Amanda Nunes: entre o sagrado e o profano
Entre feridas e milagres, conheça a artista que transforma tinta em território sagrado

Entre memórias de infância em Ceilândia, à vivência intensa em missões religiosas no nordeste e a formação artística atravessada por símbolos do sagrado popular, Amanda Nunes constrói uma obra marcada por fé, crítica e ancestralidade.
Nascida em uma família cristã missionária, ela aprendeu cedo o peso dos dogmas — e, mais tarde, a potência de ressignificá-los. Sua trajetória percorre o meio do caminho entre o Distrito Federal e o Ceará, entre o pertencimento e a fronteira, entre o corpo marginalizado e o altar que ela mesma cria com tintas e telas.
Nesta entrevista, Amanda compartilha sua jornada para conquistar um espaço no mercado de arte como uma mulher negra e periférica, fala como a internet foi ferramenta e faca em sua caminhada, e como cada símbolo de suas obras carrega ecos do passado e gestos de cura.
Você cresceu em uma comunidade cristã, filha de mãe missionaria. Como foi sua relação com a religião na infância e como ela se dá hoje?
Quando saí do Distrito Federal acompanhando minha mãe nessa vida missionária, eu tinha apenas sete anos de idade. Era uma criança de periferia, vivia brincando na rua com outras crianças, dançava nas rodas de pagode que aconteciam no quintal da minha casa. Eu sabia todos os funks proibidões (risos). Havia uma certa decolonialidade na minha vivência.
De uma hora pra outra, me vi numa espécie de convento, com regras de comportamento, dividindo a casa com outras 15, 20, até 60 pessoas adultas — todas buscando uma espécie de santidade, fazendo votos de castidade e de pobreza. Eu vivi aquilo. Fiz a primeira comunhão e até me crismei; era engajada em grupos de oração de jovens, entre outras atividades. Acredito que, nessa fase da vida, minha relação com a religião era mais de aceitação daquilo como uma verdade única.
Alguns anos depois, minha mãe deixou de ser missionária e voltamos para a Ceilândia. Foi bem na época em que eu estava desenvolvendo um pensamento crítico sobre religiões e sobre a vida como um todo, enxergando outras possibilidades de existência — acredito que graças à internet.

A partir daí, não só me desvinculei como, durante algum tempo, fui uma típica jovem revoltada com a igreja e crítica às religiões. Entendia que essa vivência missionária tinha me gerado muitos bloqueios, inseguranças, culpa. Mas hoje em dia, com a cabeça mais madura e com o desenvolvimento do meu processo artístico, continuo me revoltando com a face colonizadora do cristianismo, mas reconheço uma riqueza cultural e uma beleza singular no catolicismo popular e em suas práticas de fé que, em território brasileiro, vão se misturando com outras crenças — como as religiões de matriz africana, a pajelança, por exemplo — ganhando novas formas, cores e tradições.
Hoje, consigo reconhecer vários pontos positivos na minha experiência de infância e adolescência nas missões, pois, apesar de tudo, eu era uma criança feliz. Atualmente, sigo sem religião, mas tenho minhas crenças aqui e acolá. A fé e o entendimento do que é sagrado se tornaram matéria-prima fundamental na minha pesquisa artística.
Comecei a fazer arte justamente em um momento em que ter fé era minha única opção. Então, basicamente, posso dizer que minha experiência com a religião povoou meu imaginário com arte, desenvolveu meu pensamento crítico sobre crenças e religiões, me ensinou a viver em comunidade, me instigou a estudar os efeitos da prática da fé no cérebro humano e me ajudou a entender a importância desse senso de propósito que as religiões nos conferem.
Você nasceu em Ceilândia, mas cresceu no Ceará. Como esses dois lugares marcaram sua trajetória como artista?
Só pra contextualizar: dos meus 17 aos 23 anos, voltei a morar na Ceilândia. Então tenho esse background de ter vivido parte da minha juventude no Ceará e parte no Distrito Federal. Ambos os territórios me ensinaram muito sobre luta, resistência, mas também me ensinaram sobre uma forma bonita de se viver — de celebrar, descansar e de estar fortalecida pela comunidade.
Mas acredito que, para além desses ensinamentos, essas idas e vindas, essas mudanças de território, também me geraram um sentimento de não ter bases sólidas, sabe? Muitas vezes, não me senti pertencente.
E isso se reflete na minha arte, pois estou sempre buscando, no imaginário que construí nesses territórios, símbolos que me coloquem nesse lugar de pertencimento e acolhimento. Mas também entendo que está tudo bem, às vezes, o seu lugar ser justamente o meio do caminho.

