Windows: o delírio solitário de Professor M.Stereo

Criado no auge da pandemia e sem instrumentos reais, Munhoz transformou isolamento em alquimia sonora

Windows: o delírio solitário de Professor M.Stereo
Foto de Flavio Samelo

Depois de 20 anos do lançamento do clássico do hip-hop underground Beats e Rimas Vol. 1, longe dos holofotes e carregando no currículo contribuições marcantes em projetos como Ascendência Mista, Contrafluxo, Mamelo Sound System e Zulumbi, Tiago Munhoz – através de seu alter ego Professor M.Stereo – colocou na rua Windows, um disco instrumental potente que passeia livremente por gêneros como jazz, afrobeat, fusion, trilhas sonoras de filmes antigos e música brasileira orquestrada dos anos 60/70, condensando e materializando cinco anos de um processo extremamente solitário, intenso e inventivo.

Totalmente feito no computador, sem nenhum instrumento real tocado nem recorrendo ao uso de samples, Windows nasceu durante a pandemia, quando Munhoz, isolado e inquieto, encontrou na música um refúgio e uma forma de manter a sanidade. “Eu sempre recorri à música para elaborar o que me perturba. Produzir me faz sentir minimamente útil”, conta. A construção foi solitária e artesanal: 80% das músicas foram feitas no mouse, pintando notas no midi para criar a ilusão de instrumentos reais. “Queria partir de algo ‘falso’ e vender essa ilusão de uma música que parece de um tempo indefinido.”

O disco reflete esse processo de ilusionismo: Munhoz buscou imperfeições, fugiu dos padrões pré-estabelecidos pela indústria e trabalhou para que as faixas não soassem limpas demais ou estéreis, escapando da estética “música de elevador”. Mesmo assim, encontrou um equilíbrio entre definição e sujeira, num hi-fi contido, que traz texturas psicodélicas, o peso dos graves e a crueza do lo-fi em perfeita harmonia.

Capa de Windows por Flavio Samelo com tipografia de Frederico Antunes

Concebido para caber em um vinil de 40 minutos e 10 faixas, Windows é também uma colagem de diferentes momentos criativos: algumas faixas, como “Natsukaze”, “Picles de Manga”, “Miss Kaye”, “Davi & Arthur” e “Já Contei Prucê?”, nasceram ainda no auge da pandemia, entre 2020 e 2021. Outras surgiram mais tarde, como “Murder on the 13th Floor” – que quase ficou de fora por um arquivo corrompido e acabou sendo incluída em versão demo – e “Mocassim Bicolor”, última música feita já em 2025, a partir de um esboço completamente transformado, que acabou se tornando meio que uma depuração de todo o processo do disco.

A espontaneidade e o improviso deram o tom do processo criativo: Munhoz começava muitas vezes por uma harmonia, três ou quatro acordes, às vezes um loop de bateria, só para ter algo rítmico, e deixava as ideias se desdobrarem organicamente, perseguindo timbres e referências que vinham à mente. “Davi e Arthur”, por exemplo, é como se fosse uma parceria imaginária entre David Axelrod e Arthur Verocai, combinando guitarras espaciais, pianos sessentistas e arranjos que remetem ao jazz orquestrado.

As referências são tão diversas quanto pessoais: “Miss Kaye” homenageia a lendária baixista Carol Kaye, do Wrecking Crew, que tocou no também lendário Pet Sounds do The Beach Boys e em tudo mais que você possa imaginar de música que foi gravada em Los Angeles nos anos 50 e 60. Tijuana Brass, Nancy Sinatra, Monkees, as coisas do Wall of Sound do Phil Spector; “Murder on the 13th Floor” soa como um cruzamento entre Miles Davis, Donald Byrd (da fase Stepping Into Tomorrow, produzido pelos Mizell Brothers) e trilhas de Lalo Schifrin; “Panthro” reverencia Thundercat, com dois baixos sobrepostos e uma mix que, segundo Munhoz, deu trabalho; “La Muerte en Mi Bolsillo” abre o disco evocando o afrobeat de Fela Kuti e seu espírito destemido – o título faz alusão a “Anikulapo”, nome adotado por Fela, que significa algo como “aquele que carrega a morte no bolso”.

“Picles de Manga”, por sua vez, surgiu de uma levada de piano que Munhoz tinha guardada há anos, com um clima rítmico que ele associa a Dave Brubeck, e ganhou título inspirado em Herbie Hancock, famoso por nomes frutados como “Cantaloupe Island” e “Watermelon Man” – além do próprio picles de manga que Munhoz ama e aprendeu a fazer em casa: "Só comprar a manga meio verde, quando ela tá quase madura... meu vô chamava 'manga de vez'. Ela tá firme ainda, mas já meio doce. Coloca dill, e corre pro abraço".

A coerência entre as faixas foi outro desafio: “Sou de uma geração de álbuns, então precisava que tudo fizesse sentido junto”, diz Munhoz. Apesar de cada faixa ter sua própria identidade, a guitarra assume papel central, criando uma unidade que conecta do afrobeat ao jazz, passando por momentos que lembram trilhas de filmes dos anos 70 ou experimentações psicodélicas.

O resultado é um disco maduro, intrigante e cheio de camadas. Mesmo sem formação musical e estudo formal, depois de anos trabalhando em total isolamento, Munhoz retorna como um dos compositores e produtores mais inventivos da cena, entregando um álbum que, em muitos momentos, soa como se um sexteto estivesse no estúdio, com arranjos de metais e cordas elaborados, que nasceram de um só homem com um PC cansado e uma mente inquieta.

Quando pergunto a Munhoz se ele enxerga Windows ganhando vida no palco ou se o projeto é essencialmente de estúdio, ele admite que, a princípio, não via possibilidade alguma. “Sou incapaz de tocar qualquer coisa desse disco ao vivo, a não ser os baixos”, diz. “Mas, depois que o disco vai pra rua, que essa energia estagnada num disco rígido – codificada em zeros e uns – se espalha pelo mundo, as coisas mudam de figura. Eu realmente não pensava que essas músicas chegariam a ser tocadas ao vivo, mas agora já não tenho tanta certeza. Não há nada concreto, mas quem sabe esse projeto não tenha um segundo nascimento nos palcos? Quem viver, verá.”

Sobre o longo hiato desde seu último lançamento, Munhoz relembra que, depois de Beats e Rimas Volume 1 - que infelizmente não está disponível nas plataformas de streaming por questões relacionadas a não liberação de samples - concentrou suas energias no Contra Fluxo e no Mamelo Sound System até 2010. Em seguida, em meio a um crise de identidade, afastou-se da música para focar em trabalho e na vida pessoal. “A vida tem seus caminhos”, reflete. “Naquela época, passei por um período de muitas mudanças. Eu não queria que a música moldasse minha identidade, como acontece com tantos músicos, que acabam se apegando a essa ideia como atletas que não conseguem pensar em parar, mesmo quando estão infelizes. Mas a gente não consegue fugir da nossa própria história. É impossível".


ISMO
Cultura em movimento

Assine nossa newsletter e receba
as últimas notícias em 1ª mão!

Assine agora