melhor que a escola, tinham muitos artistas famosos que iam lá direto. 

Fiquei sabendo que até Os Gêmeos fizeram curso lá e eles eram uma grande influência pra mim no graffiti. Tudo isso me influenciou muito. 

Nessa época eu pintei muito em São Paulo, ali pelo centro, Santa Cecília, Minhocão, Barra Funda… nesta fase fui convidado para participar de um livro chamado Nuevo Mundo Latin America Street Art, por uma editora alemã, onde reuniu muitos nomes da street art no continente, lá estavam muitos dos artistas que eu sempre admirei, e que indiretamente, pelas obras, me indicavam um caminho de essência, pessoas como Os Gemeos, Titi Freak, Ramon Martins, que conheci somente pelos trabalhos nas ruas e encontros em festivais de arte urbana.

Diego fez essa em São Paulo, na Rua Barão de Tatuí em 2010

Você morou um tempo em São Paulo. Tem que estar nas grandes cidades pra fazer a arte acontecer?

Não, para mim isso é um mito. Ramon Martins é um bom exemplo, ele morou um tempo em São Paulo e escolheu a tranquilidade do interior, por vibe imagino, para pintar e viver, entre muitos outros artistas que tem um trabalho ótimo. Para mim é natural, explorar ao máximo o local onde você nasceu, entendê-lo.

No meu caso, vi também que era ficção, faço meus trampos por aqui, vendo na internet… Eu gosto de ficar aqui por um tempo, porque faz sentido, aqui pouca gente pinta, aqui a arquitetura é bem interessante e tem essa particularidade de ver a cidade como uma galeria a céu aberto. 

Aqui no interior tem essa qualidade. Aqui é um negócio lento e tem uma bagagem cultural e hereditária muito diferente do que se espera para as pessoas que fazem arte contemporânea, que fazem graffiti, é algo que entra em conflito, mesmo. Rola um choque cultural, sem dúvidas, mas acabam entendendo também a presença do graffiti. No começo tivemos bastante problemas, mas agora está mais tranquilo. 

Você escolheu Tatuí como um museu a céu aberto das suas artes, ao invés de fazer o êxodo para outros centros, brasileiros ou de fora, para fazer sua arte acontecer. Me conta um pouco sobre isso, se foi uma escolha sua ou se foi algo que foi acontecendo naturalmente. 

Foi um processo natural, porque na adolescência já pintava bastante na essência do graffiti. Eu e o Faone (Facio) sempre tivemos esse hábito de fotografar não só o graffiti, mas a vida. A gente sempre levou a fotografia a sério, isso veio do skate também, então era uma consequência, uma extensão qualitativa e ajuda muito a pensar a arte. 

Quem fotografa urbanidade, compreende que dá pra ver a arquitetura como objeto de arte e quem anda de skate também! Quem vive a cultura de rua e, de alguma forma, tem proximidade com as artes plásticas, tem essa consciência. Então foi algo gradual e você começa a entender que cada cantinho da cidade tem um planejamento, então já é um objeto humano artístico. Aí você vai convergindo com a pintura, skate… Esse lance de estudar a arquitetura entra numa zona de interesse maior e começa a perceber que você tem que usar com inteligência a cidade. 

Na fotografia, você observa tudo aquilo que está ao redor, que têm potencialidade com a pintura, aí você acaba tendo um diálogo com o objeto de arquitetura. O espaço fala o que você tem que fazer também. Aí a coisa começa a ficar mais séria nesse lugar do conceitual, as coisas começam a fazer sentido, como se fosse uma instalação, mesmo. Dá pra explorar conceitualmente e você começa a pensar na arquitetura também.

Foi muito dessa consciência de como você vive e enxerga sua cidade. Até que nível você tem a informação da cidade que você está vivendo e valorizar cada detalhezinho, da maçaneta fora de época até uma rachadura. 

O meu graffiti acaba tendo que dialogar com isso e me exige muito mais atenção em várias matérias das humanidades. Por isso que eu falei pra você que já complica tudo, quem quer praticar um bom vandalismo já estranha nosso rolê (risos). Mas é algo muito subjetivo, que é o plano objetivo também. 

Aqui na ISMO a gente fala muito sobre processo criativo e isso que você está me falando me fez pensar nisso. Me fala um pouco sobre seu processo criativo no dia a dia, as coisas que te inspiram, as suas influências e se existe alguma rotina relacionada à sua arte. 

Eu tenho um glossário de desenhos meus, mas hoje gosto de fazer direto no espaço. O processo é fotografar o lugar antes, trago pra casa e fico pensando, olhando, e começo a desenhar algo. Mas depois deixo o desenho em casa e deixo o lugar me falar também o que precisa, praticar o erro.

De onde vem a originalidade? A originalidade é o erro, é quando você se permite errar aquilo que você está fazendo. Quando você erra, você compreende que a sua estilística vai entrar aí. 

Eu desenho, levo umas cópias, mas normalmente acabo improvisando e isso virou uma parte da minha técnica, de improvisar junto do lugar. Você acaba sentindo o clima, conversa com alguém que aparece, tudo isso vai sobrepondo no muro. Tem que ser muito sincero, não gosto de formular muito.

