As possibilidades sonoras do grime com HRKN
O DJ e produtor de Juiz de Fora fala sobre o seu EP Hardcore e suas impressões do cenário eletrônico underground

Já falamos aqui na ISMO sobre as definições do grime, e como o seu aspecto experimental foi essencial para criar a sonoridade que conhecemos hoje. Se queremos criar a nossa interpretação do gênero de maneira autêntica, precisamos nos desprender de definições fixas e metodismos.
Um dos produtores a melhor explorar as possibilidades e limites do que entendemos por grime aqui no Brasil é o HRKN. Nascido e criado em Juiz de Fora, Minas Gerais, o DJ e produtor vem há mais de quatro anos trilhando o seu caminho no cenário eletrônico underground.
HRKN constrói os coletivos Sound Gueto e CASINHAS SYSTEM, e lançou, no final de 2024, o seu EP Hardcore, composto por seis faixas que buscam explorar as sonoridades que permeiam a sua trajetória musical.
Ele descreve o trabalho como uma "ode à cultura de pista do front", e explora, com forte inspiração no ghettotech, os limites do grime, do breakbeat, do footwork e do jungle. Trocamos a ideia que segue sobre esse projeto e a sua trajetória no cenário underground.
Antes de tudo, queria entender como começou a sua relação com o grime.
Eu conheci o grime no meio de 2020 — eu tinha começado a discotecar no fim de 2019, porém a minha pesquisa principal era o hip hop, o soul, eu sempre curti muito o lance da técnica e a única parada que tinha a ver comigo era o hip hop.
Eu era muito fã de música eletrônica — desde os meus 15, 16 anos, com Skrillex, Monstercat, toda aquela maluquice do YouTube — porém, como tocar música eletrônica em 2016, 2017, na quebrada? Não tinha como. Nesse meio tempo, acabou aparecendo o lance do hip hop, com um projeto aqui da cidade que se chama Scratch Jufas, liderado pelo DJ Alex, um mano que toca vinil, e dali foi aparecendo o amor pelo scratch, pelo turntablism, pelas pesquisas de outros artistas. Nesse meio tempo, o grime veio se inserindo na cultura brasileira e eu ouvia a semelhança que tinha com aquele dubstep que a gente conhecia de primeira viagem — e pô, tinha pessoas periféricas fazendo aquilo, né?
Vendo no Brasil Grime Show, eu não tinha tanto entendimento assim — acredito que aquilo era algo satisfatório para muita gente, por conta daquele cromaqui, daquela parada frenética, tanto que demorou muito para eu saber sobre o rewind e tal. Hoje eu estou fazendo a parada com uma certa liberdade, por conta do que o próprio hip hop me ensinou — a questão de você performar e tirar, de todo esse rolê, diversão e autoestima — e poder cativar outras pessoas a também colarem nesse movimento.
Vamos falar sobre o EP. Me chama a atenção o caminho que ele toma, começando nos 140 BPM, bem grime, até chegar nos 160, 170 BPM, com outros elementos aparecendo. O que norteou tudo isso?
Quando eu comecei a construção de Hardcore, eu não tinha muita ideia do que fazer. A minha intenção era fechar com a Kymera, uma banda aqui da cidade que toca muito breakcore, só que não rolou, e eu acabei pegando como norte o Amen Break — tanto que a primeira track que eu fiz de Hardcore foi “Vectra”, uns 11 meses antes de lançar o EP.
Nesse meio tempo, eu estava conhecendo um pouco mais do hardcore punk, do beatdown — eu sou muito entusiasta também do metal, do rock, que foi o primeiro rolê que eu fiz — e isso casa com o grime também, na questão de você performar de uma forma mais rebelde, vamos dizer assim.
