Conhecendo os projetos com discos de Gustavo Keno

Além do Discoterra, Gustavo preserva a memória e a cultura brasileira através de seus projetos com discos de vinil 

Conhecendo os projetos com discos de Gustavo Keno
foto: Kenny Hsu

A edição de 2025 do In-Edit, o Festival Internacional de Documentários Musicais, trouxe excelentes trabalhos audiovisuais e, um deles, o Discoterra, chamou minha atenção já por seu nome, um jogo de palavras interessante e de fácil assimilação, mas depois, ao ler sua sinopse e ver sua exibição, prendeu mais ainda por seu recorte brasileiro, baiano e sobre a preservação da lembrança e da cultura brasileira através da música física nos discos de vinil. 

Por si só, o documentário já valeria uma matéria, mas conversando com amigos sobre o trabalho, descobri que um de seus idealizadores, o Gustavo Aquino dos Reis, o Gustavo Keno, tem outros corres interessantes relacionados ao vinil e à memória que valeriam muito a pena conhecer e apresentar.

O papo que tive com o Gustavo foi além do Discoterra, mas claro que teve o documentário como norte, afinal foi por ali que o conheci. Falamos sobre o doc, sobre o Ilê Discos, sobre o Eu Te Dediscos, o Juntos Com Certeza - outros projetos que o Gustavo toca, literalmente - e também batemos um papo sobre memória e sobre conhecer sua própria cultura. 

Sobre o Gustavo

Gustavo Aquino dos Reis, o Keno, é um DJ, historiador e pesquisador musical com ênfase em gêneros relacionados à Diáspora Africana. Ele conta que foi no Rio de Janeiro que seu corre de misturar música com história também nos bailes ficou ainda mais forte. Nesse relato, ele explica que seu set vai além das músicas para dançar e começa a ir mais para um lado de reflexão e de pesquisa: 

“É aqui no Rio que eu começo a fazer da música um outro ofício. É aqui que eu começo a discotecar e expandir um pouco essa relação do DJ com a música, do DJ com a história e isso foi me levando a um outro lugar que era falar da música, mas sem esse aspecto festivo, celebratório, porque isso me cansava um pouco, sabe?

Mas vale ressaltar que isso é uma coisa do meu estado de espírito ali do momento, pois eu venho para cá, pro Rio e eu não consigo estabelecer novas amizades de imediato. Então eu comecei a frequentar festas observando quem era que estava tocando, quem sempre trazia a sonoridade que eu gostava para essas festas e consequentemente eram pessoas brancas, pessoas fora de de um contexto que eu estava acostumado a ouvir essas músicas, que eram músicas mais da Bahia, década de 90, um pouco fora do eixo do tradicional tocado em festas.

Vi que essa galera adorava esses sons e faziam a cabeça aqui no Rio. Então eu falei: 'isso é é uma parte tão fundamental para mim que eu vou começar a levar também". E aí eu comecei a tocar, mas ao mesmo tempo que eu queria fazer com que as pessoas dançassem, eu queria fazer também com que as pessoas tivessem um senso crítico, porque a maioria dessas músicas que eu pesquiso, que é a música da Bahia da década de 80, de 90, elas têm uma batida dançante, mas elas têm uma lírica, um uma um jogo de palavras mais de confronto, mais de posicionamento político, de posicionamento social, porque é a Bahia dos anos 80 e dos anos 90 que tem total ligação com o que que tava acontecendo no mundo, com as questões raciais.

E aí eu tive êxito, modéstia à parte, consegui me tornar uma pessoa interessante aos olhos do público nesse lugar de ser o DJ que toca coisas pra gente dançar, mas também o que vai tocar essas coisas mais de reflexão. Nem todo mundo gosta, mas eu acho que hoje em dia é muito importante, ainda mais com a leitura que eu tenho de ser um homem preto, de ser um homem que veio de uma periferia, eu não consigo desassociar música de confrontamento.

