Sapaganjah e a resistência feminina na cena do grime
Uma conversa com a MC e produtora cultural que vem movimentado a cena do grime nacional pelos últimos cinco anos

Quando falamos de grime, estamos falando de uma cena majoritariamente masculina, com poucas mulheres tendo os seus trampos valorizados no decorrer dessas quase três décadas de existência do gênero.
No Brasil, lugar onde a cena é bem mais nova e pouco estruturada, isso fica ainda mais nítido. Quem acompanha a cena há mais tempo, com certeza já se deparou com a figura da Sapaganjah, MC que bate incessantemente na tecla do gênero nos últimos cinco anos.
Ela constrói hoje, juntamente com a Take4, o Terça Grime, um dos principais eventos que traz a energia real da cultura em Niterói no Rio de Janeiro, além de tocar a Faraoh Grime TV e seus lançamentos fonográficos, como a mixtape Brime Lorde, lançada no ano passado. Trocamos uma ideia sobre a sua caminhada e impressões sobre a cena do grime, o underground e a questão de gênero dentro desses rolês.
Como começou a sua relação com o grime? Qual foi o primeiro contato com o gênero?
Eu conheci o grime quando eu era barista em uma cafeteria de Curitiba — a gerente tinha acabado de voltar de um intercâmbio na Inglaterra, e o Skepta tinha acabado de lançar Shutdown, então ela voltou desse intercâmbio viciada na música e fez com que eu me viciasse também, e essa foi a primeira música de grime que eu ouvi.
Quando eu comecei a produzir com o Asafe, ele tava na pira do drill — isso uns dois, três anos depois — e a gente pulou para o grime de uma maneira rápida, mas nem tanto, porque o grime é difícil de produzir. Eu comecei a consumir os bagulhos de fora, a ver como os caras faziam lá, e eu tava na cidade de um dos grandes deuses do grime aqui no Brasil, que é o Meio Feel. Ele tinha feito uma festa em Londrina, em patrocínio com a marca independente Palcodois, e nasceu o primeiro Acidental. Para a gente ali no interior do Paraná era algo enorme, porque estava acontecendo um evento de grime, mas não tinha o protagonismo voltado para os MC's cantarem, e nessa primeira edição não teve Open Mic. Eu, vendo como os caras faziam na gringa, falei: "não mano, vamos fazer um bagulho nosso, chamar geral pra rimar."
E foi aí que a gente fez o Tenda da Tribo, o primeiro evento de grime com MC em Londrina, que contou com o MC Plebeu, o Ukranio, a galera que a gente vê na pista hoje. Pouco tempo depois, a galera do Bloco da Sul 44 veio dar um salve: "a gente quer fazer um bagulho de grime, mas nunca fizemos. Você manja dos bagulhos, e nós queremos que tenha uma mina." Aí eu fui lá e me coloquei nessa posição. Apucarana, Curitiba, a mesma coisa, então quer dizer — eu sempre vi a necessidade de ter que criar um espaço para que a minha arte pudesse existir dentro dele.

Eu não pensava tipo: "estou fazendo o primeiro rolê de grime aqui em Maringá porque isso vai fazer com que outros eventos surjam, com que outros projetos surjam." Não, era a minha necessidade, enquanto mulher — sabendo que eu não seria chamada, sabendo que tinham poucos eventos, que não eram voltados para essa mecânica de MC, e quando tinha mecânica de MC, não tinha nenhuma mina. Então essa foi a premissa que fez com que a Sapaganjah deixasse de ser só uma cultivadora e pesquisadora canábica e entrasse de cabeça no mundo do grime, e acabasse por onde passando, fazendo projetos de grime.
Isso começou em 2020 e com você morando em Londrina?
Isso, o começo foi em 2020. Eu morava em Londrina, houve esse evento do Meio Feel, só que não era voltado para MC, então a gente fez o Tenda da Tribo — voltado para MC e aberto para a galera. Fiquei em Londrina por bastante tempo, e quando o Bloco da Sul mandou mensagem para mim — eu acho que isso foi em 2021, através do Pedro Uchoa — eu já vi uma oportunidade imensa de colocar um cara que eu super era fã, e chamei o Meio Feel para essa.
