A última locadora de periferia em São Paulo

Gilberto Petruche e a resistência do Centro Cultural Charada

A última locadora de periferia em São Paulo

Há alguns meses, enquanto scrollava o feed do Instagram, me apareceu o vídeo de um senhor indicando filmes dentro de uma locadora. A legenda do post citava o “Centro Cultural Charada” que, depois de uma rápida pesquisa, descobri ser a última locadora de periferia da cidade de São Paulo. Como alguém que durante a infância frequentou muitas locadoras, achei que faria sentido conhecer o espaço e entender como era possível um local como este ainda estar aberto. Depois de algumas trocas de mensagens, marquei de encontrar Gilberto Petruche, o tal senhor do vídeo.

O Centro Cultural Charada, ou só “Charada”, fica em Sapopemba, na Zona Leste da cidade, local que cheguei com certa antecedência e ainda estava fechado. O espaço não tem hora exata para abrir ou fechar, funciona quando o Seu Gilberto está disponível, mas se esforça para abrir todos os dias. 

Enquanto aguardava sentado na calçada, uma senhora me aborda perguntando se estou esperando abrir. Digo que sim, e ela me diz que irá voltar depois, já que tem alguns filmes para devolver. Em poucos minutos, chega Gilberto, um senhor de cabelos brancos e um bigode de respeito. Nos apresentamos e ele rapidamente começa a contar que precisava separar alguns filmes para apresentar em um vídeo nas redes sociais. A conversa não teve uma ordem muito lógica e foi atravessando temas livres que, de tempos em tempos, eram interrompidos pela chegada de pessoas, o que fez a conversa parecer ainda mais viva. 

O espaço é repleto de nostalgia, com estantes abarrotadas de VHS’s e DVDs, paredes com pôsteres de filmes de diferentes gerações e o chão feito artesanalmente com vinis. Entrar na Charada é como fazer uma viagem no tempo e conhecer um pouco sobre a forma de consumo fílmico em bairros periféricos. Cada detalhe conta um pouco da história e da cultura que esses espaços ajudaram a construir. Eu, particularmente, como fã de cinema, só tive acesso a muito do que assisti durante a infância graças a lugares como esse.

"Isso aqui é minha vida, isso aqui é minha casa, é uma coisa tão simples. Eu concordo que não é tão abundante. Só tenho eu de periferia com locadora. Que eu saiba, ninguém mais se pronunciou. Sempre quando eu falo 'a última locadora de periferia', ninguém ainda apareceu." - Gilberto

A Charada foi fundada em 1995, mas não foi a primeira empreitada de Gilberto no mercado audiovisual. Hoje, com 69 anos e apaixonado por filmes desde a infância, trabalhou como Gerente Administrativo antes de atuar como vendedor representante de distribuidoras.

O Gilberto conta: "Eu era cliente assíduo de várias locadoras, então falei 'pô, eu vou montar uma'. Só que não sabia como, não tinha informação de como montar uma locadora. Aí eu tive uma ideia que eu acho que foi brilhante: respondi um anúncio de vendedor. Saía muito anúncio precisando de vendedor e tal, e eu gostei de um que era assim: 'vendedor de filmes europeus.'

Chego lá de terno, gravata e tal e um cara me recebe e fala 'olha, eu estou querendo montar uma equipe e nós vamos acabar com a Buttman (produtora de filmes eróticos). Os nossos filmes são alemães e holandeses, e os filmes europeus de pornô não tem censura.' Ali meu queixo caiu. 

Mas até que tinha um refinamento, um diferencial. Tanto é que eu peguei uma capinha e fui nas locadoras. De longe você já percebe que tem um filme novo na loja. Eu vendi barbaridade (risos)."

A "salinha" com os filmes pornô, clássico das locadoras, ainda existe na Charada

A porta de entrada, construída como vendedor de sucesso no mercado de pornôs, rapidamente o colocou para trabalhar na PlayArte, onde conheceu melhor o fluxo de trabalho das locadoras, até que em 1995 decidiu alugar um espaço e abrir seu próprio negócio. Apesar da alta competitividade, a ideia era criar uma locadora de títulos fora do circuito, já que Gilberto amava filmes dos mais variados estilos, e queria ir de encontro ao que aprendeu com o período em que trabalhou como vendedor, onde a prioridade era vender, independente da qualidade do produto. Entendeu cedo que filme nacional não vendia e somente filmes dublados faziam sucesso, o que inviabilizava a distribuição de muito do que o agradava.

