As três versões de Afroh em Adaptada
A MC fala sobre os processos por trás do seu último lançamento

Adaptada é o novo lançamento de Afroh, MC e compositora natural de Maranguape, em Recife, Pernambuco. Lançado no dia 28 do mês passado, o EP conta com três faixas produzidas em colaboração com Zoe Beats.
Entre samples de Erasto Vasconcelos, Dina Di e Face MC, Afroh cria um retrato de suas vivências e impressões do seu entorno. As letras do projeto foram compostas em diversos momentos nesses anos que passaram, e constroem as músicas que mostram a versão atual e adaptada da rapper.
Hoje vai ao ar o clipe da faixa homônima do disco, disponível no canal AfroRec, que mostra um lado diferente, complementar, dos visuais construídos até então. Pensando em tudo isso, trocamos uma ideia sobre os processos de Adaptada no papo que segue na íntegra.
Conta um pouco sobre a sua relação com a música num geral e mais especificamente com a cena do grime.
Eu sempre gostei muito de música, sempre tive um olhar bem eclético, eu gosto de muita coisa. Por incrível que pareça eu não escuto só rap, grime, UK garage, eu escuto muito MPB também, muitas coisas, funk para caralho.
O meu contato com o grime veio a partir de Zoe mesmo, por conta do destalado. Ele e rotciv_, primordialmente, que me mostraram a dinâmica da parada e tal — não sou uma expert em grime (risos), mas eu gosto muito. Acho que é uma parada que revoluciona para caralho e que dá para criar muitas outras coisas a partir dele, tá ligado?
Acho uma dinâmica bem foda desses eventos de grime, porque é um contato bem mais próximo entre o artista e quem tá ouvindo. Eu acho massa o formato, gosto muito — é mais fervoroso, o contato entre o público e quem tá fazendo a parada.
Em relação a isso, como foi essa passagem recente pelo Sudeste, aqui em São Paulo no Cr1agrime e lá no Rio, tanto no Brasil Grime Show como na Ocupação Iboru?
Foi bem louco porque a gente foi na ideia, né? A gente começou a juntar dinheiro no final do ano passado, e eu sempre tive muito medo, porque eu nunca tinha saído daqui de Pernambuco.
A gente não ficou no mesmo local, então vinha ainda mais esse sentimento de: “velho, tô sozinha em outro lugar.” E a gente passou um tempão, a gente ficou quase um mês no Rio — e de lá a gente conseguiu fazer esse translado para São Paulo que foi mais barato.

A galera de São Paulo é muito receptiva, mais do que a do Rio (risos). A gente passou pouco tempo em São Paulo — um dia e meio, dois dias no máximo por conta da logística — mas foi muito massa a troca. Eu conheci algumas pessoas lá no CR1AGRIME e foi muito massa mesmo, tanto o ambiente quanto o público — o Terra à Vista, galera massa.
O Brasil Grime Show também foi um corre porque no dia que a gente foi gravar foram mais quatro gravações, quatro duplas. A Kiddo com a Bala Rosa, o D0rme e o AKA AFK, foi todo mundo no mesmo dia, aí tava um caos do caralho o estúdio. Eu senti medo, mas foi muito massa.
Episódio do BGS com Afroh e rotciv_
Vamos falar do EP, então. Ele é o seu primeiro grande lançamento, e tem uma grande importância pessoal para você também, né?
Sim, esse EP é algo bem pessoal, porque ele é composto de construções e adaptações de momentos da minha vida em que eu não consegui reproduzir o que eu queria, tá ligado? Ele é, literalmente: coisas que eu tenho guardado há muito tempo que eu não queria descartar, por serem parte da minha vivência, e também não quis fazer do jeito que eu tinha construído na época — que era um drill, um bagulho meio genérico — e eu não queria tanto seguir como estava a ideia.
E aí eu chamei Zoe e pedi para ele fazer três ritmos que eu não tinha feito nada ainda. Ele puxou um UK garage, um volt mix e eu acho que o terceiro som ele fez um drill e outra parada. Eu sou muito ruim para essa parada técnica, mas foi uma construção.

