Quem são os vilões da Vilanismo?

A irmandade de 10 homens pretos que desafiam a cena de arte contemporânea

Quem são os vilões da Vilanismo?
Vilanismo, Cortejo Negro, 2024. Foto: Rodrigo Zaim

vilão - adj sm
Que ou o que nasce ou habita em vila.
Que ou o que tem origem plebeia; plebeu.
adj
A que falta aprimoramento ou acabamento; rudimentar, rústico.
sm
O personagem que representa o lado mau e sórdido, em contraponto ao mocinho, em telenovelas, peças teatrais e filmes. (Dicionário Michaelis online)

Todas essas definições da palavra vilão, além de outras mais, de alguma forma são apropriadas, reforçadas e/ou ressignificadas pelos membros da Vilanismo, uma irmandade de homens pretos das artes contemporâneas, como eles mesmos se apresentam. O grupo nasceu em 2021 a partir do encontro de criadores que juntos tinham e ainda tem como objetivo desafiar a estrutura padrão das artes visuais, tensionando os pilares de raça, gênero e classe em suas criações.

Composta por homens oriundos das periferias do país — daí o nome Vilanismo —, a irmandade se alimenta dos signos e significados, visuais ou não, que os acompanham por toda a vida, como família, fé, música e cultura, para se desatrelarem das visões e expectativas criadas por quem os enxerga de fora. 

Atualmente a (ou o) Vilanismo está presente na 36ª Bienal de São Paulo, com a instalação Os meninos não sei que juras fraternas fizeram, título que sai do texto “A gente combinamos de não morrer”, de Conceição Evaristo, uma das muitas referências para o coletivo. O espaço que se encontra no 3º andar da Bienal recria um ateliê de arte, onde quem visita pode mergulhar nas obras de cada um dos vilões e ir aos poucos descobrindo quem são como artistas e como conjunto. 

Atualmente a Vilanismo é composta por Carinhoso, Daniel Ramos, Denis Moreira, Guto Oca, Ramo, Renan Teles, Robson Marques e Rodrigo Zaim, Diego Crux e Rafa Black. Na última semana tive o prazer de trocar uma ideia com os últimos 3 dessa lista com o objetivo de entender um pouco do universo que é construído por cada um deles, quais os desafios da ação coletiva e como foi o processo de construir a instalação presente na Bienal de São Paulo.

Foto: Jardiel Carvalho

Salve! Primeiro, acho importante vocês se apresentarem individualmente, e falarem sobre suas práticas artísticas.

Diego Crux: Sou Diego Crux, tenho 38 anos, sou de Parada de Taipas, zona noroeste. Tô no centro agora, né?! Costumo falar que eu sou da borda e agora tô no centro. E eu me auto intitulo "quase-artista". Eu sou formado em design e depois faço fotografia, então minha prática, de alguma maneira é informada para esses dois campos, mas também trampo muito com palavra, vídeo, apropriação. Tento estabelecer uma disputa de arte conceitual negra, talvez no Brasil, fazendo aproximações com outros saberes que não são das artes. A cultura pop de alguma maneira, o pagode, o rap e o futebol me interessam para falar dessas coisas.

Eu sou neto de Rosa e Esmeraldo, e isso é importante porque o meu trampo fala muito sobre cor, racialidade, e pensar esses dois avós com nomes de cores também me põe no lugar de pensar uma radicalidade para além dos limites que a colonialidade impôs.

Rafa Black: Eu tenho 34 anos, sou do Capão Redondo, na Sul, e faço o mesmo trânsito que o Crux, vindo morar pela região mais central. Atualmente eu moro aqui em Pinheiros — atravessou a ponte eu já entendo que é central, tá ligado? Independente de onde seja, é muito doido isso. Depois que eu me formei (em design gráfico), eu fiquei um tempo nessa jornada de entender como que eu aplicaria o design, né? Mas dentro dessa jornada eu já pesquisava a periferia, porque é isso, se você de alguma forma tá lá no território, de alguma forma você já pesquisa sobre o que acontece, já tenta trazer um repertório da sua experiência.

E era o que eu tentava trazer no próprio design. E aí fui para a gravura e comecei na pintura em meados de 2021, e nessa pesquisa com pintura eu trago elementos relacionados à ascensão do consumo ou a suposta ascensão do consumo, principalmente relacionada à periferia. E majoritariamente após os governos dos anos 2000 ali do PT. Então, acho que eu vou alimentando essa suposta ascensão ao consumo a partir de símbolos e códigos que foram forjados nesse momento.