Eu tive a ideia de fazer o lance do Amen Break dos 140 BPM até os 175 BPM, até mesmo para dar uma ideia de set. Nesse tempo eu estava treinando fazer sets além dos 140 BPM, não queria ficar preso nisso, muito por influência da Jacquelone, do Linguini, que fazem sets muito diversos, e isso fez com que a estética do EP começasse do BPM mais baixo até o ponto mais alto, dentro do que eu entendo por música eletrônica.
E qual é o conceito por trás desse projeto?
Ao mesmo tempo que não tem um conceito explícito, eu queria deixar claro essa ode à cultura de rua. Tanto que para a capa, eu chamei um camarada meu para fazer o lettering, e fui colocando alguns elementos visuais — a foto do meu bairro vista do escadão, o Vectra.

E é isso: fiz um trampo de música eletrônica, sou um mano que mora na periferia — não tem muito o que falar, mas ao mesmo tempo, já se diz muita coisa, né? A simplicidade na forma de produzir, a sujeira, os elementos… Eu quis criar, de fato, uma trilha sonora de quebrada.
Eu quis colocar, dentro desse EP, tudo que eu aprendi de música eletrônica nesses quatro anos. Esse meio tempo foi muito importante porque fez com que eu criasse um estilo de produção que junta a cultura do refix, do sample e demais formas de produção.
Eu tento ver Hardcore como uma nova forma de se olhar a música eletrônica feita por pessoas periféricas. Não vou dizer que ele é um gênero novo, mas acredito que ele tem um lugar especial, também pelo fato dele ser um pouco mal administrado — o meu trampo ainda tá um pouco bagunçado, mas as pessoas conhecem. O Meio Feel já falou dele, o Antônio, quando foi para Londres, tava puxando a minha orelha, porque o EP não estava nas plataformas, mas eu não entendo essas paradas direito, e eu tenho um apreço justamente por conta desse acesso estranho, às vezes sem querer, das pessoas — e aí quando a pessoa abrir, vai ver que foi feito por um mano de pele parda, raquítico, que mora na Zona Norte, na periferia.
Como você se enxerga dentro desse universo do rap e da música eletrônica, estando localizado em Juiz de Fora?
Juiz de Fora é uma cidade que tem contextos históricos escravocratas, né? Tem uma cultura militar, uma cultura universitária muito forte e isso traz muito elitismo. Isso faz com que as paradas cheguem aqui com um pouco de delay — a galera tá conhecendo agora o footwork, quando se fala de soundsystem, a galera lembra do coletivo Sound Gueto, que eu tenho com um camarada meu, mas por falta de recurso, por não ser universitário e não estar inserido nesse pessoal de classe média, a gente não consegue ter uma frente mais estruturada.
Fazer a parada, com todas essas dificuldades e contradições, faz com que a gente acabe tendo um estilo muito original. Só das pessoas estarem sabendo o que é sound system — só dessa palavra já estar no vocabulário das pessoas — já é muita coisa. Mas a gente fica um pouco desamparado, dá uma sumida no mapa, acaba sofrendo um pouco, fica ansioso, pensa que não tá gerando tanta coisa.
Quando eu pulei para São Paulo e vi que tinha gente de tudo que é canto do país, tantas pessoas reunidas, eu tive esse sentimento de estar vendo uma parada muito ampla, uma aquarela muito vasta.
Como foi essa passagem recente por São Paulo?
Pô, cara, foi muito louco. Bem antes do pessoal me chamar para SP, eu sempre via alguns stories do pessoal tocando algumas músicas minhas nos rolês e entendia que a galera já conhecia o HRKN.
Eu sou de Juiz de Fora, uma cidade que é muito esquecida, e sai muita gente foda daqui. Eu me senti muito honrado, porque é muito difícil a gente conseguir fazer o que gosta. Ser DJ em um mercado que às vezes entra em alta, às vezes tem as suas baixas, é muito complexo — você mexe com uma questão de técnica, de pesquisa, mas não é o suficiente, não dá pra se passar. Nunca vou chegar na pista pagando de quem eu não sou — vou continuar na simplicidade.

