Se eu morrer não chore, não
O legado de Lô Borges e a composição como resistência à lógica de produção do mercado
A música brasileira perdeu um dos seus pilares mais importantes e, ao mesmo tempo, mais discretos. A notícia do falecimento de Lô Borges, aos 73 anos, pegou muita gente de surpresa e, como é comum quando grandes artistas se vão, fez toda uma comunidade se reconectar com sua história e, principalmente, sua obra. Lô foi um baita compositor, mas também representou uma escolha estética e ética: a de ser fiel à música, resistindo ao hype e à produção seriada. Em uma época que pouco se discutia, ou melhor, se enfrentava essa lógica, “o menino que leva jeito”, como a gravadora Odeon o chamou no início da carreira, se provou um defensor da arte a partir do seu próprio fazer.
Nascido em uma família gigante, o do meio entre 11 irmãos, Lô cresceu envolvido pelos movimentos culturais que definiram os contornos do que hoje entendemos por MPB, como a Bossa Nova e os Festivais de Música da TV Record, e anos depois ajudou a redefinir esses limites misturando elementos do rock psicodélico, do jazz e da canção latina. O caldeirão que ainda contou com o tempero da lírica mineira foi alimentado a várias mãos e, nas esquinas do bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte, Lô e seus amigos — nomes como Milton Nascimento, Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso — criaram o Clube da Esquina.

É muito doido pensar que, com apenas 19 anos, Lô foi peça fundamental do quebra cabeça sonoro construído pelo coletivo, e responsável por algumas das mais conhecidas e belas composições do disco de 1972, que leva o nome do grupo como título. Se alguns ficam surpresos ao pensar que George Michael compôs Careless Whisper aos 17 anos, eu fico impressionado com Um Girassol da Cor do Seu Cabelo sair da mente e mãos de um garoto de 19.
Essa musicalidade, talento e dedicação tão latentes no trabalho de Lô, o fez ser enxergado como um diamante bruto pronto para ser lapidado pelo mercado, que logo o quis como o novo expoente rebelde e hippie da música pop, categoria que o artista não só recusou como lutou para não assumir. No mesmo ano que o Clube da Esquina ganhava as ruas, Lô se viu pressionado a lançar um disco solo e, mesmo sem nenhuma composição na gaveta, aceitou a missão. O trabalho beirou a obsessão, já que fez o músico ficar trancado em casa por semanas para tentar compor o máximo o possível num curto período de tempo. Lô e seu irmão viraram noites para chegar no resultado que ficou conhecido como O Disco do Tênis.
O trabalho, cheio de imperfeições, cru, intimista e o que alguns hoje em dia chamariam de lo-fi, frustrou as expectativas mercadológicas da Odeon, e as expectativas de uma forma de se viver de música por parte de Lô. O disco não vingou graças a falta de investimento por parte da gravadora, justificado pela dificuldade em saber como vendê-lo, já que a sonoridade falava com uma minoria. Do outro lado, exausto e decepcionado, Lô Borges tomou uma decisão que definiu sua postura de outsider, ao pendurar as chuteiras e se recolher, abandonando a cena antes mesmo de ter entrado.

A capa do disco, uma fotografia de Cafi — como já abordada em outra matéria aqui na ISMO — é muito representativa, pois o par de adidas surrado representa o desejo de cair na estrada e sumir no mundo, algo compreensível para alguém tão jovem e que, do mais absolutamente nada, se viu com a responsabilidade de ser figura central de um movimento cultural. Lô não queria isso pra si e, nos dias de hoje, seria lido como low-profile, longe dos palcos e dos estúdios. Nosso Frank Ocean mineiro.
Em um momento em que ser artista musical significa não só fazer música, como se promover enquanto pessoa física, usar trends nas redes sociais, fazer turnês gigantes, postar o tempo inteiro e compartilhar a vida privada, é quase impossível considerar uma posição como a de Lô Borges, cujo talento era inegável, mas entendeu cedo não fazer parte do que o mercado exigia e exige.
Depois do álbum de estreia, só voltou a aparecer em 1978 no disco Clube da Esquina 2, mas agora em lugar de menos visibilidade, compondo faixas belíssimas como Pão e Água e Ruas da Cidade, mas sem fazer dupla com Milton Nascimento como no primeiro disco do coletivo. Lô se tornou um mestre na arte do “menos é mais”, mesclando melodias puras e simples com arranjos harmônicos sofisticados do jazz. Ele se afastou da necessidade de turnês gigantescas e da autopromoção incessante, construindo um público fiel na base da qualidade e do boca a boca.