A molecada começou a andar de moto na quebrada, né? Então eu trago os logos das motos, Twister, Titan, tá ligado? Ao mesmo tempo as marcas de roupa… E aí vou tentando mesclar com movimentos e registros históricos da população negra e periférica, e aí é como se as marcas e os e os símbolos fossem um elemento de captura. Às vezes eles são opostos, né, pelos seus propósitos, mas eles atingem o mesmo público de alguma forma. E no vilanismo, eu tento trazer isso no sentido de discutir o arquétipo do vilão. Então, vou adicionando quem são esses vilões na história.

Rafa Black, os lâmina de fogo - Acrílica sobre tela (2023)

Rodrigo Zaim: Eu sou Rodrigo Zaim, estou com 34 anos, sou da zona norte de São Paulo, nascido e criado na Norte. Nasci aqui em Santana, mas cresci até meus 20 e poucos anos lá na quebrada de Guarulhos, na Favela do 12, que foi onde deu essa formação de vivência, uma vivência bem proveitosa. Eu sou filho de Nadia Aparecida Zaim Pereira e de José Roberto Pereira, irmão de Lucas Zaim. Eu gosto de falar essa parada porque eu e o meu irmão, a gente é adotado por dois pais brancos. E mesmo morando na quebrada, só pelo fato de eu ter conseguido que a minha família me propusesse ter algumas condições melhores que a dos meus amigos, foi essa estrutura massa que a minha família deu que me permitiu ter a opção de escolher ir para a fotografia. Tô na fotografia desde, sei lá, 2009, mais ligado com o movimento social, umas pautas voltadas para o documentarismo, acompanhando os movimentos políticos da rua e tal.

E como a Vilanismo entra no processo de criação de vocês?

Diego Crux: Dentro do vilanismo, — eu gostei do "a", a gente fala muito "o", mas "a vilanismo" é interessante para já de fato lembrar que é uma irmandade. Eu acho interessante abordar junto com os meus irmãos ideias de expectativa. Então, a expectativa que é essa matriz, colocada sobre corpos negros masculinos sobretudo, mas corpos negros de modo geral, essa ideia de uma expectativa de vida, adiantada. Depois expectativa sobre o que podem ser homens negros e o que podem ser produções feitas por homens negros ou pessoas negras.

Então, a expectativa é algo que me interessa pensar. A ideia do mutirão, que eu acho que aí é uma partilha de todos nós, assim, essa ideia da coletividade como prática, entender que a irmandade ela é uma irmandade de fato, não coletiva, porque ela atua muito mais nas suas articulações do que propriamente nas materialidades que cria.

Rodrigo Zaim: Quando estourou a pandemia, eu já estava agoniado de só fazer foto, porque eu sempre fui muito criativo, sempre gostei de mexer com papel, fazer colagens, mas você cresce, tem que trabalhar e aí o bagulho que você amava fazer começa a ficar meio esquisito, né. 

Na pandemia, eu junto com um pessoal e a gente cria o FIP, que é o Festival de Imagens Periféricas. E lá eu tenho um reencontro com o lambe, que eu tava fazendo em 2013. E aí eu falei: "puta mano, eu acho que eu consigo dar vazão para a minha fotografia a partir do lambe. Eu não quero mais só que o pessoal fique vendo minhas fotos numa telinha de celular", porque não faz sentido, não tinha grana para fazer ampliação grande em papel bom, exposição era uma ali, outra acolá, bem esporádicos, até pelos temas que eu trato.

E aí em 2021 eu encontro os manos do Vilanismo, e a partir daí reacende uma vontade de romper com a fotografia. Digo, o romper não é deixar ela de lado, mas levar para outros caminhos, dela ser a base das minhas investigações, até revirando os meus arquivos e tal, e a partir daí começar a fazer um outro tipo de trampo.

Eu costumo dizer que o meu trabalho tem três pilares que para mim são fundamentais, que eu uso eles como um combustível, que é a fé, a rua e a raiva. Esses dias eu e o Crux, a gente tava trocando ideia e aí eu não lembro da palavra que você falou, mano, que aí ficaria os três R’s.

Diego Crux: Rito!