30 anos depois, Gilberto nos conta que a Charada está no mesmo lugar, tendo sofrido poucas alterações no decorrer do tempo. Começou em uma pequena sala, depois foi para o andar de cima, anexou o pequeno espaço ao lado… Tudo feito com investimento próprio de um negócio que chegou a fazer muito sucesso.

"Eu estava tentando levar a locadora e as vendas, mas tive que sair porque meu pai faleceu e eu tive que ficar com a minha mãe, e aí não dava para carregar tanta coisa. Aí em dois meses já começou a vingar e eu fiquei só na locadora, que era um hobby, a minha ideia era ter como um hobby. E que alegria era de ver os clientes chegando à loja!" - Gilberto

Em um período muito antes da pirataria e do streaming, as locadoras eram as grandes difusoras da indústria audiovisual, muito por conta do acesso que tinham à regiões afastadas dos grandes centros e, consequentemente, de salas de cinema. Lançamentos, clássicos, filmes brasileiros e internacionais, toda a curadoria das locadoras, de algum modo contribuiu para o sucesso de filmes que talvez não chegariam em tantas pessoas como o planejado. Era um padrão.

Enquanto caminhamos entre as estantes ele vai pegando alguns títulos e relata com muito entusiasmo histórias sobre cada um deles. Ao todo o acervo da locadora conta com 15mil DVDs, 7mil VHSs e 1,5mil Blu-rays, e gosta de reforçar o caráter coletivo do acesso que a mídia física permite.

Nas palavras dele: "Eu não sou um colecionador de filmes, eu sou praticamente o oposto. Os filmes que eu compro eu quero que todo mundo leve e traga de volta, se possível. O colecionador compra, guarda, passa paninho… E eu não, eu quero que todo mundo leve. filme vai ter história adquirida, acumulada. Então toda pessoa que leva um filme, qualquer um daqui em média era alugado 100, 200 vezes, e eu achava super legal, porque esse mesmo filme entrou em centenas de lares diferentes, ele comoveu pessoas diferentes e tal. Então no meu caso, que sou dono de locadora, eu quero meu filme longe, voltando sempre porque são meus filhos. 

E eu amo a mídia física, e amo mais quanto mais pra trás. Eu amo mais o VHS que o DVD que eu amo mais que o Blu-ray. Tenho muito carinho porque está com você, está na sua mão um filme que nos estremece. Nada contra os streamings, mas ele não está na sua mão. Ele é deles. Se você comprar um filme ou aluga, o filme quando você está alugando, ele é seu naquele período, você vai assistir quantas vezes quiser. A mídia física tem história, e é muito bem retratada no filme Aquarius (2016), quando a Sônia Braga pega o LP e fala “aqui tem história'. Quando eu vi esse filme, que eu amo por sinal, eu falei 'nossa, aqui o Kleber Mendonça foi no âmago, aqui ele acertou”, porque é isso mesmo, tem história e você está com ela na sua mão."

Ao ser perguntado sobre a fase de maior sucesso da Charada, diz sem pensar muito no triênio entre 1999 e 2001, quando tinha uma média de 500 títulos alugados por dia. 

"Tanto é que em 2001, eu sempre fico na dúvida se foi 2000 ou 2001, mas dia 2 de janeiro de 2000 ou 2001, eu aluguei num só dia 880 cópias de VHS! Não foi DVD, o que é muito pior, porque tem o tamanho, claro. Mas só fazer as contas, uma média de 500 filmes por dia, vezes 30, a R$2,50, R$3,00… Embora eu também tivesse alguns filmes que eu não cobrava. Aqui tinha muita favela e eu acabava emprestando de graça alguns filmes pra galera." - Gilberto

Esse lance de comunidade, aliás, mudou muito. Apesar de ser conhecido pelos moradores do bairro, a lógica mudou e, mesmo com um novo modelo de empréstimo, que agora vale por 30 dias, Gilberto afirma que a grande maioria dos clientes atuais são de outros bairros, muitas vezes distantes ou de outras cidades. O movimento parece acontecer impulsionado por dois motivos: a nostalgia e o sucesso nas redes sociais.

