10 anos de RÁ!, de Rodrigo Ogi
Há uma década, Ogi se consolidava como um dos melhores cronistas do rap brasileiro

2015 foi um puta ano pra música brasileira: a veterana Elza Soares voltou aos holofotes com o brilhante Mulher do Fim do Mundo, já o estreante Johnny Hooker se lança com o elogiado Eu Vou Fazer Uma Macumba Pra Te Amarrar, Maldito!, e Black Alien colocava no mundo um dos discos mais aguardados da década, Babylon By Gus – Vol. II: No Princípio Era O Verbo. Mas um dos álbuns que mais me pegou naquele ano foi RÁ!, de Rodrigo Ogi, um trampo daqueles que ficam marcados na memória, e do qual lembro a primeira vez que ouvi Ogi bater na porta do terapeuta e, ao ser perguntado sobre como estava, responde com “Aventureiro”, faixa que abre o disco.
Quatro anos antes, o rapper que já era conhecido pelos trabalhos no grupo Contrafluxo, fez muito barulho com Crônicas da Cidade Cinza (2011), seu primeiro disco solo, e que de cara já o consolidou como um dos maiores contadores de histórias não só do rap, mas da música brasileira. A influência na literatura e nos quadrinhos, fez com que imagens fossem construídas a partir das rimas e a cidade de São Paulo deixou de ser pano de fundo para ganhar lugar de protagonista nas letras de Ogi. O trabalho subiu muito a barra e a expectativa pelo próximo álbum era grande, não só para o público, mas para o próprio artista por trás das rimas.
Na época eu coloquei muita pressão e algumas pessoas também colocavam essa pressão, porque o Crônicas da Cidade Cinza foi um disco muito bem aceito e muito bem falado. Foi um disco que me abriu muitas portas e eu fiquei quatro anos trabalhando depois do Crônica para lançar o RÁ!. Fiz algumas participações, mas disco mesmo, não. E aí ficou essa pressão, sabe? O povo achando que eu tinha que fazer um disco tão bom quanto o de estreia, que foi o Crônicas da Cidade Cinza. E eu também me coloquei essa cobrança.
Eu tenho sempre esse lance de querer superar os trabalhos anteriores e isso hoje em dia acontece naturalmente, porque a gente vai evoluindo. Eu estou sempre nessa busca de evolução, assim como o Marcelo D2 está procurando a batida perfeita, eu estou a procura da lírica perfeita, que é uma coisa que nunca vai existir.


A capa original do Crônicas da Cidade Cinza, com arte d'Os Gêmeos, e a capa comemorativa de 10 anos, com arte do Loud
Mais do que atingir as expectativas, o “RÁ!” conseguiu elevar o nível do corpo de trabalho do artista, sendo reconhecido não só no rap, mas na música brasileira em geral. Os limites do gênero, aliás, são ultrapassados por Ogi, e isso não é uma crítica, já que as histórias contadas e o flow único que ele imprime nos versos funcionam muito bem no samba, na MPB, ou no rock, e que também dialogam com sons que ele estava ouvindo durante a produção do disco.
Eu estava ouvindo muito rap, como sempre, muito samba, estava lendo muito João Antônio, que é um escritor muito foda... Eu sempre fui um cara que ouve muito rap, mas também abria a minha cabeça para ouvir vários estilos de música. Então todos os meus trabalhos tem essa mistura um pouco daqui, um pouco dali, sabe?
Ogi provavelmente é um dos melhores contadores de história da geração, e parece ter um olhar muito afiado para as cenas do cotidiano, fazendo com que tudo se apresente de forma muito interessante. O álbum gira em torno de uma sessão de terapia, na qual Ogi expõe temas particulares, mas também como enxerga o espaço em que habita, com foco na cidade de São Paulo. Em certo momento ele diz para o psicólogo: “Sinto que é como se tudo que eu visse, eu absorvesse”, e realmente RÁ! é contada como se fosse uma colagem de vários momentos da vida dessa pessoa deitada no divã.
Na sucessão de histórias, o jeito de contar é muito similar ao das crônicas, gênero dos mais brasileiros, criado como narrativa curta, geralmente impresso em jornais e revistas. Situações do dia a dia ganham contornos profundos, às vezes cômicos, por vezes dramáticos, ou até fantásticos, mas sempre com uma carga visual muito forte. A descrição de pessoas, espaços, sons, sensações, tudo contribui para que a história contada seja fácil de ser compreendida e imaginada por quem lê, ou nesse caso, por quem ouve. As discussões sobre o que é Literatura são muito amplas, e nem vamos entrar nesse campo, mas a escritora Aline Valek, no episódio “Literatura e Racionais MCs” do podcast Bobagens Imperdíveis, discute como o domínio de narrativa no rap é uma lente muito similar ao de gêneros literários, e RÁ! para mim é o exemplo perfeito. O som, a forma de rimar, os diferentes tons de voz que Ogi impõe e até a sonoplastia para ambientar o local.
A faixa hahaha é um excelente exemplo de como Ogi conta histórias dentro de histórias
Agora voltando pro álbum, tudo isso só foi possível graças ao baita time montado por Rodrigo Ogi, que contou com Nave na produção musical e dos beats sujos e cheios de ruídos analógicos, André Maleronka na direção artística e na voz do terapeuta que busca entender o que se passa na cabeça da pessoa que busca ajuda em sua frente, e claro nas participações especiais: Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Daniel Ganjaman, Rael, Carlos Café, DJ Nato_PK, e até o Mao, da banda punk Garotos Podres, para reforçar o que eu disse antes sobre brincar com os diferentes estilos musicais. Um baita acerto.
O RÁ! foi o álbum que possibilitou muita coisa. Quando saiu eu senti mais consolidado na cena, as pessoas conhecendo mais meu nome.
Eu gosto de muita coisa naquele disco! Lógico, hoje em dia eu teria feito diferente na construção de rimas; na produção, não. Acho que o Nave e o pessoal que trabalhou junto ali, o Thiago França, Kiko Dinucci, o Ganjaman e tantos outros, Carlos Café, o Doni Júnior, eles foram impecáveis, principalmente o Nave na construção de tudo, junto com o meu parceiro, o André Maleronka, que também teve muito presente nesse disco.
Eu gosto muito desse disco, tenho muito carinho por ele assim e espero, a cada dia, se torne importante na vida de outras pessoas também. Cada dia mais vão conhecendo esse trabalho e gostando dele tanto quanto eu gosto.
Dez anos depois, “RÁ!” definitivamente envelheceu como um vinho quando se trata de som, mas é triste observar que muito da realidade apresentada no disco, principalmente da realidade dura das ruas, pouco se vê de mudança. A faixa “Na Estação da Luz”, por exemplo, soa como uma foto do mesmo espaço abandonado pelo Estado há 30, 20, 10 anos e ainda hoje. Mas o trabalho é celebrado como aquele que colocou Ogi nos fones e caixas de muita gente e atualmente é tocado em shows comemorativos e agora com banda.
Com banda o trabalho cresce muito, muito mesmo, vem outro peso para o som. Esses shows comemorativos eu tenho feito a maioria com banda, e eu vejo o quanto isso acrescenta ao trabalho. Quem puder vá conferir o show, porque cresce muito, fica muito foda.

E enquanto isso, fora dos palcos Ogi cozinha o próximo trabalho, dessa vez com NiLL, e logo mais veremos o que sai dessa mistura de mentes tão brilhantes do nosso querido rap nacional.