Rodrigo Zaim: Rito! O rito, a rua e a raiva. E aí é isso, é usar desses três pilares para seguir em frente. E é muito louco o quanto cada membro da irmandade influencia. Eu falo por mim, mas eu acredito que para todos, que rola uma influência geral, a gente acaba pegando um pouco de cada um, e trazendo pras nossas obras. É essa investigação aí: sou um homem muito religioso, venho de religião de matriz africana, sou um homem preto que sente raiva para cacete, por vários motivos, e a rua porque, mano, crescido, nascido e da rua até hoje. Não tem como não fazer outra coisa que não seja essa parada.

Além de irmandade, vejo que vocês se apresentam como contra-movimento, certo? Por que dessa escolha de palavras para definir, ou até não definir o que são e o que fazem?

RodrigoZaim: Vai lá, Didico!

Diego Crux: Começando pelo “contra”, eu acho que posso falar um pouco da gênese da irmandade. O Ramo (Negro) é esse catalisador, ele conhecia todos os membros e começa a escrita desse manifesto em 2021 e nos convida para participar, colaborar, fazer sugestões, fazer uma escrita coletiva novamente. Ele tinha algumas coisas no horizonte, do ano que viria, que era o bicentenário da independência e os 100 anos da semana de 22 de arte moderna aqui em São Paulo. Lá eles tinham um manifesto, o manifesto antropofágico. E a gente estava pensando nessa ausência de pessoas negras; com exceção do Mário de Andrade, eram todas pessoas brancas da elite paulistana.

Então, a gente queria fazer esse movimento de ser um contra-manifesto justamente respondendo isso. Até falei pros meninos quando tava lá (na Bienal), quando você tá lendo uma coisa, parece que tudo fala sobre essa coisa. Eu tô lendo “A Terra dá, a terra quer” do Nego Bispo, e ele fala da contracolonização, que ele poderia chamar de saberes, cosmologias, etc... mas queria afirmar que estava respondendo aquela coisa, não respondendo no sentido de "devo responder aquilo", mas dizer que eu sou de fato contra aquilo. Então acho que esse contra manifesto também parte desse lugar. A gente queria apontar para aquele movimento do começo do século passado das elites paulistanas, então o contra vem disso.

E eu acho interessante que você falou disso, de como se definir ou não buscar definições. Acho que tá um pouco também nesse lugar, de a gente entender que temos as nossas aproximações, somos 10 pessoas negras, 10 homens negros advindos das periferias, mas cada um mantém sua singularidade, suas subjetividades, e isso é respeitado dentro da coletividade, dentro da irmandade.

Manifesto Vilanismo

Li rapidamente que vocês não curtem muito o termo "coletivo". Isso se encaixa na mesma lógica?

Diego Crux: Tem a ver muito com uma lógica de como os coletivos agem, né, que são agrupamentos que geralmente vão pensar uma produção material conjunta, e a gente tem muito mais na articulação e no encontro o nosso mote. É mais sobre estar junto, entender que a gente tava indo por caminhos diversos, cada um no seu e a gente tinha muitos saberes que poderiam ser compartilhados. Então a gente se une para isso. A gente fala muito sobre as artes contemporâneas também. Tem uma ideia de um segredo que não tá muito disponível pra gente; se você faz FAAP, por exemplo, você já sai com uma galeria expondo na Europa. E a gente não entendia como isso acontecia, a gente vai aprendendo, um de um lado, um do outro, a gente começa a falar: "Não, isso aqui é por isso, isso e isso; essa residência aqui, óh, nem cola porque é carta carimbada."

Ao mesmo tempo isso foi servido. Então a gente conseguia bater nas portas dos lugares e em vez de falar: "puta, eu preciso de um espaço", não, "somos nós 10 aqui dessa irmandade que tá colando, vai fazer ativação nesse lugar..." E isso vai expandindo para além até da irmandade, em algum momento. Então, hoje a gente até tem falado de uma criação de comunidade, que são as pessoas que de alguma maneira participaram do vilanismo, seja nas exposições, acompanhamentos, e hoje estão lá com a gente também no andar de baixo de onde a gente tá, a partir de oficinas que fizeram. Então, é mais que um coletivo nesse sentido, a meu ver.

