Conhecendo outros mundos através das revistas de skate
Como as maiores revistas do Brasil apresentaram mais do que só manobras de skate e influenciaram também na música, arte, moda e cultura

No Brasil, a história das revistas de skate é muito rica. Com seu início em 1977 com a Revista ESQUEITE, a gente por aqui já teve diversas publicações, até chegar nos dias atuais, com a Revista CemporcentoSKATE sendo a principal remanescente ainda com publicações impressas.
Mas não só de skate viviam essas revistas e outros universos habitavam suas páginas e acabaram influenciando pessoas a conhecerem mais do que as manobras. Nas seções de música, arte, moda e cultura, as revistas de skate faziam as vezes do instagram e do tiktok e apresentavam novos artistas e novos movimentos que viriam ser gigantes nos anos seguintes.
Nas entrevistas e matérias que tenho feito aqui pra ISMO, um fator tem sido comum: conhecer outros universos através das revistas de skate. Isso já aconteceu mais de uma vez, em mais de um relato, em que a pessoa comenta que as últimas páginas da revista, que geralmente traziam dicas ou assuntos relacionados ao skate, a levaram a conhecer alguma coisa que iria mudar sua vida.
Então para entender melhor esse fenômeno do que se pode conhecer além das manobras, chamei dois “revisteiros” natos do skate brasileiro e um músico cuja banda saiu na revista de skate. Douglas Prieto, que já foi editor-chefe da Revista CemporcentoSKATE e hoje faz essa função na CLIFE e o Marcelo Viegas, editor de livros e jornalista de skate e de música por mais de décadas, tendo trabalhado no skate por muitas vezes, inclusive também na Cem, são os dois do skate; já na música, o David Paoli, que na época era do Sweet Suburbia, participou da pergunta sobre as bandas.
Nas revistas de skate, principalmente nos anos 90 e 2000, a gente tinha as seções finais da revista que falavam de assuntos relacionados ao skate, como música, arte urbana e outras artes. Isso sempre existiu ou foi uma coisa gradual de ir colocando assuntos relacionados para encher as páginas, ter mais seções?
Viegas: Ah, até onde eu sei, isso sempre existiu. Quer dizer, pra ser mais correto na minha afirmação, pelo menos desde que acompanho revistas de skate, ou seja, segunda metade dos anos 80. A Overall tinha seção de música, publicava quadrinhos também... Lembro de uma matéria com o Metallica na Overall... A Skatin’ também tinha quadrinhos e música, Zé Gonzales uma vez montou uma mixtape especial de Skate Rock, por exemplo, com TSOL, Faction, Bad Brains, Agent Orange etc. Isso pra não mencionar a Thrasher nos EUA, que provavelmente serviu de inspiração para várias gerações de skatistas (e editores de revistas) no que diz respeito a esse cruzamento entre skate e música. Até hoje eles publicam a lendária seção “Notes From The Underground”. Semana passada eu peguei uma nova edição da Thrasher, abri na parte de música e tava lá uma entrevista lindona com o Propagandhi, uma banda que eu adoro. Muito mais do que encorpar a revista ou preencher lacunas editoriais, penso que isso é um traço característico daquilo que chamamos de cultura do skate. Pra ser cultura, tem que ir além da atividade física, né? E o skate conseguiu ir além desde os seus momentos iniciais, embrionários... Praticamente nasceu dentro da contracultura. Então esse arsenal de referências é algo que a gente ganha a partir do momento em que coloca os pés em cima de um skate. O skate não chega “isoladamente” na vida das pessoas: tem a música, tem a arte, tem a fotografia, tem o vídeo, tem a moda, tem o gráfico do shape, tem o desenho da camiseta, tem o olhar diferente pra cidade, tem o espírito de ocupar o espaço público... tudo isso forma a cultura do skate, né?
Douglas: Nas revistas de skate, principalmente nos anos 90 e 2000, a gente tinha as seções finais da revista que falavam de assuntos relacionados ao skate, como música, arte urbana e outras artes.
Acho que isso sempre existiu, pelo fato do skate ser essa coisa plural, sempre ter artistas de diversas áreas envolvidos, então sempre foi natural ter outras pautas “não skate”, mas relacionadas diretamente à ele. Música, por exemplo, era muito presente na Yeah! e na Overall, no meio dos anos 1980.

Quão impactante era ter essas outras seções nas revistas? Era importante, as pessoas falavam dessas seções?
Viegas: Na minha formação, isso foi essencial. E, quando passei pro outro lado do balcão, meu desejo/objetivo sempre foi contribuir pra manter essa tradição viva. E tentar honrá-la. Eu costumo dizer que o skate foi muito generoso comigo, no sentido de me oferecer tantas referências legais em diferentes campos. E, por isso, tentei retribuir a generosidade. Acho que entrei para a mídia de skate com essa missão na cabeça. Se o skate foi tão generoso comigo, parecia natural fazer a minha parte, contribuindo para fortalecer a cultura que havia me formado.
Você pergunta se as pessoas falavam sobre esses conteúdos... bom, o que posso dizer é que, ao longo dos anos, não foram poucas as vezes em que alguém me abordou dizendo que conheceu tal banda porque leu uma resenha que fiz na Cemporcento ou então que comprou um CD ou vinil de certo artista depois de ler a entrevista dele na revista ou algo assim. Cara, isso não tem preço. E isso confere sentido ao trabalho, valida a sua ideia, tá ligado? Ao mesmo tempo em que injeta responsabilidade. Tipo, eu não quero ser responsável por acrescentar um som merda na playlist de ninguém, rs. Certa vez eu estava num evento com o Fabio Massari, aí ele foi abordado por uma pessoa, aquela velha história, MTV, Lado B, e a pessoa falou algo como “metade da minha coleção de discos é por sua causa”, e ele respondeu algo na linha “espero que seja uma metade boa”. E é mais ou menos isso que eu penso, mesmo que não diga, quando alguém fala comigo sobre ter feito descobertas musicais na revista, sabe?