Vinda de um território marcado pela migração, por todas as questões que envolvem existir como mulher negra e periférica, em que momento você sentiu que a arte era também seu lugar de existência? Como foi se reconhecer — com tudo que você carrega — como artista?
Dentro das condições de quem sou, é realmente difícil construir uma autoestima para se reconhecer enquanto artista — principalmente quando não se tem uma formação voltada para isso que te valide, ou não se tem muitas referências próximas de pessoas como você que vivem de arte.
Quando comecei a pintar, em 2019, eu já me sentia artista — só não tinha era coragem de falar (risos). Já sentia que a arte era meu lugar de existência, de reflexão, de cura, e sabia que eu estava produzindo algo muito potente.
Então, o que me validaria seria conseguir vender minhas obras ou ingressar oficialmente no circuito de arte contemporânea por meio de uma exposição. E, com o tempo, isso aconteceu.
"A Imperatriz" e "O Mito das Almas Gêmeas" acrílica e pva s/ tela (2021)
Em 2021, depois de alcançar visibilidade nas redes sociais, passei a vender minhas obras e a ser chamada para exposições, falas, trabalhos… A partir dali, consegui me afirmar publicamente como artista.
Num cenário onde o acesso às galerias nem sempre é possível, especialmente para artistas fora do eixo, como foi pra você usar a internet e as redes sociais como ferramenta de conexão, visibilidade e ruptura de bolhas? Que papel esses espaços digitais tiveram na sua trajetória?
A internet foi fundamental em muitos sentidos na minha trajetória profissional, e eu acho incrível a forma como ela fez emergir tantas potências fora do eixo — dissidentes, racializados, periféricos etc.
Foi a minha forma de furar uma fila em que eu estava lá atrás, e nem sei se, pelos meios tradicionais, eu chegaria ao começo dessa fila ainda viva. A internet funcionou não só como ferramenta de visibilidade, mas também como instrumento de busca por processos formativos gratuitos, editais, e me deu a possibilidade de construir uma rede de apoio e contatos. Foi um lugar para buscar referências, inspiração e informação.
Basicamente, me deu a chance de ter a minha “própria galeria” e ser a minha “própria galerista”. Mas tudo isso tem seu preço. Depender desses ciberespaços, sendo artista, pode ser extremamente adoecedor. O tempo da arte é totalmente diferente do tempo da internet, e encontrar um equilíbrio entre os dois é muito difícil.
Além das questões da superexposição, há a luta com algoritmos e o acúmulo de funções para as quais muitas vezes não estamos preparados. Acho importante tocar nesses pontos para não parecer que a internet é um mar de rosas milagroso — quando, na verdade, até me mandou para a terapia.
Ainda precisamos de políticas públicas que garantam nossa existência nesses espaços de maneira digna e saudável. A verdade é que, até hoje, ainda não aprendi a lidar 100% com o trabalho na internet. É uma relação de amor e ódio. Vez ou outra eu sumo, mas sempre volto.
Seu trabalho mistura referências da arte naïf, sacra, popular e do surrealismo. Como você foi construindo essa sua linguagem tão marcante e única?
Engraçado, mas quando eu decidi que iria me dedicar à pintura de fato, desde a minha primeira obra, minha identidade já estava lá, carregando todas essas referências estéticas. Com o tempo, pude ir elaborando e refinando minhas técnicas, mas a essência estava presente desde o começo.