Rodrigo Zaim: E o lance da irmandade também, é porque a gente a gente se espelha em algumas irmandades históricas, como a Irmandade da Boa Morte, a Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos do Rosário… É pegando todo esse esse lance histórico e como essas comunidades se uniram para alcançar algo maior, seja a alforria de seus parentes, seus irmãos, até um reconhecimento histórico, cultural, patrimonial, tá ligado?

Assim como os próprios Racionais, é um lance de um puxar o outro. Acredito que se nós não tivéssemos nos encontrado no vilanismo, dificilmente algum integrante estaria expondo na Bienal. Porque o que chama a atenção, além dos trabalhos, porque eu acho que o nosso trampo tem uma qualidade bem boa, mas é essa articulação, da gente estar fazendo por nós, mas não somente para nós. É tipo, prática de quilombo, prática de terreiro, sabe? Se eu tô ganhando e eu consigo levar mais um para ganhar comigo, eu vou levar esse mais um. Se ele tiver com essa mesma mentalidade que eu, já são três ganhando. E aí vai se formando essa essa corrente. E eu tenho quase certeza que o que chamou a atenção do Bona (Bonaventure Soh Bejeng Ndikung) para fazer o convite para nós, além da qualidade dos trabalhos, foi o poder dessa articulação.

Massa. E entendendo essa expectativa que o Crux falou antes, que vocês tanto buscam quebrar, acreditam que tem surtido efeito?

Rodrigo Zaim: Mano, eu acho que a gente consegue quebrar sim. Inicialmente, as pessoas que não conhecem as nossas práticas, que não conhecem pelo menos um ou dois indivíduos, a primeira pergunta é: "mas por que só homem preto?" Tá ligado? As pessoas já vem armadonas assim. "Tá, mas por que que só homem preto? Não tem mina aqui?" A gente fala, “é isso daí, mano", e eu acho que é importante dizer, a gente resolveu e é.

Rafa Black: Ou "por que só homem?"

Rodrigo Zaim: É, ou "porque sou homem?” E a gente decidiu conscientemente assumir esse B.O., tá ligado? Porque a gente sabia desde o início que essa seria a primeira inquietude, primeira provocação, primeiro argumento de quem não conhece a irmandade. Mas a partir do momento que você entra naquele espaço que é a nossa instalação da Bienal, que você vê o que você vê ali, a afetividade… é um lugar que as pessoas entram e falam: "mano, eu fiquei horas ali vendo aqueles álbuns de família porque é algo muito bonito, cara, é algo muito singelo, né? É de uma delicadeza, de uma homenagem".

E eu acho que nas nossas práticas a gente consegue quebrar sim vários estereótipos e camadas que colocam em cima do homem preto. Pegando de exemplo até mesmo a própria paleta do Rafa, tá ligado? Que ele fala de temas super duros, de quebrada, com signos super fortes, com uma paleta que parece que você tá num sonho.

Rafa Black, espalhe a palavra por qualquer meio necessário, Acrílica sobre tela (2024)

Diego Crux: Fiquei pensando nisso que a Rafa trouxe, que é bem interessante. Porque quando sabem quem somos, essa ideia da raça ela não vem. Então, tipo, acho que é isso mesmo, a gente vira homem. Isso é interessante para entender que esse marcador, que é uma é um marcador minoritário, da negritude, tal hora desaparece como se a gente fosse gozador desse mesmo espaço que a branquitude tem, saca?

E é interessante também pensar, eu na minha experiência pessoal, antes da coletividade, da irmandade, eu frequentei um encontro de um grupo que se chamava Trovoa, né, que ainda existe, elas estavam fazendo a primeira exposição em São Paulo. Eu tava lá vendo as minas trocar ideia, articular, pensando esse lugar da mulher negra. Ali já tava expandindo para mulheres racializadas, né, indígenas, asiáticas também. E uma das artistas, Mônica Ventura, fala: "pô, vocês precisam se organizar também". E ela vai na primeira residência que a gente faz, autogestada, sempre nessa lógica do mutirão, e ela me dá um abraço e fala: "eu falei que vocês precisavam". E aí também, sei lá, a Renata Bittencourt, do IMS, então muitas vezes, mulheres negras são incentivadoras nossas, saca?