Foi a minha primeira viagem pelo grime, atravessando ali duas cidadezinhas — Londrina e Maringá é muito perto — e daí nós não paramos. Eu sempre estive muito envolvida em movimento cultural, então toda roda de rima que eu ia, eu sempre fiquei responsável por puxar a roda de grime, por ter os beats ali no pen-drive e puxar essa dinâmica. Tanto que a primeira batalha de rima que fiz, que foi a Batalha da Planta, a gente soltou um grime ali para a galera rimar.
O GRIMOTHER, esse apelido que eu tenho dentro do underground, eu nem gosto muito, porque remete a isso que toda figura feminina é sempre a figura materna, mas eu entendo. Eu entendo daonde vêm, porque uma das primeiras vezes que eu ouvi — tirando o Villas e os moleques de Curitiba pedindo benção — foi a minha irmã Afrodith.
Saindo de Londrina, eu fui para Curitiba, e lá eu conheci o quilombo cultural Faraoh Records, e com eles eu fiz o primeiro set de grime com MC em Curitiba. Na Faraoh eu fiquei um pouco mais ambiciosa e quis levar para a internet, então foi a primeira vez que eu coloquei um set online, e comecei a fazer umas loucuras. A gente é um quilombo urbano cultural, então são 12 jovens negros, multiartistas, movimentando a cena cultural em prol do protagonismo preto.

Uma das minhas irmãs é a Afrodith, ela é uma mulher trans, e assim como eu, ela é da cultura ballroom. No nosso festival Novembro em Kemet, eu falei: "o vogue beat, assim como o grime, é filho do dub — eu preciso unir o ballroom com o vogue beat." A gente fez a terceira edição do Faraoh Grime TV chamando a galera do Ballroom Paraná, então teve vogue beat, teve grime — a nossa roda de grime contou com três representações da cultura ballroom, uma de cada casa, sendo duas mulheres trans, uma mulher travesti, e eu.
O que eu mais gosto da cena ballroom é que ela é uma cena de periferia mesmo, de favela, de gente preta, e que não tem nenhuma discriminação com ninguém. Você pode ser uma pessoa hétero que nunca pôs a cara no ballroom e querer desfilar pela primeira vez e ninguém vai rir de você — você pode não tirar a melhor nota na categoria, mas ninguém vai rir de você. No meio de tudo isso, a Afrodith acabou soltando: "a Sapaganjah é nossa GRIMOTHER."
Na cultura ballroom é um apelido que faz sentido, porque é um espaço onde os coletivos funcionam como família — os criados são Mothers e Fathers, e cada novo membro que entra ganha responsabilidade e representa o nome da família nas apresentações de vogue. Mas para o grime na minha cabeça não fazia sentido, só que o Villas estava lá nesse mesmo evento, e eu não sei se ele ouviu o comentário da Afrodith, mas foi a primeira pessoa genuinamente da cena do grime a me chamar assim — ele já pedia benção porque já me chamava de madrinha.
Porque querendo ou não, por mais que seja pouco, cinco anos na cena do grime é muito — se a gente for parar para pensar que o grime tá estourando agora na terra onde ele nasceu — então os moleques sempre me chamaram de madrinha. Mas aí quando ele ouviu GRIMOTHER a primeira vez ele ficou, e o que eu vou fazer, né? O vulgo a gente não escolhe. É massa por ser um termo que colocou para balancear a minha história, e por mais que eu não ache justo, eu não posso negar que eu sou digna dele.


(Divulgação / Sapaganjah)
E como foi o caminho desde esses rolês até chegar ao Terça Grime, nos dias de hoje?