O que mais me fez acreditar nesse corre foi quando o ANTCONSTANTINO veio aqui em Juiz de Fora, numa festa que chama Tumulto, no dia 27 de maio de 2023, lembro como se fosse ontem. O cara curtir o seu som, a forma que você toca, foi muito importante até mesmo para o meu som se espalhar mais no SoundCloud, para que portais como a RADIO 086 e rádios de outros países me convocassem para fazer um som. O DJSCOPEBOYG também foi muito importante para eu furar essa bolha — ele é um mano que tem uma importância sinistra no grime.
É tipo uma comunidade, mesmo. Eu não fui muito dos games, mas para mim, o grime é tão da hora quanto ver o meu irmão gritando no chat de noitão, é esse mesmo sentimento — pessoas que moram longe para caramba, mas que compartilham das mesmas pesquisas e sempre tem uma parada para agregar.
Tenho muitas conversas com o Piores, da Raridade Records, sobre o meu trampo estar animando eles, e a contribuição dos caras está me animando também. O grime é uma parada muito complexa ainda no Brasil, e é muito interessante a forma como ele se reinventa e como a comunidade está se expandindo.
Você fala bastante sobre explorar o grime para além dos 140 BPM — o que você procura nessas misturas sonoras, e aonde pretende chegar com elas, dentro do que você entende por grime e por música eletrônica?
Tem um mano que é o Rocks FOE, ele é o cara que fez eu me interessar por grime. Ele tem músicas que não são em 140 BPM, mas você fala: "porra, esse cara é um MC de grime!” Ele tem muito dessa brisa, principalmente no EP Legion, que é um dos meus preferidos assim em questão de construção — eu acho que ele que faz os beats e rima. Ele parece parece um alfaiate fazendo a roupa para alguém, é uma parada feita na medida.
O grime também existe (e muito) para além dos 140 BPM
Quando eu vou tocar grime, geralmente eu misturo umas paradas a mais para sair daquele modelo muito quadradão. Eu me amarro em ver set do GRANDMIXXER, do Spooky Bizzle, mas eu já pego a referência do turntablism, do scratch, e procuro trazer um pouco mais de curvatura, dentro de um set que foi feito para ser algo muito quadrado — tanto que tem uma valorização muito maior nos canais do mixer, no chop.
Quando uma pessoa, que às vezes é um pouco mais leiga no grime e ouve um beat de grime, de drill, com um bounce, com uma agressividade, ela não vai embrasar tanto quanto num funk. Não é nem que a pessoa é ignorante ou coisa do tipo, mas quando se tem uma sensibilidade para outros estilos, uma pesquisa, um repertório, e você joga aquilo com uma certa intensidade, as pessoas conseguem entender o que é o grime, sem cair para aquela parada técnica, de 140 BPM, sabe?
Eu sei que a gente também não pode passar por cima da regra, mas dentro da minha cidade, a gente ainda não tem essa base tão forte. Ao mesmo tempo que eu tenho uma responsabilidade como DJ e produtor de grime, rola a contradição de eu tocar pouco aqui na minha cidade. Tem um DJ aqui que se chama Marinho Beats, ele é o real bossman do grime aqui da cidade, porque ele é um mano muito acessível, que traz os MCs para perto, sai da casa dele no outro extremo da cidade com equipamento, com mic e brota na praça pra galera rimar — fazendo um rolê de grime com pessoas que não conhecem da cultura do grime.
Então, como que eu vou mostrar isso sem parecer um chato? Porque a gente acha que não é chato, mas querendo ou não causa uma certa fadiga. Esses métodos acadêmicos, completamente feitos por um colono da vida, é algo que eu não quero passar para ninguém.
A gente tenta ser o mais “camaleão” possível, tenta passar a visão de uma forma mais simples — e aí quem criar um interesse, pode pelo menos estar rimando ali num 130 BPM, ou escutando um reggae, fazendo um freestyle, que ainda assim a gente vai estar falando a mesma língua.
