Afinal, o grime é um subgênero do rap?

Um contexto histórico do gênero e algumas possibilidades de interpretação

Afinal, o grime é um subgênero do rap?
Foto: Simon Wheatley

A definição do grime enquanto gênero musical sempre foi complicada. Ele nasceu da mistura de diversas influências, mas não se encaixou muito bem em nenhuma das caixas pré-estabelecidas. É, sem dúvidas, o seu próprio gênero dentro da definição maior de música eletrônica. Existe quem defenda, por outro lado, que o grime seja um subgênero dentro do grande guarda chuva do rap.

O grime não existe apenas enquanto gênero musical. Todo o seu contexto e ecossistema são necessários para o seu entendimento total. Ele surge da experimentação, feito por jovens que faziam parte da cena eletrônica e criaram uma sonoridade que fazia mais sentido para o contexto deles. Influenciados, entre outras coisas, pelo rap americano — uma continuação dessa tradição, com certeza não.

"O grime deve ser o seu próprio gênero."
- Santan Dave
Dizzee Rascal no estúdio, 2002 (foto: James Pearson-Howes)

No livro Grime Kids é narrado como as vidas dos pioneiros na criação do grime acompanharam o desenvolvimento da cena eletrônica de Londres. Ainda jovens, eles — o livro é escrito por DJ Target e com “eles”, quero dizer Target e seus amigos mais próximos, como Wiley e Maxwell D — viveram o rolê do jungle e tiveram as suas primeiras tentativas com as rádios piratas. 

Eles acompanharam a transformação da cena com a chegada do UK garage, e foi a primeira vez que se viram representados na televisão, com os clipes da So Solid Crew. Percebendo a potência do UK garage, fizeram a transição criando o Ladies Hit Squad, que viria a se transformar no Pay As U Go Cartel, responsável pela faixa “Know We”, uma das mais importantes para a construção da sonoridade do grime.

Nesse momento, a cena do UK garage já estava mudando, com mais espaço nos instrumentais para os MCs, que agora eram a peça central. Target, em seu livro, fala sobre o grime em relação com o UK garage:

"Era diferente. Primeiramente, era sobre os MCs (...) Tinha uma energia de jungle no que dizia respeito à dinâmica entre o DJ e o MC." (...) "Nos novos beats do Wiley, você podia ouvir as influências do hip hop e do ragga, mas ainda era um som muito britânico." (tradução livre, DJ Target, Grime Kids)

Esses artistas mastigaram das mais diversas influências, mas a intenção deles ultimamente era criar uma sonoridade que fosse representativa da juventude londrina periférica. O grime não se propõe a ser uma releitura, muito menos uma continuação de nenhum desses outros gêneros.

"O grime é distintamente uma forma inglesa de música, mas representa, ou performa, uma inglesidade que respondeu à, e absorveu aspectos de culturas de diversas populações de imigrantes que constroem o mosaico da contemporânea e multicultural Londres." (tradução livre, Adams [2019])
"Garage, eu não ligo pro garage.
Ouça isso, não soa como garage
Quem te disse que eu faço garage?"

- Wiley, Wot Do U Call It?

É difícil, no aspecto instrumental, dizer o que é ou não grime dentro do contexto do gênero. O argumento mais comumente usado na tentativa de defini-lo é que a maioria de seus instrumentais giram em torno dos 140 BPM. Isso não é mentira, mas é interessante pensar na origem dessa definição.

Em seu livro, Wiley conta que fez os seus primeiros beats no FL Studio, programa que abria o projeto com uma configuração padrão de 140 BPM — foi pelo acaso que as primeiras faixas do gênero estavam nesse tempo, e foi nelas que os futuros produtores do gênero vieram a se inspirar. 

O uso surgiu do acaso, mas o fato de ser um pouco mais rápido que o UK garage — que normalmente se situa nos 135 BPM — com certeza ajudou na recepção. Um pouco mais rápido, um pouco mais cru e com mais espaço para os MCs.

Dizzee Rascal, que cresceu ao lado de Wiley, também começou a produzir de maneira experimental, inspirado pelos MCs de UK garage, mas com muita influência do rap americano, como Three 6 Mafia e Timbaland, e do jungle — foi de Target que Dizzee comprou os seus primeiros vinis de jungle, ainda quando criança.

As produções do jovem Dizzee desafiavam os limites da música eletrônica e, curiosamente, nenhuma delas está em 140 BPM. Dos dois álbuns que são tidos como os precursores do gênero, um deles foi produzido em torno dos 140 BPM, mas ao acaso, e o outro vai dos 104 aos 160 BPM, sem nem passar pelos 140. 

O uso dos 140 BPM se justifica pelo contexto histórico do gênero, mas não deve ser a regra, e só temos a ganhar com uma maior amplitude e variação nas produções. O caráter D-I-Y experimental do grime — “experimental D-I-Y ethos”, como define Adams — foi necessário para a sua construção, e deve ser sempre resgatado, para que não se torne uma sonoridade limitada. Não cabe ao grime uma definição tão técnica e precisa, sendo um gênero que se construiu e se constrói essencialmente na experimentação.

Outra característica que sempre é trazida como definidora do grime é o “jeito acelerado” dos MCs rimarem. Acelerado em relação ao rap, sim, mas se você olha o grime isoladamente, mais rápido em relação a quê? É mais lento do que os MCs de jungle e drum n' bass, por exemplo.

Por mais que o rap tenha tido grandes influências na primeira geração do grime, com os artistas que vieram depois foi diferente. No mesmo texto de Adams, uma citação de Collins fala sobre a relação de Stormzy e os rappers americanos:

“Stormzy (que tinha dez anos de idade quando Boy in da Corner foi lançado) observa: “muitos dizem que cresceram ouvindo (...) Tupac e Biggie. Eu não posso dizer por mais ninguém, mas eu cresci ouvindo Lethal (Bizzle), Bruza, D Double E, Flirta D. (...) A nossa geração não ouvia o hip hop americano…” (tradução livre, Collins apud Adams [2019]).

Em momento nenhum a intenção dessa discussão é distanciar a cena do grime e a do rap, mas me parece que elas tomam caminhos diferentes aqui no Brasil. É evidente a presença do hip hop na vida de todos os agentes produtores de grime, dada a tradição e importância que essa cultura tem no nosso país.

A relação entre esses dois gêneros não é, porém, hierárquica. O grime faz parte do universo do rap, do universo da cultura soundsystem. Ambos são manifestações paralelas da cultura soundsystem em lugares e momentos diferentes. São gêneros irmãos, filhos de uma cultura nascida na Jamaica.

Entender o grime como subgênero do rap é ignorar esse contexto histórico, e assumir que tudo que aconteceu depois do surgimento do hip hop veio de uma influência estadunidense.

Me parece que, aqui no Brasil, o grime nem tenta se separar do rap — são a mesma coisa, fazem parte de uma mesma cultura. Os artistas flutuam entre esses dois universos, e o constroem mutuamente.

Os amigos da Raridade Records recentemente fizeram um conteúdo sobre o assunto, e muitos pontos trazidos ali são pertinentes para a discussão. Esse é o início de uma conversa que tem a intenção de entender o que pode estar por trás dessas definições.

Dizzee Rascal em 2002 (Foto: James Pearson-Howes)

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