Tento construir meu set com momentos que as pessoas vão dançar, mas outros que entrem letras que façam uma reflexão, ainda mais sendo um homem preto tocando - acho isso muito potente, hoje consigo enxergar que isso é um artigo muito importante, ser uma pessoa negra tocando músicas de temáticas negras, é um lugar muito importante de estar.” 

Os sets do Gustavo também trazem livros como protagonistas; uma proposta que vai além das sonoridades, assim como suas músicas e sua caminhada se propõem (foto: Gabi Carrera)
"Eu quero levar minha a música, a discussão do mundo do vinil também para esses espaços museológicos, eu acho que não precisa ficar só na pista de dança. As coisas se diluem muito na pista de dança, o que é bom e importante, mas é um clima festivo, celebratório, que tem um lugar ali a ser cumprido, mas ele pode se expandir" - Gustavo Keno

Sobre o Discoterra 

Um desses projetos que veio da discotecagem do Gustavo foi o documentário Discoterra, que contou com a co-produção do Gustavo, Daniel Wierman (DJ e empresário na Cocodiscos) e Arnaldo Robles (diretor audiovisual), inspirado no livro Turista Aprendiz, de Mário de Andrade. O doc, que demorou 3 anos para ficar pronto, sai de Cumuru Xatiba e vai até Salvador parando em todas as cidades adjacentes atrás de pessoas que tiveram relação com a música ou com o comércio de discos.

O Gustavo conta que a intenção do documentário é dar atenção para artistas que não são tão reconhecidos, mas que tem músicas tão ou mais interessantes do que outros que foram famosos. Segundo ele “a história desses caras pode ajudar a compreender o Brasil também”. 

“Eu sempre acreditei num conceito chamado microhistória, que é a capacidade da gente interpretar acontecimentos não do ponto de vista macro, não somente pelos grandes vultos da sociedade, mas pelos pelas pessoas mais cotidianas e isso deságua no exercício da pesquisa musical” - Gustavo Keno

Conversando mais sobre o projeto, um dos motivos do porquê fazer o documentário, segundo o Gustavo, foi também do incômodo de ver que artistas brasileiros estavam sendo tocados, sampleados e/ou remixados por DJs dentro e fora do país sem, necessariamente, terem consciência de que suas músicas estavam sendo reproduzidas e, principalmente, sem estarem ganhando por direitos ou por essas reproduções. 

Um dos frames do documentário, que ainda não está disponível online

O Gustavo explica: “Um dos artistas que me fez ter essa pulga atrás da orelha foi o Bena Roberto, que teve sua música tocada na Europa e não estava nem sabendo! Tinha disco dele vendendo por 400 reais e era uma coletânea que ele nem tinha autorizado. É triste e esse exemplo, junto de outros, foi um incentivo para nós fazermos o documentário, que vem para responder e/ou, pelo menos, provocar”. 

Mas apesar desse incentivo à pesquisa, o documentário trouxe mais do que comprovações das incertezas dos pesquisadores (antes da pesquisa, é claro, o que é normal), como conta o Gustavo. Ele comenta que, ao conhecer esses artistas, descobriu que muitos deles estavam em situação muito melhor do que imaginavam. Ele explica: “pela minha experiência e pela lógica, eu trazia uma carga negativa, e até preconceituosa, de achar que esses artistas, na sua maioria negros, estavam em situação de pobreza; por isso até antes de fazer o doc eu pensei que tinha que me endurecer para conhecer essas pessoas. Mas um grande exemplo de algo contrário a isso, foi quando fomos a Feira de Santana encontrar o Dionorina, que é um artista ligado ao reggae, e ele estava ótimo, com uma vida constituída, dono de uma escola de música e uma casa lindíssima! Ele acabou desconstruindo toda minha visão e existem boas notícias, existem a capacidade de acontecer situações que destroem minha visão pro bem”. 