Então, é muito nesse desconhecimento, ou às vezes porque a pessoa não quer mesmo. E a gente tem mostrado esse desafio, de pensar que nesse encontro de pessoas, entre aspas iguais, existem diversas diferenças e, ao mesmo tempo, como a gente consegue abrir campos para dialogar com diversas outras pessoas, diversos outros campos, não só nas artes, mas sobretudo artistas que são, enfim, de diversas composições sociais. É um desafio, uma aposta que a gente faz, e que era importante que fosse visibilizada, que não fosse silenciada.

Então, acho que a gente quebra a expectativa muitas vezes, mas muitas vezes não. E tipo assim, não vai com certos grupos, não tem o que a gente faça que vai quebrar essa expectativa. Isso não diz só a respeito das artes, acho que diz respeito a o que vão esperar do que são homens negros mesmo, né?

Rodrigo Zaim, Futuro Poderoso - Fotocolagem (Retratistas do Morro) tinta acrílica e colagem manual sobre Bloco deConcreto Classe C (2023)

Legal você falar sobre isso, porque existe um estereótipo forte da violência, e vocês trazem o conceito da "treta" pro manifesto de vocês. Como isso se apresenta no trampo de vocês?

Diego Crux: Quem puxa de novo é o Ramo, ele traz a partir da referência do Muniz Sodré, que fala: “O branco faz letra, preto faz treta”, e ele expande para o nosso campo, que são as artes visuais, para pensar essa curadoria expandida. Como o Zain falou, gosto da palavra e a gente tem pensado muito nessas etimologias. Então, “treta” também é para além da briga, do enfrentamento, que acaba sendo a nossa prática. De novo na expectativa, a gente não tá para trocar soco, a gente tá brigando em outros campos, mas treta ela também é estratégia. Então, o que o Muniz traz é muito nesse lugar de pensar modos de criar essas estratégias, de romper campos já estabelecidos nas artes contemporâneas, disputando essa ideia de uma curadoria euro-cristã, eurocentrada, branca.

Então, vai desde pensar que a curadoria pode ser não só uma escolha, mas esse acompanhamento, essa parceria com aquele artista que você tá junto, é participar da montagem de maneira ativa, participar do frete do trabalho, dessas coisas mais corriqueiras do trampo, que às vezes não tá muito nas demandas de um curador. É um pouco de pensar esse lugar do mutirão, esse lugar coletivo de construção que não é hierarquizante. Óbvio que aí no fim vão ter essas diferenciações, se você é um artista, um curador, mas na prática mesmo isso não se apresenta.

E aí, só para emendar, porque eu lembrei desse lance da etimologia, que é a ideia do vilão também, né, o vilão é, etimologicamente, aquele que vem da vila. Então pensar essa ideia de um estrangeiro é algo que nos interessa, pensar que somos todos de periferias. Entender que de alguma maneira somos todos estrangeiros na nossa própria cidade também. E ao mesmo tempo, se vilão é o estrangeiro, aquele que habita aquele lugar por uma lógica, quem vai ser o herói? Quem determina quem é esse herói? Quem é esse vilão também?

Mas o lance da treta tem muito a ver com isso, né? É a briga mesmo, de fato, como a gente incorpora, que tá no rap, tá em várias outras referências nossas, mas é essa ideia de estratégia.

Rodrigo Zaim: E é treta, treta real também, mano. As vezes precisa sair um pouco do conceito filosófico e dizer que, porra, é uma treta do cacete, tá ligado? A gente se organizar, como o Crux falou, que a Mônica (Ventura) virou e falou: "óh, vocês precisam se organizar". É uma treta se organizar, é uma treta sobreviver a esse circuito da arte que é bem escroto, falando a real. Então é treta diária, para além de conceito da palavra, é treta do dia a dia.

Vilanismo, Cortejo Negro, 2024. Foto: Rodrigo Zaim

Falando sobre esse circuito das artes, vocês montaram um ateliê na Bienal, e se não me engano, inclusive, é um dos poucos que a galera pode tocar, interagir com algumas obras e tal. Como e quando surgiu essa ideia?

Rodrigo Zaim: Foi um lance bem natural na real, porque essa prática de mutirão e de instalação, eu acho que foi justamente isso que chamou atenção do Bona. Porque, só para deixar escuro aqui, a gente ainda não tem uma sede própria, né? A gente começou ocupando a Galeria Diáspora em 2023, mas tínhamos um tempo X para ficar lá. Saímos de lá, conseguimos um espaço na Funarte, que eles entregaram uma sala para nós que se chamava “desfazimento”, tudo que não prestava eles enfiavam naquela sala. Naqueles álbuns (fotográficos expostos na Bienal) tem fotos e registros da gente limpando essa sala que passou a ser o nosso ateliê. Então, a gente desmonta a Diáspora Galeria numa manhã e na noite do mesmo dia a gente já tá tomando cerveja e comendo pizza no nosso atelier, tá ligado?