Algumas das primeiras telas pintadas por Amanda em 2019
Isso me leva a pensar que a construção dessa linguagem se deu ao longo da minha trajetória de vida, antes mesmo de fazer arte — desde o meu nascimento, ou até antes, com todas as referências que me cercam e constroem meu imaginário.
Soy una chica periférica, vivendo num contexto afro-latino católico — e sou uma sonhadora. Tá aí todas as refs (risos).
A diferença é que, depois que comecei a pintar, passei a estudar de forma consciente aquilo que já me interessava. Isso me permitiu me aprofundar nas referências e fortalecer minha pesquisa. Algumas figuras passaram, então, a compor o background do meu repertório artístico, como Chico da Silva, Heitor dos Prazeres, Nice Firmeza, María Izquierdo, Remedios Varo, entre outros.
O corpo feminino, nos seus trabalhos, costuma surgir em tons de cinza — uma escolha visual marcante e cheia de significado. O que te levou a adotar essa cor para representar essas figuras, e que sentidos ela carrega dentro do seu universo?
Desde o começo, minha arte não tinha um compromisso com o realismo. Eu queria pintar seres que mais parecessem entidades, que se afastassem de representações da branquitude.
Num primeiro momento, usava um preto chapado na construção dessas figuras, bem no estilo de gravura. Em seguida, passei a usar o cinza — acho que muito tensionada pelo fato de sempre ter vivido numa fronteira étnica, num limbo racial. Então, acredito que o cinza veio como essa possibilidade de falar sobre miscigenação de alguma forma.
Sua obra parece se equilibrar entre o sagrado e o profano — corpos nus em estado de devoção, símbolos espirituais em meio ao cotidiano popular. Essa tensão é intencional? Como você enxerga essa dualidade na sua criação?
É intencional, mas também não é. Quando penso em criar imagens de divindades ou espaços sagrados a partir das minhas referências — enquanto um corpo marginalizado que viveu num cenário católico —, estou mais interessada em sacralizar o dito profano. Mas, automaticamente, acabo dessacralizando o dito sacro.
O primeiro é intencional. O segundo, não. Mas acho interessantes os questionamentos que surgem a partir desse tensionamento, como: por que o direito à fé é dado para uns e não para outros? Ou: o que é sagrado para mim, também é sagrado para o outro? Afinal, o que é sagrado?
Para mim, às vezes, o sagrado se manifesta através da figura de um carrinho de supermercado cheio, de uma mesa farta, ou do acesso à saúde plena. E pode ser que isso não seja sagrado para outra pessoa.
Há algo nas figuras que você pinta que parece convocar memórias antigas, como se carregassem vozes de antes. De que forma a ancestralidade atravessa seu processo criativo e orienta suas escolhas visuais?
Eu sou resultado da minha ancestralidade. Tudo o que meus ancestrais viveram ainda reverbera em mim, no meu inconsciente, no meu DNA, no meu comportamento. Acredito fortemente nisso.
Então, sempre que me sinto num lugar de não pertencimento, tento fazer um movimento de olhar para trás, mas também de olhar para dentro e buscar o produto gerado pela minha ancestralidade, aquilo que constitui a matéria que eu sou e que está disponível para mim.
"Volte sempre a si mesma, caso você se perca" e "Apesar de tudo, agradecer por tudo que tenho até aqui" (2024)
Achei muito bonita essa pergunta, pois, para enxergar esse atravessamento, é preciso olhar além da retina. E ele está em tudo, de forma sutil, mas também gritante — desde a escolha das cores até a escolha da narrativa, dos símbolos, das técnicas. Tudo.
Os detalhes que você escolhe — os adornos, os símbolos, as texturas — carregam uma certa magia, um encantamento, como se cada elemento tivesse uma história a sussurrar. Como esses elementos surgem pra você? São chamados, memórias, gestos?
Eu gosto de pensar que, numa obra, todos os elementos devem ter um significado — nada deve estar ali por acaso ou apenas como enfeite. É como funcionam os sistemas de símbolos dos baralhos e tarôs: tudo tem um sentido.
Então, durante a construção da obra, penso exatamente sobre o que quero dizer e como, por meio da escolha de símbolos, posições, cores etc., vou fazer com que a obra carregue essas semânticas.


