52 anos de hip-hop e o caminho do tênis nas ruas
Da periferia ao streetwear global, como o hip-hop fez do tênis outra coisa: cultura, história e presença viva

Hoje o tênis é símbolo, é linguagem, é presença, mas nem sempre foi assim. Antes do hip-hop, era apenas equipamento esportivo, pensado para corrida, treino, basquete. Quem torceu esse percurso foi o hip-hop: nas ruas, nos palcos e nas quebradas, ele fez do tênis um código visual de pertencimento, atitude e identidade. Com o rap, o tênis passou a carregar significados que antes não tinha: expressão, identidade, afirmação. De equipamento esportivo, virou elemento de linguagem cultural.
Origens e primeiros passos
Em 1973, no Bronx, o hip-hop e o tênis começaram uma história em paralelo, ambos emergindo de contextos marginais que se tornariam referências mundiais. Quatro anos antes, em 1969, chegavam ao mercado dois modelos que se tornariam antológicos: o PUMA Suede e o adidas Superstar, pensados para o desempenho nas quadras de basquete. Mas foi só anos depois, com a consolidação do hip-hop nas ruas de Nova York, que esses modelos ultrapassaram o esporte e ganharam status cultural. O que era funcionalidade virou símbolo: o tênis como marca visual de atitude, presença e pertencimento, calçado por DJs, MCs, b-boys e grafiteiros que criaram novas linguagens a partir do que já estava nos seus pés.

O Nike Cortez, por sua vez, lançado em 1972, foi adotado com força nas comunidades latinas da Costa Oeste e também se converteu em símbolo de estilo urbano antes mesmo de virar objeto de culto. Esses e outros modelos - como o Pro-Keds, os primeiros Converse e alguns clássicos da Reebok - ajudaram a moldar o visual inicial do hip-hop, que se formava a partir de influências diversas, locais e criativas. Mais do que calçados, os tênis se tornaram extensão da atitude e da linguagem daquele movimento em formação.
O momento simbólico veio em 1986: durante um show no Madison Square Garden, o Run-DMC entoou "My adidas", fazendo com que a plateia levantasse os sneakers. Um representante da adidas viu aquilo, e nasceu ali o primeiro contrato entre uma marca esportiva e artistas de rap. Com isso, a cultura sneaker ganhou reconhecimento institucional e começou a definir caminhos.

Anos 1980 e a transição da quadra para as ruas
Até meados dos anos 1980, os tênis vistos no hip-hop eram, antes, objetos aposentados das quadras. Um modelo essencial nesse período foi o Air Force 1, lançado em 1982. Criado originalmente para o basquete, rapidamente ganhou as ruas de Nova York e da Filadélfia, tornando-se um clássico absoluto da estética hip-hop. Seu visual robusto, a sola alta e a superfície que permitia customizações fizeram dele um símbolo de respeito e presença.
A mudança radical veio com o Air Jordan 1, lançado em 1985 com design arrojado e cores polêmicas. Mesmo proibido pela NBA, virou marca de rebeldia e vendeu cerca de US$ 126 milhões logo no primeiro ano. Pela primeira vez, um modelo chegava diretamente às ruas, escapando das regras do esporte para entrar no universo cultural urbano.


Nike Air Force 1 e Air Jordan 1 "Bred" não precisaram se aposentar das quadras para ganhar as ruas. Na mesma década, foram capas de álbum
Nesse período, outro item ganhou destaque: as botas Timberland. Apesar de não serem tênis, foram abraçadas pelo hip-hop como símbolo de rua. Artistas como Wu-Tang Clan, Mobb Deep, Notorious B.I.G., Tupac Shakur e outros norte-americanos do rap as usaram, inclusive em clipes, capas e apresentações, graças à sua durabilidade e visual "rua real". RZA chegou a dizer que eram "as botas que abriram caminho". Essa escolha mostrou como um calçado funcional pode virar símbolo de estilo, atitude e resistência cultural.