A Faraoh era um quilombo urbano cultural que funcionava em um bairro de classe alta em Curitiba, que é a terra da Lava Jato. Quando o Sérgio Moro fez a Lava Jato, a casa do Moro entrou como ponto turístico, então aquele ônibus que vai passando em pontos turísticos passava na frente da casa do cara — isso para ilustrar o quanto Curitiba é fascista.
Dentro desse fascismo todo, a gente sofreu uma retaliação muito grande lá — o nosso espaço cultural começou a sofrer perseguição policial. Era uma casa linda, só que toda grafitada, e às vezes a gente tava lá trabalhando, fazendo música, fazendo workshop, e passava um pai com um filho e falava: "não olha não filho, isso aí é casa de bandido, de traficante." A gente passou por várias repressões policiais lá, vários enquadros, e acabou perdendo a casa — a dona da casa entrou com uma ação, foi muito racista, uma truculência muito grande. O quilombo Faraoh ainda existe, a gente quer continuar com alguns projetos, mas não tendo a mesma estrutura que a gente tinha antes é meio difícil.
Nisso, a vida me trouxe para Niterói. Minha mãe nasceu em Niterói, mas ela saiu daqui com 12 anos de idade, fugida do pai dela, então ela nunca teve a oportunidade de crescer em Niterói — a minha vó viu o museu ser construído, mas nunca pôde ir nele. Então quando surgiu a oportunidade de eu vir para cá — a Faraoh estava passando por tudo isso, de vamos existir, não vamos existir — eu falei: "vou me jogar para lá." Eu acredito que a Faraoh é mais do que a gente tem em Curitiba, por mais que a gente faça coisas importantes lá — a gente ganhou o reconhecimento, levou para meios institucionais a violência que a gente estava sofrendo — eu achava que a Faraoh não pode ficar limitada a lá.
Vim para Niterói, e uns dois meses depois eu vejo um evento da Take4, o Djalma Mete Ficha, em que os moleques encerraram com uma roda de grime. Aí eu fui, conversei com o Tomaz e comecei a ir atrás dos moleques da Take4 — o Lulo e o Gabriel da Faraoh estavam aqui, eles vieram me ver na mudança, apresentei eles e o Tomaz falou: "vamos fazer essa loucura?"
Show da Mari Torquato no Djalma Mete Ficha, evento daTake4
O Tomaz é filho do Dino Rangel, que é um dos maiores nomes do jazz nacional, e muito responsável pela descoberta e pelo desenvolvimento de muitos artistas de Niterói — inclusive quando a gente fala de Gustavo, de Black Alien rimando em cima de beat de jazz, a gente tá falando de Dino Rangel promovendo isso, em um evento que acontecia na segunda, que era a Segunda Jazz. Na terça-feira acontecia a Terça Reggae, isso há uns 10 anos atrás. Olhei para o Tomaz e falei: “vamos meter na terça o grime porque é a mesma coisa, os caras só não sabem. A gente sabe que é a mesma coisa".
E aí surgiu a Terça Grime, que para mim é tudo. O primeiro evento em Londrina, em Maringá, ter criado a Faraoh Grime TV, tudo isso me preparou para o Terça Grime. Porque ele é o evento, a rádio, o episódio, a marca de streetwear, mas ele é também exposição de arte, ele é o bate cabeça que eu amo — o primeiro evento que eu fui do ANTCONSTANTINO foi com o Kbrum, a turnê Blade, e eu decidi que era aquilo que eu queria para a minha vida, porrada e grime.



Flyers do Terça Grime (Reprodução / Instagram / @terca.grime)
Então ao mesmo tempo que a minha história construiu muito para a cena, a minha trajetória ajudou e construiu muito para o que eu faço hoje. Não é desmerecendo todos os filhos que eu tive antes — a Faraoh, o Tenda da Tribo, o Maringrime — mas o Terça Grime é a junção de tudo, o ponto focal. Então acho que disso vão sair várias outras coisas, diferente do que aconteceu antes — de algumas adversidades terem brecado os outros projetos — eu acho que não tem adversidade que pare o Terça Grime hoje. Eu vejo ele como um gigantesco ponto focal, e vai estar fazendo um ano mês que vem, é muito louco pensar nisso. O primeiro Terça Grime ocorreu dia 16 de julho, dia do meu aniversário, então a gente faz um ano juntos, eu e o projeto. A gente tá enfrentando várias dificuldades, mas a gente não para.