Douglas: Era uma forma de estabelecer conexões, dar espaço para quem ama skate mas que não tinha nível técnico para aparecer manobrando, era enriquecedor para o artista, para a publicação, para a cultura do skate. Muita gente do skate é bitolada, só pensa em skate, e era uma forma de mostrar outras vidas. Fora o fato de que, para muitos moleques, a única leitura era a revista de skate (exceto livros obrigatórios de escola), então era importante que ela trouxesse uma visão um pouco mais ampla.

Você acha que para as bandas e/ou artistas era importante estarem em uma revista de skate? Como era essa recepção por parte desses artistas quando a matéria era pra revista de skate?
Viegas: Acho que era importante, sim. Em especial naquele mundo que ainda era mais analógico do que digital. Era um espaço a mais pra divulgação. E, muitas vezes, era também um espaço menos careta, menos formal, no qual provavelmente a banda/artista teria pelo menos umas duas perguntas diferentes daquelas usuais que elas respondiam nos outros veículos. Além disso, a gente tá falando também de um recorte de artistas que não tinha assim tanta visibilidade na mídia mainstream. Esses artistas podiam encontrar espaço em algumas revistas especializadas em música, nos zines e nas revistas de skate. No caso das artes plásticas, dá pra dizer com relativa confiança que a seção Portfolio da Cemporcento foi o debut midiático pra vários nomes da Street Art brasileira. E era algo muito genuíno, porque muitos desses artistas de fato tinham conexões/raízes no skate.
Douglas: Tinham muito interesse, e às vezes era complicado deixar tanta coisa fora - afinal, a revista tem um espaço físico limitado, e era uma revista de skate, não de arte ou música. Acredito que fosse legal para os artistas por ser algo mais descompromissado, mais verdadeiro, poder mostrar quem realmente é a banda. Quando surgiram os sites, e os vídeos, tinha a coisa das bandas que estavam na revista serem trilhas dos vídeos, e isso criava uma sinergia interessante pro artista.
David: Cresci vendo bandas nas revistas de skate, em entrevistas, resenhas de discos e nas camisetas dos skatistas. Meu fascínio pelo skate dos anos 80 começou cedo, assim como pelo punk, os dois sempre caminharam juntos na cultura das ruas — não vieram de bibliotecas ou salas de aula, mas do concreto da cidade. As páginas impressas levavam o skate a lugares onde as bandas jamais imaginaram chegar. Essa carona foi essencial para divulgar e reforçar a importância da música underground no lifestyle do skate.

O que você descobriu em uma revista de skate que você não conhecia? Uma banda, artista ou algo do tipo.
Viegas: Mano, eu descobri minha vida nas revistas de skate. É uma figura de linguagem, claro, mas tá longe de ser algo totalmente falso. Mais uma vez: era outro mundo, um mundo no qual o acesso à informação era limitado, caro, demorado. Portanto, uma revista não era algo descartável, que você lia e abandonava no banco do busão. As revistas eram sagradas, as revistas faziam parte da cultura do skate, como fazem até hoje, embora tenham perdido espaço e relevância nesse novo mundo das redes sociais e tal. O que eu quero dizer é o seguinte: uma revista de skate era uma companhia, era uma amiga. Você mergulhava em cada edição, devorava todo o conteúdo, conhecia cada detalhe daquelas páginas. Não era apenas admirar a foto da manobra cabreira, era também buscar inspiração na roupa do seu skatista favorito, sonhar em um dia andar naquele pico que você viu em tal matéria, desejar um tênis que apareceu no pé de alguém... Sei lá, tipo, tô falando aqui mais como jovem leitor do que como editor, tô lembrando de como me sentia em relação às revistas, de como desenvolvi esse amor por elas. Eu nunca vou esquecer de uma matéria que saiu na Overall, em 1989, mostrando os quartos dos skatistas. Cara, eu olhava aquilo e pensava, e sonhava, “quero ter um quarto igual ao do Cabralha ou do Beto or Die”. Isso é inspiração. Acho que dei uma volta muito grande, mas vou responder sua pergunta: o Faction é uma banda que conheci nas revistas antes de escutar o som. Lembro de ver a foto do Caballero tocando e ficava viajando naquilo, tentando imaginar como seria o som. E, olha como são as coisas, essa parada do Caballero foi no final dos anos 80, mas continuo descobrindo artistas em revistas de skate até hoje. Dias atrás, fiz a revisão de texto pra Clife Magazine, e assim descobri o Thomas Henrique, um artista-skatista incrível, com aquelas cores vivas numa pintura de São Francisco estampada em página dupla.

Douglas: Acho que 80% do que conheço de música veio do skate - de revistas ou vídeos. Estar num vídeo ou numa revista era quase que um “selo de qualidade” de música (ou outra arte) boa - ainda que muita porcaria tenha ficado famosa por conta dessa relação. Chegou um momento em que, na redação da CemporcentoSKATE, passou-se a se olhar o trabalho de forma mais crítica - não bastava ser skatista ou amigo de skatista para ter espaço na revista. A curadoria amadureceu nesse sentido. Voltando à pergunta, uma descoberta marcante foi conhecer o Yutaka Toyota, o arquiteto da pirâmide da Sé. Fomos fazer uma matéria no seu escritório, e foi um daqueles momentos em que você, mas uma vez, tem certeza do quão rico e abrangente o skate é.






A Thrasher Magazine tem uma seção só para trazer artistas e suas artes, sempre relacionando com skate, seja visualmente ou pela vida dos artistas