Em cada faixa, eu sampleei um som que tem importância para mim. Na faixa principal, “Adaptada”, é um sample de Erasto Vasconcelos, que é um artista daqui. A terceira faixa, “Engatilhada”, é um sample de Dina Di, que é o “O Poder das Palavras”, que tem um significado muito importante porque a mulher é braba. E fez muita parte da minha vida a música dela, quando eu comecei a me introduzir no rap, no final da adolescência.
E aí eu coloquei essa música, que também é um som que fala sobre ela descobrir a poesia na escola, e fez muito sentido para mim. E no primeiro som, “Camuflada”, é um sample de um som bairrista daqui, um funk de galera do meu bairro. Eu acho que Adaptada é basicamente isso, a perpetuação do que eu não consegui fazer naqueles momentos.
Eu vou soltar uns visuais ainda, os Webclipes. Porque eu já soltei os visualizers de umas cenas que eu tinha há dois anos, que eu não fiz pensando no som — eu já tinha na bala, e ainda dentro dessa parada, né, de se adaptar e não perder as coisas. Por trabalhar também com audiovisual, eu tinha muito essa ideia de que as coisas têm que ser perfeitas, têm que ter um visual foda e uma fotografia do caralho. Isso nessa época que eu gravei esses visuais.
Só que depois eu fui vendo coisas, fui desconstruindo pensamentos e aí eu fiz essas imagens secundárias, que mostram mais sobre as minhas versões mesmo, pessoalmente falando. Tem essa identidade visual mesmo de me separar, tá ligado? Porque eu sou a empresária, eu sou a pessoa que compõe, eu sou a pessoa que faz card, sou a pessoa que trabalha na minha própria divulgação, eu que tenho que falar com produtores de evento para poder aparecer. E aí eu tento passar um pouco isso nesses visuais, que a gente tem que se desdobrar, tem que se adaptar para caralho para conseguir ser validado como artista — e a gente não precisa disso tudo, a gente pode fazer valer só com a nossa arte.

Me conta um pouco sobre a primeira faixa, “Camuflada”.
“Camuflada” é uma pegada de volt mix com funk de galera e tem esse sample do pirraia da minha favela. Essa composição tem uma letra de 2019 e uma letra de 2020 — exatamente por isso, porque eu me trancava tanto, de só soltar se for um bagulho foda, que eu não soltava, tá ligado? Ficava nessa autossabotagem mesmo, e fiquei dois anos parada.
A produção musical foi toda com o Zoe — vocês produziram juntos os beats, como uma junção dos trabalhos de vocês dois?
Sim, foi bem isso. Realmente dessa forma bem orgânica, eu cheguei para ele e falei: “Zoe, essa música tem que ter uma energia bem caótica assim de baile funk, eu quero que ela passe uma vibe de perigo mesmo, um ambiente hostil, que incomode, que a pessoa fique em alerta, tá ligado?”. Que é a ideia de “Camuflada”, eu sempre estar em alerta.
E isso aparece um pouco na capa também. Como foi a construção dessa estética do EP?
Há dois anos eu tinha feito essas imagens e eu já tinha uma ideia do som de “Camuflada”, digamos assim — eu já tinha a letra, já sabia o que eu queria fazer. A ideia da capa foi tipo três versões minhas: “Camuflada” é a que eu estou mais abaixadinha no mato, “Adaptada” é a do meio, que eu estou de boa, e “Engatilhada” é a do fundo, que eu estou meio dançando.
A parte de trás da capa tem o nome das faixas, no mesmo lugar. Eu também acho que “Camuflada” é meio que um “se liga”, tá ligado? É um aviso de perigo — se me atacar, eu vou atacar. Eu estou aqui na minha, não toque em mim que você não se machuca — por causa do cacto também, foram várias adaptações e junções em relação ao conceito.