Uma das dificuldades é que a gente não tem mais a casa em que a gente fazia o projeto antes, o São Dom Dom, que fechou por motivos estruturais. Mas a gente não vai parar, a gente vai arrumar outra casa, caso funcione até meia noite, nós vamos catar a caixa de som, vamos para frente do São Dom Dom e vai torar o pau até a polícia nos mandar embora. Porque a gente é preto, favelado, periférico fazendo cultura, se fosse playboy não ia acontecer isso, então nós vamos ficar lá até o pau torar. E eu estou pensando em comprar uns sprays de tinta para a galera — xarpi sempre esteve muito junto — para mim é o bate cabeça, xarpi, faz muito parte do grime, como se fosse uma coisa só, então eu não consigo separar. Já sei que no aniversário do Terça, vou comprar umas seis latas e vai ser bagunça.

Então toda a sua trajetória culminou no Terça Grime — o que ele representa para você?
Ele representa uma nova lente — às vezes a gente tá olhando na direção certa mas o óculos só está um pouquinho sujo. Foi através do Terça Grime que eu me descobri GRIMOTHER, foi por ter mostrado para mim que tudo que eu vivi antes culminou nele, que eu aceitei esse apelido — porque eu fiquei um tempo sem aceitar, os moleques vinham pedir benção eu achava muito ruim — eu já sou uma das únicas mulheres na cena que bate incessantemente no grime.
Tem mulher no grime — a gente tem a Scarlett Wolf, que tá há uma cota também — mas que constrói, que faz, estou há cinco anos nessa luta dedicada ao grime e seu braços, meu corre não é mentira. O evento de BH, dos moleques da MKS, saiu porque eu insisti muito para eles fazerem. Os meninos estavam inseguros, é difícil você não ter apoio financeiro e querer fazer. Eu liguei para o Guizz e falei: “Guizz, se der errado, você vai ter que tirar do seu bolso”, porque é isso que significa ser produtor, infelizmente.
Teve um Terça Grime que a gente queimou uma caixa de som que tínhamos pegado emprestado, e eu e Tomaz tiramos o dinheiro do bolso para pagar, pois o evento se pagou. Para mim como produtora, os artistas, o pessoal da portaria, do bar, são muito importantes nesse financeiro. Então o Terça Grime me mostrou que ser GRIMOTHER não é ruim, que posso usar minha experiência para ajudar e somar.
E como foi a recepção do público com esse rolê? Já rolava grime na região?
Tinha grime? Não vou falar que não tinha. O Tom, que é meu sócio no Terça, ele tinha a roda do Calimbá — aqui no Rio de Janeiro é covardia sem fim, o Tomás tinha um amigo que gostava muito de grime. Quando o Salatiel morreu na covardia, o Tomás saiu pixando a cidade inteira, e criou a Roda Cultural do Calimbá — nos finais da roda ele metia um grime e o MC que queria pular, pulava. Nos eventos da Take4 ele sempre puxava, mas não tinha um evento dedicado para o grime, onde você ia ouvir desde a criação do grime até essa dinâmica de agora, com MC, então o Terça Grime de fato foi o primeiro a olhar para o MC e falar: "gostou de grime? Então vem aprender o que é."
Set do ANTCONSTANTINO com os MC's no Terça Grime
Nessa questão de ensinar, eu não posso deixar de dar um salve para uma pessoa que é muito importante para que esse projeto tenha se desenvolvido da maneira gigantesca que se desenvolveu, que foi o ANTCONSTANTINO. Eu fui em um show dele aqui no São Dom Dom — ele já me conhecia, afinal sou fã do cara há anos — e eu falei que fazia um evento de grime nas terças-feiras, daí ele: “terça-feira, e dá bagunça?". Eu falei: “dá bagunça, tu vem?”. Ele colou e ficou impressionado — terça-feira, três da manhã, o pau torando, casa cheia, ele falou: “é isso", e aí ele fechou com nós.