As "Yellow Boots" da Timberland não são tênis, mas ganharam destaque entre artistas do hip-hop no período
Do underground às colaborações que mudaram o jogo
Nos anos 2000, o sneaker entrou de vez na lógica do rap enquanto moeda estética e econômica. Jay-Z foi pioneiro em 2003 com o S. Carter na Reebok, misturando linguagem urbana com traços de luxo e alcançando altas vendas em poucos dias. Esse movimento foi ampliado por Missy Elliott com a linha Respect M.E. (2004), que incorporou design camuflado e recursos inclusivos - uma plataforma feminista dentro da sneaker culture.


Jay Z assinou a linha S. Carter da Reebok. Missy Elliott assinou a linha Respect M.E. na adidas
Na década seguinte, Pharrell Williams levou esse jogo para o plano global com a adidas, especialmente com a linha Human Race, a partir de 2014, promovendo identidade e representatividade. Kendrick Lamar iniciou colaborações com a Reebok em 2015, lançando modelos com mensagens de paz e crítica à violência urbana, antes de migrar para a Nike, onde reforçou essas narrativas com pares igualmente simbólicos. Pusha T, com a adidas, também usou os tênis como ponte entre design refinado e cultura de rua.
Tyler, The Creator começou sua parceria com a Converse em 2017, trazendo frescor e irreverência com uma pegada skater-lúdica. No mesmo ano, Travis Scott lançou suas primeiras colaborações com a Nike - como o Air Force 1 'Cactus Jack' - unindo nostalgia, psicodelia texana e hype de mercado em edições de grande impacto. Já Cardi B, com sua entrada na Reebok em 2020, introduziu uma estética feminina com força e atitude.


Travis Scott e seu Air Force 1 "Cactus Jack", de 2019
Esses artistas não apenas venderam tênis, mas traduziram identidade, território e pertencimento em cada colaboração, mostrando que a cultura sneaker é também espaço de disputa simbólica, estética e política.
O fenômeno Yeezy
Kanye West entrou no circuito inicialmente com a Nike (Air Yeezy), mas foi sua parceria com a adidas que revolucionou o mercado. O Yeezy Boost 350, lançado em 2015, trouxe estética futurista, estratégias de lançamento limitadas e enorme adesão. Em 2020, gerou cerca de US$ 1,7 bilhão em faturamento para a adidas, representando aproximadamente 8,5% do total anual da marca naquele ano. Em 2022, a parceria se encerrou por questões extraculturais, deixando claro que a consistência da narrativa e da imagem são pilares do valor simbólico de um sneaker.


Kanye West e o Yeezy Boost 350 v1
Brasil na mesma batida
Enquanto o sneaker ganhava vida nos EUA, o Brasil já recebia ecos dessa cultura. Nos anos 1990, os Racionais MC’s caminhavam por São Paulo com tênis no pé. Não era só estilo: era contexto, linguagem e afirmação em cada passo.
Hoje, marcas como ÖUS forjam uma linguagem local a partir da cultura de rua brasileira criando, há anos, colaborações consistentes com artistas como Parteum, Kamau e Rodrigo Ogi - figuras fundamentais para o rap nacional dos anos 2000, que trouxeram lirismo, crítica social e estilo próprio também na forma de calçar.
Essas parcerias integram a construção de uma identidade estética que conversa diretamente com o público.



No Brasil, a ÖUS já trouxe Parteum, Kamau e Rodrigo Ogi para colaborar
Mano Brown, ao se tornar rosto da FILA, atualiza uma trajetória que começa com Racionais MC’s nos anos 1990 - o grupo que já usava Nike, Reebok e Kappa como forma de identidade nas ruas e nos palcos. Sua presença numa campanha institucional representa o reconhecimento, ainda que tardio, de uma influência que nunca deixou de moldar o comportamento e o desejo do consumidor brasileiro.