Quando vou fazer mural institucional, explico antes esse processo, tenho um desenho de base, mas trabalho bastante com o improviso. É um conceito do jazz, pegar um tema e improvisar em cima dele. Andei muito com músicos do gênero, andei com uma galera do conservatório, inclusive com o pianista e o saxofonista do Hermeto Pascoal. Sou amigo desses caras, fiz a capa do disco deles, dialoguei bastante com esse pessoal. 

Os caras tocavam muito, mas as capas do disco eram horríveis (risos). Comecei a fazer um rolê com eles, tirando umas fotos e trabalhando nessa parte mais de design com esses caras. E minha arte tem influência disso também. 

Essa capa do Quarteto Ternário leva uma obra do Diego

Voltando a falar de Tatuí, parece ser uma cidade muito cultural. 

É e não é. Pra você ter uma noção, aqui tem 70% de votos de direita. 

Mas aí tem uma abertura para artes de rua? 

Aqui o pessoal não é da pesada, aqui é tranquilo. O pessoal começou a ver a gente presente sempre na cidade, desde a adolescência, começa a ver resultados, vem a TV aqui na cidade fazer matéria… No senso comum, as coisas começam a se explicar, pessoas começam a entender o que é de fato o graffiti e começam a curtir. 

Depois de 2010 as coisas ficaram mais lights, quem não gosta não falou mais nada, o que ajudou bastante (risos). 

Existiu um momento em que você era tão presente, que ficou inevitável e começaram a te chamar pra fazer trampos para órgãos públicos? 

Na adolescência eu escutava conteúdos pesados, rap nacional, rap gringo, mensagens com teor contrário à sociedade (risos). Em várias gestões de prefeitura, sempre me convidavam para pintar e eu ficava fugindo, achava que era uma perseguição, achei que iam me moldar, vender meu trabalho errado, avacalhar todo conceito. 

Em 2010 estava mais estudado, tanto sociológica quanto filosoficamente, e comecei a entender que você tem que fazer sim uma participação no ambiente público, tive uma consciência mais abrangente. Até hoje trabalho, fiz uma exposição com edital da prefeitura, participo em N coisas… 

Mural do Centro Cultural de Tatuí

A internet hoje te ajuda? Ela é uma plataforma para sua arte viver fora do seu ateliê?

A internet funciona, mas hoje está mais complicado por causa do algoritmo, mas não tenho muita pretensão, estou mais em um crescimento espiritual, meu foco maior é nisso. Não sou muito simpático aos rolês materialistas, tenho dread na cabeça, sou vegetariano… 

Eu vi uma obra minha em um leilão de arte, não tinha nem ideia. Mas sigo fazendo aqui tranquilo e a internet acaba fazendo chegar em mais pessoas. A pessoa que tem interesse, acaba pesquisando esse trabalho e tem todo um lance qualitativo, de entender o conceito. O Instagram funciona bem para mim em alguns pontos, para vender obras, chegar a novos colecionadores. 

A gente falou bastante de arte como um processo de entender o meio e vejo que a arte está muito na busca, mais na busca do que na resposta. O que você está buscando? 

Algumas pessoas mais inteligíveis dentro das artes plásticas dizem que o conceito mata a arte. Fazer análise crítica acaba matando a obra. Para mim isso é um desafio. Você pode modular a visão de alguém, mas também esclarece muitas coisas, detalhes, acaba criando um escopo evolutivo na pessoa, força uma visão que talvez ela não esteja preparada. Essa é a grande potencialidade da escrita, mas vejo como um desafio. 

Com as minhas leituras mais atuais, tenho esse desafio, estudo psicologia por iniciativa própria, que tem bastante a ver com artes visuais. Essas leituras destroem qualquer ilusão, acabam com você e te reconstrói com maior percepção, tudo o que você acha que sabe, o ato de pensar profundamente  tira a base ilusória e te dá outra mais abrangente e mais coesa. 

Como você gostaria que sua arte fosse recebida?

Eu acredito no subjetivismo do receptor, mas isso é um ponto mais lógico. Eu já tive um idealismo, mas hoje não consigo mais pensar nisso. Você pode direcionar sua obra, mas é mais lucrativo no âmbito da criatividade você ter diversidade de percepção. Você ver uma pessoa de fora do meu perfil gostar do que eu estou fazendo e comprar aquilo, então consegui fazer algo universal. 

É uma coisa da ontologia, de universalizar sua obra. Estive na Bielorrússia e as pessoas entenderam o que eu estava fazendo, mesmo sendo brasileiro e trabalhando com a nossa cultura. A estética ajuda a coisa da universalidade, sem ter palavras. 

Não tenho critérios, gosto muito de quando pessoas de fora do meu perfil curtem, fico até mais contente. É algo espiritual atingir o coração de alguém que não está com a mesma bagagem que a sua. É um gostar mais puro, algo mais natural e esse poder intangível é uma característica da arte para poder dialogar com o subjetivo de alguém. 

Varanda Tocada, 2024

ISMO
Cultura em movimento

Assine nossa newsletter e receba
as últimas notícias em 1ª mão!

Assine agora