A Ópera Rock de Gaby Amarantos
Rock Doido é a narrativa definitiva de uma noite em Belém - PA

Uma Ópera Rock que se passa na periferia de Belém do Pará e conta a história de uma pessoa que circula pela noite em busca de se encontrar em meio a festas, dates, flertes virtuais e uma profunda conexão com sua identidade e raízes. Parece confuso, mas essa é a melhor forma que encontrei de definir o novo álbum de Gaby Amarantos: Rock Doido.
Possivelmente o melhor trabalho da artista em mais de 20 anos de carreira, Rock Doido consegue atingir um resultado muito buscado mas nem sempre atingido pela artista: transportar a sensação dos rolês de aparelhagem para o estúdio. Durante 36 minutos a sensação é a de estar vivendo o rolê em plena capital paraense. Esse resultado é fruto de diferentes acertos, que vão da escolha das faixas, produção, estética visual, até a capa. Por aqui, vamos falar um pouco sobre cada um desses elementos.

Apesar do título se referir aos rocks, nome dado às festas paraenses, é importante dizer que existem referências ao gênero, não sonoras, mas conceituais. A começar pela duração das faixas. O disco possui 22 músicas que duram, em média, pouco mais de 1 minuto e meio, algo muito comum em discos de hardcore punk — The Punch Line, do Minutemen, Group Sex, do Circle Jerks e até o Out of Step, do Minor Threat são bons exemplos — , mas o objetivo de Gaby aqui é outro. Rock Doido funciona como um set de DJ de aparelhagem, onde as músicas curtas são interligadas por vinhetas e batidas contínuas. Essa estrutura espelha o ritmo frenético e a experiência imersiva das festas de aparelhagem, onde o som não para. A transição fluida entre as faixas nos transporta diretamente para essa atmosfera, criando uma narrativa sonora que se desenrola ao longo da noite em Belém. É como se estivéssemos acompanhando Gaby em um tour pelas ruas da cidade, passando de uma festa para outra.
Conexões e referências da era digital
Um ponto inteligente no lançamento de Rock Doido é que ele consegue dialogar de forma muito inteligente e divertida com o atual momento da música, seja na criação, no consumo e na forma que conteúdo é criado a partir dela. Gaby e equipe se mostram atentos às tendências e as usam não de forma leviana, mas com certo deboche e humor para que as músicas também ressoem com uma geração que talvez nem fosse nascida quando ela começou a carreira.
A faixa “arrume-se comigo”, por exemplo, se apropria da popular trend de redes sociais na qual as pessoas se filmam enquanto se preparam para sair. A letra e a melodia da música capturam a euforia e a expectativa desse ritual. A canção também sintetiza muitos elementos característicos do tecnobrega, com destaque para as intervenções narradas.






As diferentes gerações da cultura de Aparelhagem, em Belém do Pará
Outro ponto alto é a faixa “foguinho”, título que brinca com o emoji de chama 🔥, frequentemente usado como flerte digital nas DMs. Mas Gaby vai além da referência óbvia e do uso do linguajar da geração Z. A música utiliza a famosa melodia da canção “Seville”, de Luiz Bonfá. Essa mesma melodia foi sampleada em "Somebody That I Used to Know", de Gotye e Kimbra e, mais recentemente, ela ressurgiu bombando no TikTok, sampleada mas não creditada, na música "anxiety", da rapper Doechi. Gaby se apropria dessa melodia, que já tem um histórico de sucesso e popularidade, para criar uma faixa que ao mesmo tempo é uma homenagem ao flerte digital e uma referência musical inteligente, conectando diferentes eras e gêneros musicais.
Participações locais e especiais
O disco também brilha pelas suas participações especiais, que trazem diferentes sonoridades e energias para o projeto. As colaborações reforçam o conceito de comunidade e a diversidade musical de Belém. A presença de artistas como Viviane Batidão, a rainha do tecnomelody, e Gang do Eletro reforçam a conexão com criadores paraenses que, há décadas, levam juntos a bandeira da sonoridade e da cultura local. A surpresa fica na participação da cantora sertaneja Luana Prado na faixa “Não Vou Chorar”, que, como o próprio título diz, rejeita o chororô típico do gênero, afinal esse é um álbum pra farrear.


A estética visual também é um capítulo à parte. A capa, um tributo direto e inconfundível à Dangerous, de Michael Jackson, não é apenas uma homenagem, mas uma declaração. Assim como na capa criada pelo artista pop-surrealista Mark Ryden, Gaby busca construir um universo onírico com elementos tipicamente paraenses. É uma forma de Gaby se colocar no patamar de um ícone pop, ao mesmo tempo em que enraíza sua arte na cultura da sua terra.
Um curta-metragem como declaração de arte
Para complementar a experiência do álbum, Gaby lançou um curta-metragem que serve como videoclipe de diversas faixas. O filme, gravado em plano sequência com um iPhone, é uma ode à criatividade popular e à beleza da periferia de Belém. Ao optar por uma gravação simples, sem grandes produções, Gaby e sua equipe provam que a arte de qualidade também pode florescer em situações de escassez e com recursos limitados. A direção ficou por conta da própria Gaby, junto do coletivo Altar Sonoro, de Guilherme Takshy, Naré.
Este filme nasceu do sonho coletivo de aproximadamente 250 pessoas que acreditam, com toda a força, no poder transformador da cultura nortista e no talento que pulsa no audiovisual paraense. O cenário escolhido não poderia ser mais simbólico: a periferia de Belém do Pará, no histórico Bairro da Condor, que se tornou palco de poesia, resistência e verdade. Cada imagem carrega o suor, a coragem e a sensibilidade de uma equipe que fez do impossível um gesto de arte e do cotidiano um ato de eternidade.
O uso do iPhone não é só uma escolha prática, mas uma declaração artística. Ele desmistifica a ideia de que é preciso uma superprodução para criar algo relevante, reforçando que a verdadeira mágica está na história e na forma como ela é contada. O curta, assim como o álbum, celebra a autenticidade e a riqueza cultural da periferia, provando que a escassez de recursos pode ser o terreno mais fértil para a inovação.
O projeto Rock Doido é mais do que um álbum, é uma experiência multimídia que une música, cultura digital, cinema e referências pop de forma coesa e original. Gaby Amarantos não apenas nos chama para dançar, mas também a refletir sobre a cultura contemporânea, as conexões entre o online e o offline, e a riqueza inesgotável da sua terra. É um trabalho ousado, vibrante e que certamente marca um novo capítulo na carreira da artista e do tecnobrega, que ganha força para se equiparar a outros movimentos, como o funk.