O primeiro deles talvez seja muito cultural e pega tanto uma geração que viveu a fase das locadoras e tem na memória o hábito de circular entre prateleiras, ou pedir a reserva de um filme que nunca ficava disponível, quanto uma galera mais jovem que acha “cool” viver experiências de outros tempos.

O grupo dos saudosistas, enxerga na locadora a possibilidade de escapar um pouco do fluxo extremamente rápido de consumo, impulsionado por um algoritmo que te influencia a ver tudo ao mesmo tempo, em 2x, e por vezes nos faz gastar mais tempo escolhendo algo do que necessariamente assistindo. Já a cultura do escapismo, muito presente entre os mais jovens, faz com que certos núcleos se conectem com movimentos do passado como forma de se aterrar em um mundo cada vez mais imprevisível. São câmeras analógicas, discos de vinil, mas também experiências, como alugar um filme. 

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, é o filme favorito de Gilberto

O uso das redes sociais aconteceu de forma espontânea, garantiu status de subcelebridade para Gilberto e o conectou com pessoas do país inteiro. São clientes que cruzam a cidade para abrir uma carteirinha e alugar um DVD, ou mesmo comprar uma cópia em mídia física daquele título que não se encontra mais com tanta facilidade. O espaço digital também permite que ele possa se dedicar mais a falar do universo que tanto ama, compartilhar suas indicações e conhecer outros apaixonados pela sétima arte, apesar de não entender como o conteúdo produzido quase sem planejamento atingiu tantas pessoas.

O Gilberto comenta: "Às vezes, em algum lugar, alguém me reconhece. Eu não posso ser besta de não ver os números. Mas eu não entendo isso, é uma coisa estranha, porque isso aqui é minha casa, eu não vejo nada demais. Quer dizer, para mim é muito importante, nada de mais para as outras pessoas. Mas depois que eu li alguns comentários, eu percebi uma coisa: uma boa parte percebeu o que eu sou, que é assim, sou um apaixonado, não é outra coisa. Porque é isso, eu falo com amor das coisas que eu amo, eu falo com amor mesmo, principalmente do meu futebol e da minha loja das coisas. E eu sou um razoável entendedor de filme, mas sou um bom dono de locadora e de indicar filmes. Eu entro no seu mundo e vou indicando."

Enquanto conversamos, ele me conta sobre sua outra paixão, que é o futebol. Goleiro dos bons — segundo ele próprio e reforçado por pessoas que ouviam nossa conversa — Gilberto atua há 52 anos no Lestinho F.C., time amador de futsal na Zona Leste. Chega a dizer que se tivesse que escolher entre os filmes e o futebol, escolheria o futebol, afinal, “são 30 anos de Charada e meio século de Lestinho”.

Apesar do sucesso nas redes sociais, a locadora precisou se reinventar para continuar existindo, já que hoje os rendimentos oriundos da locação de filmes não cobrem os custos de água e luz. Para isso, o Charada assumiu a posição de Centro Cultural, realizando eventos, promovendo shows, mostras, aulas de música, debates, lançamentos de livros, entre outras atividades. É a partir dessas parcerias que hoje o espaço consegue se manter vivo.

O Centro Cultural Charada hoje é uma resistência cultural na periferia, e Gilberto não deixa de reforçar o caráter político disso tudo. Aliás, são perceptíveis as suas posições a partir dos filmes que estão em destaque nas prateleiras, os pôsteres escolhidos, e de algumas falas, como quando disse gostar muito do Scorcese, apesar de ser estadounidense.

O objetivo é garantir que o acesso à cultura seja mais democrático e, se possível, através da troca, do pegar na mão, do conversar, do discutir. Nas quase 3h que estive na Charada, não vi dinheiro entrando, o que é triste, claro, mas vi algumas pessoas chegando para conversar, tirar dúvidas, agradecer pela indicação de um filme, e tudo isso faz parte do caráter colaborativo e comunitário que a locadora assumiu nos últimos anos mas que de certa forma já existia lá em 1995, quando o Gilberto era só um cinéfilo querendo compartilhar sua paixão com outras pessoas.

Aliás, para saber um pouco mais sobre a Charada e outras locadoras ainda vivas, indico o documentário CineMagia (2017), de Alan Oliveira, que está disponível gratuitamente via Sesc Digital (link na imagem).


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