Até o início dos anos 2000 foram apenas 5 álbuns, marcados pela intermitência do tempo e pela seletividade, como se escolhesse gravar só quando a música o convidasse. Como tudo tem os seus dois lados, tal postura o garantiu destaque de ídolo cult, com artistas revisitando suas obras e digerindo com o passar do tempo. Como um bom vinho, a resistência de Lô Borges à efemeridade do pop garantiu que sua obra se tornasse um referencial perene, reverenciado pelas novas gerações de artistas de diferentes gêneros, provando a versatilidade e atemporalidade de suas composições.
No pop-rock, fez colaborações de muito sucesso com o conterrâneo Samuel Rosa, como a faixa Dois Rios, do Skank, enquanto na gringa a banda de post-rock Tortoise chegou a regravar Cravo e Canela. Já a faixa Aos Barões, do disco solo de estreia, foi citada como referência por Alex Turner, do Arctic Monkey, para todo disco Tranquility Base Hotel & Casino.
No rap, conhecido pelos recortes via sampling, não tinha como o trabalho de Lô passar batido e são várias as faixas sampleadas, mas destaco aqui Calibre, sampleada pelo grupo Elo da Corrente, e mais recentemente Para Lennon e McCartney, usada como base para a faixa para Kendrick e Kanye, de Don L.

Os últimos anos
Há quem diga que a gente sabe quando se aproxima a hora da morte, e nas artes são várias as histórias de criadores que começam a produzir seu(s) último(s) trabalho(s) conscientes disso. Não sei se era o caso de Lô Borges, mas é notável o contraste entre a reclusão no início da carreira, e a prolífica fase que ele viveu nos últimos anos. Longe da aposentadoria que tentaram impor em 1972, experimentou uma explosão criativa inédita, desmentindo a ideia de que a arte deve diminuir com a idade ou com a indiferença do mercado.
A partir de 2019, o compositor engatou uma sequência invejável de lançamentos anuais, numa espécie de primavera tardia. Mas calma, não, esse período não me pareceu ser sobre buscar hits ou o sucesso que deixou, por opção, passar nos anos 1970, mas sobre uma urgência de criação, sobre esvaziar a fonte de ideias que a vida e, quem sabe, o período de isolamento tanto preencheram. Lô sempre falou sobre seu amor pela composição, como se fosse parte da sua concepção do que é estar vivo, e nos últimos anos colocou pra jogo tudo o que estava guardando.

A partir do álbum Rio da Lua, Lô Borges iniciou uma sequência de lançamentos, desafiando a lógica da indústria que hoje preza por singles, entregando álbuns completos, com conceito, e periodicidade anual. Sua produção se tornou mais fluida, mas manteve o espírito colaborativo, estabelecendo parcerias inéditas como a com o cantor Zeca Baleiro, com quem assinou seu último disco, Céu de Giz, lançado em agosto deste ano.
Em sete anos foram sete discos: Rio da Lua (2019), Dínamo (2020), Chama Viva (2021), Nuvem Cigana (2022), Aforismos (2023), Tobogã (2024) e o já citado Céu de Giz (2025). Neles, parcerias com Paulinho Moska, Beto Guedes, Fernanda Takai e Manuela Costa.
Apesar da hiperprodutividade, me parece que essa fase final não foi um retorno aos holofotes, mas o atestado de que Lô Borges havia resolvido o conflito entre o artista e o mundo. Ele compunha por vocação, por um diálogo interno com a música, e não para cumprir contratos ou expectativas. Em entrevista à União Brasileira de Compositores, Lô declarou: "não consigo parar de compor. tenho fascínio pelo desconhecido. Compor é como amolar faca: se fico muito tempo sem criar, ela fica cega."

Lô Borges deixa o legado de um artista que ensinou que é possível trilhar um caminho de artístico colossal mesmo que desafiando as regras do espetáculo. O Disco do Tênis, que deveria ter sido sua aposentadoria precoce, foi um ato de resistência pública. E ao final da vida, nos recompensou colocando no mundo tudo o que estava guardando. Difícil é cumprir o pedido “se eu morrer não chore não”, já que só de ouvir as composições os olhos já enchem de lágrima.