O que está por trás da escolha do nome para o EP?
Eu sou um mano que sempre gostei do mosh, seja no metal ou em outros gêneros que dão essa oportunidade, então decidi chamar o EP de Hardcore — é uma nomenclatura solta que eu quis deixar nele, e as pessoas podem interpretar da forma que bem entenderem.

É uma tentativa de ressignificar, mas com muito respeito também, sabe? Até mesmo da cultura soundsystem, depois que rolou a grande migração para a Inglaterra, os rude boys, eu tento tirar um pouco dessa dessa referência. Ter essa atitude, porque infelizmente, numa cidade pequena como essa, industrial, você vai colar em alguns rolês de rock e ainda tem uma galera aqui com a mente bem fechada.
É um caminho longo que eu acho muito interessante de cruzar também. A gente não consegue convencer as pessoas a consumirem uma parada, mas essas músicas que a gente toca, que a gente produz, geralmente essa galera já ouviu, tanto no videogame, como na tracklist de alguma outra parada — e a galera saber que tem todo um histórico, uma resistência por trás, é uma parada que pode ser interessante até mesmo para elas, né? É maneiro a gente chegar como se fosse esse bode expiatório mesmo, até por uma questão de diplomacia.
Foi uma coincidência muito maneira, porque ouvi relatos de outras pessoas do grime falando que curtiam o rolê de hardcore na época. Eu acho o nome muito elegante, é uma parada que remete a algo mais sujão, ao mesmo tempo que algo é tão falado entre as pessoas — acredito que isso deu uma certa democratizada também, para que se criasse um interesse da galera acessar.
E como tem sido a repercussão desse trabalho?
Foi algo que me colocou, entre muitas aspas, no mapa. O respeito da comunidade em geral, tanto do SoundCloud como do Instagram — não são muitas pessoas, mas eu acho interessante porque a galera escuta com um certo cuidado, um certo carinho, tá ligado?
O EP foi feito de forma muito simples. Eu peguei referências do ghettotech, tem a questão dos samples — para compensar até mesmo técnicas que eu não sei fazer — e mesmo assim a recepção foi muito boa, foi um trampo que teve muita gente participando. Sempre tem aquele lance — o artista é perfeccionista, ele não gosta do trabalho nos dois primeiros meses, mas a gente aprende a gostar das paradas.
Eu brinco que Hardcore é a minha Mona Lisa, porque eu fiz com muito zelo — teve seus momentos de correria, teve seus momentos de mais cuidado. Ele é muito simples, não é um um CD completinho, perfeito, mas até os defeitos dele fazem sentido, sabe?
Pensando na questão dos streamings, vendas, e até mesmo a questão da discografia — que é muito levantada pelo ANTCONSTANTINO e outros produtores da cena — como você enxerga a difusão desse EP?
Você esperar tantas mil reproduções para ganhar uma fração de centavo é um absurdo. Eu não vejo essa necessidade, tanto que eu nem faço muita questão, sabe? Nem no SoundCloud ultimamente.
Os métodos do Antônio são muito importantes, a figura dele como referência para a gente poder vender o peixe. Eu sempre gostei de presentear a galera — a parada fica mais especial, mais palpável, como se você estivesse comprando o CD físico, mesmo. Você sente uma valorização maior do artista quando vai comprar uma parada física ou faz questão de pegar os arquivos do mano para tocar, para ouvir, seja lá o que for.
Você tira essa distância que a própria internet criou — eu sei que foi muito bom para o começo dos artistas, não vou ser hipócrita — mas a indignação, junto com a falta de acesso, junto com a burocracia, fez com que hoje a gente esteja trilhando esse caminho mais piratão, e é isso, marcha.
Ouça Hardcore no Youtube, no Spotify, no BandCamp ou no SoundCloud, e acompanhe o trabalho de HRKN nas redes sociais.
Viva o grime nacional.