Os visuais todos vieram dessas imagens que você gravou em outro momento e acabou inspirando todo o projeto, então?
É, o visual veio dessas imagens. Eu já tinha esses visuais há muito tempo, desde quando eu fui trabalhar no Ceará, que é onde foi gravado. A gente sempre passava por essa paisagem e eu sempre ficava: “eu preciso fazer alguma coisa aqui, nem que eu não use para a música, eu preciso ter essas imagens minhas aí.”
E assim foi, passou-se dois anos quase e quando eu decidi fazer Adaptada, eu já estava nesse processo de adaptar e juntar coisas. Eu lembrei dessas imagens, que foi o Rostan Costa que gravou, ele se disponibilizou, tipo: “eu faço”, tá ligado? Tanto essas como as outras imagens secundárias, foi tudo na ideia, uma função coletiva mesmo.
Fala um pouco sobre a segunda faixa, que dá o nome ao disco, “Adaptada”.
As três faixas são basicamente a mesma parada — coisas que eu não queria jogar fora, que perderam o timing e que eu não quis deixar de lado. Porque, querendo ou não, foi uma parte muito viva em mim naquele momento, e eu não gosto de jogar esses processos fora. Adaptada é literalmente uma contemplação dos processos, tanto os que dão errado como os que dão certo.
O clipe, que é completamente diferente dos visualizers, tem essa parada da soberba — que remete a momentos que eu fui desvalorizada —, essa parada da luz em volta de mim, o holofote, que em vários momentos eu entro e saio dele.
Em que sentido isso, da soberba?
Essa imagem da soberba aparece nas cenas em que eu apareço de vestido longo, onde tem gente me maquiando — é basicamente a personificação das pessoas que esnobaram de mim, tá ligado? Esse rolê do holofote que eu falei — essa cena que tá tudo escuro e só tem um um holofote em mim — é o meu jeito de estar e não estar ao mesmo tempo na cena, pertencer e não pertencer.
Ser visto e não ser visto, mesmo sendo parte de um movimento cultural, né — de uma bolha da cena daqui — só que não acomodo tanto com a visibilidade.
É um luxo que está ali mas que também desaparece às vezes.
É um luxo que existe, mas é um luxo básico — de algo que está em mim, tá ligado? Eu não estou cheia de cordas, de acessórios, eu só estou com um vestido que uma amiga minha que fez e uma bolsa. Eu acho que é mais sobre o meu pertencimento, sobre eu saber onde eu estou — nessa posição de artista —, mas ainda assim não me acomodar com apenas o status de ser artista.
E aí tem o meu lado empresária, que também se mistura com o periférico, né? Porque tem cenas que eu estou de blazer e de saia da ciclone com a maleta — coisas que vão se misturando, é muito pessoal porque é muito da minha cabeça. Tem o meu lado mais periférico, que é onde está o bandeirão da minha comunidade atrás, uma camisa do Santa que é o meu time — o conceito da roupa é algo que pega muito forte para mim, essa parada da camisa do Santa, porque o primeiro clipe que eu fiz também é com a camisa do Santa, do primeiro som que eu soltei.

“Engatilhada”. Como foi a processo dessa música que fecha o projeto?
O sample dela foi retirado de “O Poder das Palavras” de Dina Di, que foi uma das primeiras músicas que eu conheci dela — acho que eu tinha 10, 11 anos, uns dois anos depois dela ter morrido. E aí fiquei obcecada pela história dela, catei tudo de documentário, tudo que tivesse o nome dela envolvido e a história dela. Eu ainda acho ela uma peça fundamental, ainda no cenário atual, ela era muito para frente, cantava coisas muito dolorosas de uma forma muito bonita.
Essa música é o drill, né, uma parada mais melódica, um clima de reflexão — e eu gosto muito dela porque o intuito do nome “Engatilhada” é também fazer menção à música outra música de Dina Di que eu gosto muito que é “Mente Engatilhada”, nesse gancho de impulso, tá ligado? Eu tô engatilhada, ninguém me para mais. É sobre você acreditar em si mesmo, fazer a parada e foda-se quem falar.
“Camuflada” é tipo: “estou aqui na minha, quietinha, ninguém mexe em mim”. “Adaptada” eu jogo merda no ventilador, e “Engatilhada” é tipo: “ninguém me breca, não vou parar.”
E essas três versões, juntas, simbolizam como você se sente agora, num geral?
Sim. E acho que as três juntas simbolizam a percepção do problema, onde eu me via incapaz de fazer e duvidava da minha própria arte. Quando eu percebo que o problema não está em mim, mas em várias questões que existem nesse processo de ser artista local, independente, e me tiro daquela autossabotagem e falo: “não, você vai fazer, nem que seja do jeito básico, mas você vai fazer, e lá na frente você dá um jeito de fazer uma parada foda, mas os seus 100% hoje é 40%, tá ligado?”
E com um total respeito de mim para mim mesma — de falar: “calma, pô, a gente consegue.” É um documento vivo mesmo, porque é algo que eu quero perpetuar, quero escutar esse álbum daqui 10 anos e ele ainda fazer sentido para mim.
Eu quis tanto soltar ele por conta disso, porque é algo que foi muito forte para mim. Eu tenho outras músicas para serem lançadas, mas não é a mesma coisa desse EP, porque era algo que eu estava sentindo, eu me percebi dentro daquilo. Fazer outro EP só porque está mais foda ou mais atual, para mim nem faz tanta diferença, tá ligado?

Ouça Adaptada, obra musical de Afroh e Zoe Beats, já disponível nas plataformas digitais.