Dionorina e banda Cativeiro ainda na ativa

Sobre o Ilê Discos e Juntos com Certeza 

Outro projeto do Gustavo que também é sobre discos é a Ilê, uma loja dentro de sua própria casa, surgindo a partir de seu acervo pessoal, assim que começa a digitalizar discos e colocá-los na internet. Nesse canal do Youtube, o Juntos com Certeza, ele faz um acervo rico de discos não tão fáceis assim de encontrar. Ele conta: “a partir do momento que eu comecei a tocar, eu comecei a comprar muita coisa cuja sonoridade não estava acessível na internet. Então, eu comecei a digitalizar essas coisas que eu achava interessante a partir da minha leitura”

Tanto a Ilê Discos quanto a Juntos com Certeza acendem uma discussão interessante sobre o interesse na música brasileira. Segundo Gustavo, o interesse maior de possuir esses discos físicos surgiu de pessoas de fora do país: “Algumas pessoas estrangeiras começaram a me perguntar através do Youtube ou das redes sociais se eu tinha esses discos pra vender e foi aí que surgiu a loja em casa.” 

A casa/loja da Ilê Discos (foto: Lucian Fernandes)

Gustavo comenta que, apesar dessa procura gringa por discos brasileiros, seu maior interesse, no entanto, é que esses discos circulem aqui no Brasil, para pessoas que queiram conhecer e espalhar nossa própria cultura. 

“Não é a minha intenção ficar numa prateleira, né? Então tem esse lugar da Ilê Discos e é um grande paradoxo para mim porque eu eu muitas vezes eu critico essa leitura estrangeira de pesquisadores, de DJs que vem para cá pro Brasil e eles fazem da música brasileira o objeto de pesquisa deles e tá tudo bem, mas eles se colocam numa posição de que eles passam a ser a referência da música brasileira, né? E isso sempre me me doeu muito" - Gustavo Keno

O canal do Youtube da Ilê Discos traz audições de diversos DJs - essa é a do Gustavo

Sobre o Eu te Dedisco

Em um projeto mais visual dos discos, o Eu te Dedisco é um resgate à memória através do físico. Nele, Gustavo aciona a nostalgia e o carinho do resgate às capas e às mensagens que eram colocadas nos discos de vinil. O Gustavo conta que "muitas vezes você encontra nas capas de discos dedicatórias de pessoas, disco era presente, era pra datas importantes."

"Esse trabalho visual do disco soma-se a esse trabalho de preservar essa microhistória do popular, do corriqueiro" - Gustavo Keno

Para conhecer ainda mais essa relação dele com a música e não ficarmos só no âmbito conceitual, falamos de disco, é claro. Dessa vez, seus preferidos.

Qual seu disco favorito? 

Naja - Paulinho de Camafeu

Ele é um dos caras que eu gostaria de ter tido no Discoterra, mas já faleceu. Ele é considerado um dos pais da Axé Music, junto do Luis Caldas, então esse disco é essencial. 

Qual o disco que você ainda não tem na sua coleção mas gostaria? 

Waldir Luz - Coração Avoador

Esse disco cai na história do artista que não sabe de sua grandeza dentro do nosso pequeno universo de samples e remixes. É um disco muito importante. DJs, produtores e selos pegam a música dele, fizeram edits e não necessariamente pagaram por isso. Ter esse disco ia ser essencial para mim por esse fator de pesquisa e lembrança. 

Qual o disco perfeito sonoramente?  

Sampa Crew - Verdadeira Paixão 

Na década de 90 na periferia, a gente não estava acostumado a falar de amor e os caras falavam do assunto. Eu tinha vergonha de falar de amor a plenos pulmões. Comecei a reescutar Sampa Crew no Rio de Janeiro, porque nas festas que eu ia, a galera colocava, mesmo nem sendo DJs que tinham uma base periférica, mas eles colocavam e a galera pirava! Eu ouvindo essa galera cantar, me fez tirar um pouco dessa vergonha e gostar de verdade novo. 

Qual a capa perfeita visualmente? 

Zé Paulo - Raça

Acho ela lindíssima, é uma que sempre lembro! 


O documentário Discoterra continua sendo mostrado em edições do In-Edit em 2025 e entra em exposição em outras mostras. Para conhecer os outros trabalhos do Gustavo, clique aqui.


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