E essa influência segue viva: Emicida, por exemplo, passou anos sendo embaixador da Nike antes de migrar para a adidas, mesma marca que hoje também veste Drik Barbosa. Recentemente, Tasha & Tracie protagonizaram a campanha global "Superstar: The Original", da adidas, celebrando o impacto cultural do modelo que ajudou a moldar a identidade visual do hip-hop desde os anos 1980. As gêmeas paulistanas aparecem como ícones de uma nova geração periférica que transforma discurso em estética, reafirmando que o tênis, quando calçado por quem constrói cultura, é muito mais que acessório. A campanha, estrelada internacionalmente por nomes como Samuel L. Jackson e Missy Elliott, reforça a longevidade do Superstar como artefato simbólico e transgeracional.


A campanha "Superstar: The Original", da adidas, traz Tasha & Tracie no Brasil e Samuel L. Jackson no global
Inclusão e representatividade
A cultura sneaker, alimentada pelo hip-hop, se consolidou como uma vitrine estética para histórias marginalizadas. Como observa a pesquisadora Delisia Matthews, o que muitos entendem como "sneakerhead" vai além do consumo: é um vínculo com uma herança negra e periférica que merece ser reconhecida em cada design e escolha de tênis. Esse registro reforça que os tênis na cultura hip-hop não são moda vazia: são formas de afirmação cultural que demandam lembrança e respeito pela origem.
Tudo isso é sinal de um protagonismo ainda em curso. O hip-hop nacional, em sua forma de andar, já ditava tendências antes mesmo que a indústria o reconhecesse. E continua ditando! Com coerência, força e originalidade.
Cultura sneaker e hip-hop no mundo
O hip-hop e seus tênis nunca ficaram restritos às ruas do Bronx. Eles atravessaram oceanos e ganharam vida própria em contextos diversos. Na França, por exemplo, nas pistas de break dos anos 1980, sneakers como o adidas Superstar e o PUMA Suede viraram extensão do movimento, enquanto o uso e personalização dos pares revelavam criatividade periférica, antes mesmo do streetwear se tornar moda massificada. Em paralelo, por todo o planeta, o hip-hop encorajou comunidades locais, da Ásia à América Latina, a adotar os tênis como parte de um linguajar visual híbrido: não só como objeto de consumo, mas como componente estético-cultural, de identidade e pertencimento visual.
Exposições, memória e presença viva
Não é de hoje que a cultura sneaker vem sendo reconhecida como patrimônio estético, simbólico e histórico. A exposição The Rise of Sneaker Culture, realizada entre 10 de julho e 4 de outubro de 2015 no Brooklyn Museum, foi uma das primeiras grandes mostras a reconhecer os tênis como artefatos culturais. Nela, modelos como o Jordan 1, os Yeezys e os adidas Superstars foram apresentados em um contexto museológico, destacando seu papel na formação de identidades, discursos e movimentos culturais.
Em São Paulo, a exposição HIP-HOP 80′sp – São Paulo na Onda do Break (no Sesc 24 de Maio até março de 2026) traz mais de 3 mil peças da memória hip-hop, incluindo vestimentas, figurinos e objetos de resistência diária.
Essas iniciativas confirmam: o sneaker já é objeto histórico, símbolo visual e parte ativa da narrativa cultural.




Mais de 3 mil peças da memória hip-hop podem ser visitadas na exposição HIP-HOP 80′sp – São Paulo na Onda do Break
O hip-hop fez o tênis existir como cultura
O tênis, visto isoladamente, é apenas equipamento esportivo. Mas calçado por quem traduz vivência, criação e estética, ele vira mapa de identidade. O hip-hop pavimentou essa trajetória, costurando atitude, música, comunidade e estilo em cada cadarço. Sem essa história, o sneaker talvez fosse só design e performance. Com ela, virou linguagem viva, corpo em movimento e memória que pisa firme no presente.