E aí a gente sai da Funarte, porque lá tava ficando insalubre, o teto caiu, estragou uma pá de obra, metade da irmandade pegou dengue que tava vindo de lá... E aí a gente chega nesse prédio que é o nosso atelier hoje, que é uma parceria com a Somauma, e aí a gente já tá saindo de lá de novo para ir para um outro prédio também em parceria com a Somauma.

Então, essa nossa prática de ocupar um espaço que definitivamente não é nosso e transformar ele em algo que pareça, ou que a gente se sinta em casa, é algo que já está no DNA do vilanismo. E quando o Bona vai visitar o atelier lá na Funarte, a gente prepara uma exposição exclusiva para ele — eu pelo menos não sabia quem ele era, porque conheço pouca gente do circuito da arte, e acho isso daí positivo para caramba. A gente monta essa exposição para ele e a gente nem sabia que ele ia ser o curador da Bienal nem nada, e quando chega o convite, a gente já tá meio que com uma ideia de levar uma instalação pra Bienal. 

E o conceito da nossa instalação é justamente fazer essa provocação para o circuito de arte, que é: nós somos uma irmandade de 10 homens pretos que não tem um lugar próprio, não tem um lugar fixo. Só que a partir de hoje, a partir de agora, a Bienal passa a ser o primeiro passo para que a gente consiga a nossa a nossa casa. Por isso que tem as sapatas, os andaimes… A gente tá começando a levantar o nosso barraco dentro da Bienal. Assim como em várias quebradas, vou levantar meu barraco, não tenho a grana toda, eu começo pela fundição, levantar sapata, faço uma parede aqui e outra ali… Acho que é um pouco disso.

Vilanismo, Os meninos não sei que juras fraternas fizeram 36ª Bienal de São Paulo (2025)

Diego Crux: É essa provocação mesmo, de dizer que a gente precisa de uma sede, de um espaço para produzir com dignidade. E aí a gente vai pensar na historiografia do Brasil mesmo, pensar na lei de terras, por exemplo, e como isso se aplica pra gente, pessoas negras no século XX, precisando de casa, mas também precisando de lugar de trabalho digno. E não só de trabalho, porque é sim um lugar onde a gente vai trabalhar, mas é um lugar de convivência, que a gente possa criar essa comunidade. 

E quando a gente envia o projeto, meio rápido, os caras convidam a gente numa semana pedindo “vocês conseguem mandar na outra um projeto?”, e aí a gente faz um corre para conseguir, porque era dezembro, eles iam entrar em férias.

Rodrigo Zaim: Era Natal, vamos falar a real.

Diego Crux: E aí o lance era isso, porra, como você vai falar “não, espera aí Bienal, ano que vem eu mando para vocês”, tá ligado? E a gente fez o corre e no fim a resposta foi meio: "É, tem tudo a ver com o que a gente visitou, com o que a gente tava imaginando mesmo." Só que a gente também dobra a aposta no sentido de que a gente queria que aquilo não fosse uma encenação. E daí a gente decide que algumas coisas vão ser estrutura pro Vilanismo depois. O teleiro que tá apresentado lá não é cenográfico, ele vai ser um equipamento do Vilanismo. A mapoteca que tá atrás do teleiro também é algo que a gente necessitava no espaço, a gente não tinha e isso vai vir pro vilanismo. 

Então é esse jogo de pensar que se esse dinheiro está sendo gasto para construção da instalação, então ela vai construir equipamentos pro vilanismo também. E é isso, é uma provocação de dizer, “óh, a gente não tem sede. Quer colar com nós? Como vocês podem ajudar também?”

Esse é o lance, de expandir e de publicizar essa necessidade. O Zain falou disso, que a gente vai mudar, né, e tá tudo certo agora, a gente tem esse lugar, mas a gente abre a Bienal e uma semana depois a gente já tá em crise porque precisava de um lugar e não tínhamos certeza para onde a gente ia. Talvez a gente não ia ter lugar. Então, é essa contradição, né, que ao mesmo tempo, está na Bienal, segunda maior exposição do mundo, a maior do hemisfério sul, e ao mesmo tempo nós tá sem casa.