Você falou sobre a questão de ser a principal representante da cena nacional e eu queria saber como você enxerga essa questão de gênero no grime.
Cara, é muito difícil lidar com homem na cena, e quando a gente para pra falar da cena artística, se não é o teatro, os homens são a maioria. Quando eu falo que tem muita mina boa no grime, tem. Mas eu estou no grime há cinco anos, e mesmo assim, quando uma das pessoas mais importantes da cena solta um set no meio do centro do Rio e convida três minas para compor a line, os manos que tão em volta não deixam as minas da line pegar no microfone, brigam pelo microfone.
Você com a mão no microfone, alguém do lado falando: "ah, eu prefiro a de fulano que é melhor" — o fulano é da crew dele. Porque todos os caras tem uma crew, todos os caras tem um clube do bolinha. Quando eu falo que eu sou a mina que mais bate tecla no grime, é isso, porque eu sou a que mais bate de frente. Tem muita mina que passou pelo grime e se deparou muitas vezes com um ambiente inóspito, porque quando a gente é minoria é difícil, e foi para algum outro ritmo, algum outro gênero, ou ficou flexibilizando entre os gêneros porque é um pouco mais fácil.
Eu vejo que, no grime, há cinco anos, eu sou essa mina que tá batendo de frente, até conseguir, e estou conseguindo agora esse respeito dos caras. É eu conseguir ligar para o Piores, para o Guizz, trocar uma ideia com o Bbto, com o Agostode2002. Até para os grandes nomes da cena — eu falei com o Enigma na semana passada: "eu não estou acostumada a ter o número de vocês no meu WhatsApp, mandar mensagem pra você, pro Antônio, pro KBrum, não vou me acostumar nunca."

A questão de gênero para mim é continuar batendo de frente, porque é muito difícil ser mulher em qualquer coisa, e em uma cena que tem muito menos mulher, é mais ainda. O que eu tento falar nesta mensagem é de tentar fazer mais minas pularem na bala.
Eu vejo ao longo do Brasil, as minas pulam na bala nos sets — mas há um tempo atrás, viralizou os desafios dos beats de grime, e você via pouca mina participando. Você tá vendo os manos colocarem som na pista, os manos punhetar uns aos outros, ficam compartilhando o som um do outro, e você vê poucos sons de grime das minas na pista.
Tem o meu EP de grime, tem o EP da Tremsete, uma coisa ou outra, mas ainda não chega a ser um terço do que os homens colocam na pista. Estou há cinco anos batendo nessa tecla, deve ter alguma mina que eu não conheço que tá há mais tempo também, mas o que eu preciso é que a gente comece a produzir e a jogar na pista. Que coloque o que tem, o que tá fazendo, no ouvido do pessoal, porque só assim a gente vai conseguir crescer de fato essa porra.
Uns dois meses atrás todo mundo ficou: "ah, a Jorja Smith lançou um melódico no grime" — Mari Torquato, aqui de Niterói, vai lançar um feat comigo mês que vem. Mari Torquato, ela solta um falsete no grime — é nosso, é mina! Tem som na pista? Não tem som de grime.
Então é isso, é um apelo que eu estou fazendo para as mulheres, porque se nós queremos bater de frente, não vai ser só batendo de frente na postura, ou falando: “se você não me der um espaço, eu vou criar um espaço e vou por minha arte”, mas é também criando arte, principalmente mulheres negras. A gente vêm de uma sociedade que poda a gente, poda nossa história, poda a nossa ancestralidade, então é uma obrigação nossa dar continuidade no que a gente sabe fazer.
Para finalizar, cite algumas minas que tão movimentando a cena do grime nacional, porque gente talentosa não falta, né?
