William Baglione: Design & Cigarros

Entre o vício e a estética, um inventário visual sobre como o design molda comportamentos e atravessa o tempo

William Baglione: Design & Cigarros

Nos anos 80, no Parque São Lucas, zona leste de São Paulo, um garoto crescia entre as pipas, os balões artesanais e os muros recém-marcados por grafites e pichações. O nome dele era William Baglione, e foi ali, entre capas de discos de heavy metal e maços de cigarro, que ele teve seu primeiro contato com o design.

Artista visual, curador, fotógrafo e editor de livros, Baglione atua de forma expressiva na cena cultural brasileira e internacional desde os anos 1990. Sua trajetória multifacetada passa pelas artes visuais, curadoria de exposições, direção artística e publicações editoriais que dialogam com a cultura urbana, a fotografia autoral e a valorização de legados pessoais e coletivos.

“Eu comecei a colecionar pra tentar me aproximar do meu pai”, ele conta. “Foi uma tentativa meio frustrada. Quando finalmente me resolvi com ele, joguei toda a coleção fora.”

Décadas depois, durante a pandemia, o impulso voltou. Não como vício, mas como exercício de memória. “Ficar tanto tempo sozinho me fez olhar pra trás e revisitar coisas que tinham ficado mal resolvidas. E lembrei que o meu primeiro contato com o design foi justamente pelas embalagens de cigarro e pelas capas de disco.”

Foi daí que nasceu Design & Cigarros: A Arte De Colecionar Embalagens, livro recém-lançado pela Editora Afluente, que reúne centenas de embalagens de diversas épocas e países ao longo de 260 páginas. Um inventário visual extremamente rico que mistura arqueologia gráfica e autobiografia afetiva.

O livro parte de uma contradição: William nunca fumou, mas sua coleção revela o poder que o design tem de moldar comportamentos. “A indústria tabagista tinha muito dinheiro e aplicava técnicas de publicidade e psicologia pra atrair jovens, crianças e mulheres”, escreve no prefácio. “Nos anos 80, havia até marca que usava a imagem de uma criança fumando cigarros de chocolate.”

Mais do que nostalgia, o livro é um olhar crítico sobre a força estética e simbólica dessas imagens. “Colecionador é um cara meio chato”, brinca William. “Então eu precisava fazer um livro que pudesse agradar tanto quem é colecionador quanto quem não é, um público que não sabia que isso existia.”

Ele explica que organizou o material por blocos temáticos, como tipografia, ornamentos e pássaros, criando um guia visual e intuitivo. “Minha intenção era que as embalagens comunicassem por si só, pela força delas, pelo vigor.”

O projeto gráfico ficou a cargo de Claudio Rocha, velho parceiro de Baglione. “Mostrei o projeto e ele imediatamente falou: ‘deixa que eu faço, esse livro vai ser incrível’. Eu já tinha pensado nos temas, mas ele teve várias sacadas de associações estéticas pra montagem das páginas.”

As páginas mostram o quanto o design é capaz de refletir uma época. “É interessante ver as diferenças de estilos pelos diferentes países”, diz William. “Tem embalagens russas da Guerra Fria; nas brasileiras, dá pra associar claramente cada uma às épocas em que foram criadas, como os cigarros Craque, que te levam direto à Copa de 82. E nas americanas há uma coisa de cultura pop muito evidente.”

Entre uma embalagem e outra, ele aponta detalhes que só um olhar obsessivo notaria. “O Lucky Strike foi a primeira a trazer a marca na frente e no verso, pra que em qualquer posição que a pessoa segurasse o cigarro, a marca estivesse visível. Olha essa Kart brasileira, a tipografia e ilustração lembra muito a do Speed Racer, né cara?”

Apesar do tema, Design & Cigarros não é sobre fumar, mas sobre observar. “O livro não vem pra incentivar ninguém a fumar, mas pra criar, desenhar, se inspirar. Assim como quem não bebe pode se inspirar num rótulo de cachaça, que também são incríveis. É mais sobre forma do que conteúdo.”

No fundo, o livro também é um acerto de contas. “Eu me resolvi com isso em 2015. Antes eu era cabeça dura, revoltado. Depois entendi que minha raiva não era do cigarro, mas da falta de domínio que meu pai tinha sobre ele.”

Entre uma conversa e outra, William se emociona ao falar do poder simbólico desses objetos. “Tenho três quadrinhos na parede: a dupla de Lucky Strike verde e branca, pelo peso histórico; duas embalagens da Tigra, com a personagem que tatuei; e uma com um maço de Hollywood e um Belmold, simbolizando meu pai e minha avó.”

A dimensão do projeto vai além do design. É um convite ao olhar. “É fascinante como um objeto tão mundano pode carregar camadas de história, psicologia e arte”, escreve ele no prefácio. “Mais do que uma simples coleção, este livro é um convite pra desvendar essas nuances.”

Esse olhar também dialoga com o presente, num momento em que o físico volta a ser desejado. “Um amigo artista, o Cezar Menegueti, me apresentou o conceito de retrotopia, do Bauman, a saudade de um tempo que você não viveu. Hoje tem uma garotada da era digital filmando, revelando, comprando câmeras antigas. É uma geração com sede de materializar as coisas.”

William observa essa tendência com entusiasmo, mas também com um certo lamento. “É muito louco pra essa nova geração entender que absolutamente todas essas artes foram feitas à mão, sem Photoshop. Existe uma preguiça muito forte hoje. São raras as embalagens que marcam, poucas as empresas que se preocupam em criar algo realmente memorável, que se torne parte da cultura pop.”

No fim, Design & Cigarros é sobre enxergar o invisível. Sobre como o design se infiltra no cotidiano e ajuda a contar a história de quem somos, mesmo quando o objeto, como o cigarro, carrega um lado sombrio. É também sobre reconciliação: entre o olhar do filho e o silêncio do pai, entre o passado e o presente, entre a superfície e a memória.


Para mais informações sobre o projeto, ou adquirir o seu exemplar do livro Design & Cigarros - A Arte de Colecionar Embalagens de William Baglione, clique no link acima que te leva direto para o site da editora Afluente.


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