Bem foda isso. Aliás, pegando isso que o Zaim falou, de levantar uma parede por vez, vocês tem promovido algumas ações paralelas, encontros, performances... Dá pra afirmar que cada ação é um bloco novo nesse lugar que está sendo levantado?

Rodrigo Zaim: Com certeza, meu mano. E para além de Bienal, eu acho que todas as ações que o vilanismo faz são para a construção dessa sede própria. A construção da nossa comunidade, tá ligado? E quando eu digo nossa comunidade, é de todos os artistas que fazem parte da irmandade e os que não fazem parte da irmandade e que tão colando com a gente. Porque a gente não consegue levantar um barraco sozinho. Então, se a gente tá fortalecendo outras pessoas, é certo que essas pessoas, quando a gente necessitar, elas vão chegar junto e vão fortalecer também. Vai muito além do querer só do vilanismo, porque o vilanismo não é a única irmandade que necessita de um espaço. 

Lá no espaço que a gente tá hoje, no (Edifício) Tebas, ali no Largo da Misericórdia, bem de frente para a casa de Francisca, a gente tá apadrinhando, vamos colocar assim, dois grupos que somados dão 20 artistas. E que os esses dois grupos fizeram parte de um edital que a gente ganhou. Então a gente intermedia esse diálogo com os proprietários do prédio perguntando se a gente poderia ocupar mais um andar. e a partir desse OK, esses artistas passam a ter também um atelier de produção. 

Então se transformou numa residência, tá ligado? Com todo o suporte ali do vilanismo, portaria 24 horas, a molecada podia ficar lá produzindo até dizer chega. Então, todas as ações que a gente faz são visando sim a nossa sede, a nossa casa própria, mas também esse fortalecimento da comunidade que está nos acompanhando e está crescendo cada vez mais.

Faz sentido total, até para o que você falou no começo, de inspiração em irmandades históricas. Mas pra fechar, dia 15 de novembro tem uma ação especial programada. Qual a ideia?

Rodrigo Zaim: Essa vai ser legal, viu, mano? Se eu fosse você, eu colaria.

Diego Crux: A gente realizou algo similar já, a gente fez uma caminhada do IMS até a Funarte, que era onde a gente estava na época. A gente desceu a Angélica tocando com a caixa de som, as pessoas caminhando, com a nossa bandeira, com alguns soltando fogos, demarcando esse lugar. E lá para Bienal a gente quer fazer pensando também nesses marcos arquitetônicos, escultóricos que tem na região. Então é um chamado para além da irmandade, para quem quiser colar junto, quem tá junto na caminhada, chegar com nós e fazer esse movimento.

Então tem um percurso definido, uma ação mais ou menos desenhada, mas muito do movimento da rua mesmo também. Então você tá na rua, você tá sujeito, tá em diálogo com ela. Você tá ali disputando e trocando ideia com a rua.

Rodrigo Zaim: Ano passado foi bem engraçado, porque na Angélica tem uma casa que recebe casamentos. E a gente tava descendo, bondezão blocado de preto assim, bandeira, sinalizador, racionais tocando, caixa de som pocando, e a noiva saiu do carro, olhou para trás, viu aquela massa preta, e entrou de novo no carro (risos).

Vilanismo, Cortejo Negro, 2024. Foto: Rodrigo Zaim

E aí, é isso que o Crux falou, a gente tem um roteiro, mas a rua é quem dá o toque. Tipo, tem essa foto (acima), logo quando a gente já tava atravessando ali nos Campos Elíseos, o Dani solta esse rojão e a rua responde: “Vai, Corinthians! É isso mesmo, caralho!” E isso tudo na mesma avenida. Hora uma pessoa se esconde, porque não sei o que passa na cabeça dela, hora a rua responde da maneira que tem que ser respondida.

E uma parada que eu acho importante a gente falar é que sempre as nossas ações vão finalizar com comida e bebida. É uma parada que a gente defende também que a gente precisa estar bem alimentado, a gente precisa estar forte, ter um conforto pro corpo mesmo. Porque a comida, essa troca é uma das maiores maneiras de mostrar o afeto.


ISMO
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