Às vezes falta na hora de conseguir se colocar. A mina sabe o que funciona para você produzir um som, os caras se ajudam: “tenho um homestudio lá em casa” — fica internado no homestudio jogando videogame e fumando maconha. Cola a mina no homestudio pra ver, se não tá tocando um Eric Clapton, um vinhozinho, baseadinho já bolado e a luz apagada amarela, tá ligado? As minas têm que lidar com isso, as minas têm dificuldade de produzir, têm dificuldade de por o som na pista, as minas têm dificuldade de estar nos espaços.
Daí o que eu falo é que a gente tem que criar os nossos espaços, a gente tem que começar a blocar, chamar os caras, fazer a bagunça e blocar entre nós para começar a produzir. Tem muito trampo na pista ainda que eu quero ver, trampo de taldiBruna, ela representa no grime. Mari Torquato, a minha promessa, uma mina que eu abençoei no grime, coloquei no time do Terça Grime, tem muita coisa boa pra trazer. Preta Lua, amassa demais no grime, quero bastante coisa na pista, amassa daquele jeitão que a gente gosta, com putaria, com voz, com presença de palco, sem abaixar a cabeça pra macho. Urubudalama (RUBI) também — um salve para a rapaziada do Terra à Vista — com essa gigante também que amassa, que faz uma bagunça.




Da esquerda para a direita, de cima para baixo: taldiBruna, Mari Torquato, Preta Lua e RUBI (Reprodução / Instagram)
Eu gostaria muito de ver mais e mais trampos dessas minas, mas eu quero que muitas outras coloquem trampo na pista e que minas como Tremsete continuem fazendo grime, continuem metendo o louco, porque a gente precisa. A gente precisa, e nessa missão, vem aí, antes do fim do ano, a minha próxima mixtape.
A minha primeira mixtape eu fiz intitulada Brime Lorde, porque eu quis mostrar para o mundo qual que era a minha interpretação de Brime. Eu comecei a criar a mixtape quando o Fleezus cunhou esse termo, e o "Lorde" porque todas as músicas vieram da interpretação do texto da filósofa negra Audre Lorde, que é uma filosófa preta, lésbica, que convida as mulheres a se apropriarem do erótico como si mesmas. Porque o erótico está ali, mas é apropriado pelos homens, manipulado pelos homens muitas vezes, então quando Audre Lorde, pretona, nos anos 70, fala para as minas: “ei, o erótico é nosso, não é o que eles leem", eu coloco isso na minha existência lesbiana e crio o Brime Lorde.

Minha próxima mixtape vai vir com a energia dessa conversa que a gente teve, com essa ciência da responsabilidade que eu sei que eu tenho, e que eu acabei causando, acabei criando, e de mostrar que ela não é tão pesada quando é compartilhada. Então ela conta com o Fungi, com o Sucateiro, Enigma, J3LLYX, com os grandes produtores e beatmakers que tão fazendo esse corre — TCO, GR33G, os moleques da Baga de Flor, tão fazendo esse corre no underground, movimentando, mas que acabam não sendo conhecidos.
Até antes do Antônio ir para a gringa e fazer uma revolução do grime nacional — porque eu vejo que o ANTCONSTANTINO, tendo ido pra gringa, ele revolucionou o grime nacional, existe o grime antes e depois do Antônio ter feito a turnê dele — antes disso acontecer, eu falava: "rapaziada, o pessoal não gosta de grime no Brasil, o pessoal gosta de Brasil Grime Show." E agora a gente tá mostrando, e vendo, que o pessoal gosta de grime, então temos que colocar bagulho na pista. Agora é a nossa hora.
Muito do que existe e está sendo criado hoje em dia quando falamos de grime no Brasil é por causa da presença e das movimentações dessa grande artista nesses últimos anos. Valorize e acompanhe o trabalho de Sapaganjah, da Faraoh Grime TV e do Terça Grime nas redes sociais.