"Terra para quem nela vive e trabalha" acrílica e pva s/ tela díptico 20x30cm (2022)
O significado não precisa ser literal — e acho que o encantamento vem justamente desse lugar da fabulação e das respostas ancestrais.
Como é seu processo criativo — existe algum tipo de ritual ou ele é mais intuitivo?
Eu não tenho um processo criativo único — meu processo está sempre mudando.
Comecei pela escrita. Escrevia muitos textos sobre coisas que eu estava passando ou sentindo, mas sentia que, por meio da palavra, não conseguia alcançar a totalidade do que queria expressar. Então, comecei a pensar em símbolos para ilustrar esses textos e, em seguida, criava composições nas telas com esses símbolos.
Às vezes, a inspiração vem de uma música. Outras vezes, de uma conversa com um amigo. Às vezes, simplesmente tiro uma carta de tarô e faço uma reinterpretação dela.
O que não muda é que sempre penso dessa forma: primeiro os símbolos, depois a composição.
Atualmente, meu processo criativo tem nascido a partir dos aprofundamentos da minha pesquisa “Como Criar o Seu Altar”, onde me baseio em estudos científicos sobre neurociência, fé, o surgimento das religiões e o corpo marginalizado religioso.
Como foi seu encontro com a arte urbana? O que mudou quando você passou a pintar murais?
Acho que foi um dos encontros mais lindos que tive na vida.
Em 2019, fiz alguns cursos na Amplitude Escola — uma escola de arte urbana de Fortaleza que, inclusive, encontra-se há tempos parada por falta de incentivos por parte do município e do estado (aproveitando para protestar sempre). Lá, tive a oportunidade de produzir grafites e lambe-lambes. Mas, para mim, essa experiência iria parar por aí.
Por achar que não era capaz, eu nunca me imaginei de fato pintando um mega mural. Mas alguém me imaginou — e acabou me convidando (risos).
Em 2021/2022, recebi alguns convites importantes. O primeiro, que de fato me lançou na arte urbana, foi o Festival Concreto — um dos maiores festivais de arte urbana do Nordeste e do Brasil — para pintar uma empena de 12 metros de altura, além de outro convite para a revitalização da Beira-Mar de Fortaleza. O segundo foi para pintar um mural de 207 m² no hall de entrada da São Paulo Fashion Week.

Tive outros convites importantes, como o Além da Rua, o MAUB… Mas, resumindo, acho que essas experiências me deram um sacode para eu entender, de uma vez por todas, que sou MUITO capaz.
Além disso, ganhei vários novos amigos queridos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Eu adoro participar de festivais, conhecer outros artistas, me conectar com as pessoas na rua que param para olhar e conversar — e amo ter a oportunidade de transformar os espaços com arte.
O que significa pra você ocupar o espaço público com sua arte?
Significa usar minha arte como ferramenta democrática de transformação social. Significa dizer obrigada ao hip-hop, obrigada ao primeiro grafite que vi sendo feito lá na Ceilândia, quando eu ainda era uma piveta. Significa a possibilidade de construir paisagens que não sejam apenas bonitas, mas também políticas.
Se pudesse confessar um crime passional que te acompanha na arte — aquele que você comete sem culpa, de coração aberto, qual seria?
Essa pergunta é muito boa, eu amei!
Meu maior crime passional, sem dúvidas, é me atrever a fazer e viver de arte. Além de outras coisas, sempre usei a arte também como forma de devolver as violências que meu corpo sofre.

Minha arte hoje ocupa as ruas, mas também ocupa espaços que já tentaram criminalizar a minha presença — como galerias, museus e acervos institucionais.
Eu sou atrevida mesmo. E esta é minha confissão.

"Mar Absoluto" acrílica, latéx e pva s/ tecido canvas 100x160cm (2022)
Para ver mais obras e acompanhar a Amanda de perto, acesse @crimespassionais.